sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16872: Notas de leitura (913): “Guiné-Bissau, das Contradições Políticas aos Desafios do Futuro”, por Luís Barbosa Vicente, Chiado Editora, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Dezembro de 2016:

Queridos amigos,
Luís Barbosa Vicente é um gestor e um associativista que, mesmo vivendo em Portugal, acompanha dia-a-dia as questões matriciais do seu país. Recomendo a todos esta análise sobre o Estado, o modo de fazer política, o viver de costas voltadas entre os órgãos de poder e as sociedades civis guineenses. O autor adianta propostas da reforma do Estado e modernização da administração pública e abona dados para um paradigma de desenvolvimento que exige uma clara reformulação dos órgãos do poder, está convicto da mensagem certeira de Cabral de que o reconhecimento da luta de libertação não seria ganha pela sua geração mas sim pela geração seguinte, ele confia que há uma geração seguinte que recolocará a cidadania guineense no mapa de África e do mundo.

Um abraço do
Mário


Olhares sobre a Guiné-Bissau depois das eleições de 2014, até hoje (1)

Beja Santos

A obra intitula-se “Guiné-Bissau, das Contradições Políticas aos Desafios do Futuro”, por Luís Barbosa Vicente, Chiado Editora, 2016. O autor é guineense e desenvolve ampla atividade como gestor de projetos e desenvolvimento e, igualmente, como formador e consultor da União Europeia.

As eleições de 2014 trouxeram uma vaga de esperança num país desolado que saía de uma ditadura militar encabeçada por narcotraficantes. Em pouco tempo, surgiram contradições, questiúnculas e tensões insanáveis nos diferentes órgãos do poder. A Procuradoria-Geral da República emite logo nesse ano um parecer sobre a inconstitucionalidade de um decreto presidencial, o Supremo Tribunal de Justiça delibera no mesmo sentido, o Tribunal de Contas aprecia o primeiro Relatório de Contas do Estado referente ao ano de 2010. O Procurador-Geral e o Presidente do Tribunal de Contas foram prontamente demitidos, era o princípio da confusão.

Observa o autor que “A garantia de desempenhar cargos altamente remunerados associados aos privilégios da função é a mistura explosiva para as disputas intestinas pelo poder. É importante realçar que o exercício desses cargos, nomeadamente de ministros, secretários de Estado, assessores, conselheiros e até de presidentes ou vogais de conselhos de administração de empresas públicas garantem um salário líquido mensal de 2,5 milhões de francos CFA, que corresponde a cerca de 3700 euros, num país onde o salário mínimo é de cerca de 46 euros”. E há um pano de fundo que não se pode descurar: o miserabilismo da função pública, a existência de um número muito elevado de serviços e imprecisão relativamente às atribuições dos mesmos, a não oficialização de leis orgânicas, desarticulação entre as estruturas e os postos de trabalho – a máquina da administração pública vive emperrada, os técnicos esmifram-se por fazer serviço externo e obter ajudas de custo, vão em missões que na maioria dos casos nada traz de tangível ou de palpável, já que os serviços públicos continuam ineficientes e inacessíveis à generalidade da população.

E há a existência de um governo que produz legislação em circuito fechado, a reforma do Estado é sistematicamente adiada. Dentro dessa confusão e inércia, depois das eleições de 2014, no período de um ano assistiu-se à formação de quatro governos, com situações caricaturais, veneno mortal para o descrédito dos órgãos de soberania. Refere igualmente o autor que em Junho de 2015 foi nomeado um governo liderado por Baciro Djá, um dos 15 dissidentes expulsos do PAIGC, com o apoio parlamentar do Partido da Renovação Social. Como numa obra cómica, o recém-governo teve que se reunir no Ministério da Administração Interna, uma vez que o Palácio do Governo continuava ocupado e sitiado, o PAIGC recusara a nomeação de um novo primeiro-ministro.

Luís Vicente debruça-se sobre os custos da política sem regra, mostra os indicadores económicos e recorda que em cada ciclo de crescimento há uma rutura que deita por terra o trabalho antecedente. Os políticos permanecem indiferentes à turbulência: “De 1984 e posterior abertura democrática até à presente data, nenhum governo conseguiu concluir o seu mandato, o que só por si inviabiliza o cumprimento de qualquer programa de desenvolvimento económico ou orçamento de Estado".

Há que ponderar o que está subjacente à crise encetada em 2014: os principais protagonistas provêm do PAIGC, parecem atuar em grupos, ignoram a solidariedade política, as fragilidades institucionais, descuram as consultas públicas e o contacto estreito com os eleitores das diferentes regiões de onde provêm. O Presidente da República devia ser o garante da concertação estratégica, o símbolo da unidade, o rosto da independência nacional, árbitro e defensor da coesão nacional. Pela Constituição, tem o poder de presidir ao Conselho de Ministros e solicitar informações sobre atos de governação e matéria do debate político na Assembleia da República. Tudo emperrou logo com o governo de Domingos Simões Pereira, o autor detalha as principais peças de tragicomédia. Numa fase crucial de negociações com a comunidade de dadores para se obter apoios fundamentais, consubstanciadas na Mesa Redonda de Bruxelas, agravou-se a crise política, José Mário Vaz e Domingos Simões Pereira davam a imagem pública da desavença e incompatibilidade com o relacionamento institucional. O Presidente da República discursou em Agosto de 2015 e lembrou a incapacidade do Primeiro-Ministro para a coabitação institucional, faltavam informações básicas, faziam-se nomeações sem ouvir o Presidente da República e este lembrava um estado de dissolução em que o governo se mostrava impotente: exploração desenfreada dos recursos naturais, em particular as areias pesadas de Varela; corte abusivo de árvores; delapidação dos recursos pesqueiros; corrupção, peculato e outros crimes económicos no exercício das funções públicas; falta de transparência na adjudicação de contratos públicos. O Primeiro-Ministro demitido procurou justificar-se, e contra-atacou dizendo que podia provar objetivamente as informações inverídicas do Presidente da República. De acordo com a constituição, o partido vencedor das eleições, o PAIGC foi convidado a apresentar um nome para o cargo de chefe do Governo, tendo o mesmo recaído no presidente do partido, o mesmo Domingos Simões Pereira, houve pronta rejeição com o Presidente da República. O PAIGC entendeu publicamente criticar o Presidente José Mário Vaz, acusando-o de querer chamar a si todas as competências do governo, que estava a desencadear uma crise que levava as receitas fiscais a cair a pique, alegando que a evolução da situação económica do país era bastante encorajadora e que toda esta crise política podia levar ao cancelamento de apoios prometidos na mesa redonda de Bruxelas.

É neste ponto expositivo que o autor entende retomar o legado político do PAIGC, porventura para encontrar os porquês desta crónica falta de lealdade política, de ética no exercício das funções político-partidárias, do amiguismo. Recorda o entendimento de Amílcar Cabral quanto ao sentido de unidade: “quaisquer que sejam as diferenças que existem, é preciso ser um só, um conjunto, para realizar um dado objetivo”. Só que tal mote foi sempre objeto de grandes contradições internas. Como suporte básico para essa unidade, Cabral delineou dois programas de ação: um programa maior, que passava pelo desenvolvimento socioeconómico do país; e um programa menor que tinha por objetivo a libertação do país do jugo colonial. Na arrancada da independência, com ajuda internacional formaram-se guineenses com cursos superiores, com curso técnico médio, com cursos profissionalizantes e quadros políticos e sindicais. O PAIGC perdeu a linha revolucionária, desligou-se das sociedades rurais, concentrou-se na mera gestão da continuidade do poder, houve a crise de 1980, a unidade Guiné-Cabo Verde volatizou-se e os problemas da cidadania, do desenvolvimento e da educação entraram em refluxo, tudo se agravou com o chamado plano de ajustamento estrutural, aos poucos os homens da luta foram dando lugar a uma nova classe de profissionais na obtenção de financiamento para projetos, ponteiros, importadores, tudo dentro de um vasto círculo de oligarcas amigos, com contas bancárias no estrangeiro.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16849: Notas de leitura (912): Reflexão sobre os 30 anos de independência da Guiné-Bissau, por Leopoldo Amado, na revista Africana Studia, n.º 8, 2005, publicação do Centro de Estudos Africanos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Mário Beja Santos)

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