domingo, 18 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16846: Manuscrito(s) (Luís Graça) (105): Natal de 1955 (... quando ainda o Pai Natal não tinha sequestrado e morto o Menino Jesus)


Portugal > Estremadura > A8 > Torres Vedras-Lisboa > 17 de dezembro de 2016 > O pôr do sol... Onde estão os moinhos de vento da minha infância e dos meus Natais ? E o vento soprando nas velas e nas cabaças  dos moinhos ? E o mar? E os heróis do mar ?


Foto (e legenda): © Luís Graça  (2016). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Canaradas da Guiné]



Natal de 1955

por Luís Graça



Em 1955,
soletrava-se à noite,
à luz do candeeiro a petróleo,
a lição do livro da primeira classe
onde terra rimava com chão.
Ainda não havia televisão,
havia o hino nacional, 
na rádio, que era um luxo,
havia Deus, 

havia a Pátria,
havia a Família,
e pouco mais,
e chegava,
essa tríade sagrada.
Afinal, o mundo acabava ao fundo
da rua grande da tua aldeia.

E, no Natal,
quando ainda o Pai Natal
não tinha sequestrado e morto o Menino Jesus,
ia-se à missa do Galo,
à meia noite em ponto,
na igreja do Castelo,
e só depois,
a tiritar de frio,
de regresso a casa,
pela rua escura e medonha dos Valados,
rente ao muro branco do cemitério,
é que se bebia o cacau quente
e se comiam os coscorões,
o arroz doce
e as filhós de sangue de galinha!

De manhã, junto ao fogão a petróleo
ou ao fogareiro a carvão,
a mãe tinha alinhado os sapatinhos
onde por um golpe de magia haviam florido
meias e lenços,
e uma ou outra, rara, guloseima...
e, com sorte, talvez um carrinho de lata para ti
ou  uma boneca de cartão para a mana,
comprados às escondidas na feira de setembro.

Havia uma noite do ano
em que os meninos da tua rua
eram inconscientemente felizes,
os mais inconscientemente felizes do mundo!


Havia o ouro, a mirra,
os três reis magos,
e um deles era o pretinho da Guiné,
havia o presépio,
o burro, 
a vaca, 
a esterqueira, 
havia o incenso,
ligeiramente enjoativo das missas,
havia, enfim, o sagrado
e o pagão,
e a tudo isto, ou a só isto,
se resumia o acanhado palco da vida
que te coubera em sorte.

E, claro, havia o mar,
os moinhos nos cabeços,
e o vento uivando nas velas e nas cabaças dos moinhos,
e, por detrás dos cabeços e dos moinhos,
e das velas e das cabaças dos moinhos,
havia o mar,
o grande oceano.
e o apelo irresistível 
do(s) que estava(m) para além do mar.


Excerto de:

Luís Graça - Autobiografia: com Brughel domingo à tarde
(poema, inédito, 2005, c. 40 pp)
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Nota do editor:

Último poste da série > 17 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16848: Manuscrito(s) (Luís Graça) (104): uma boa oferta de Natal o livro do José Ferreira da Silva, "Memórias Boas da Minha Guerra" (Chiado Editora, 2016, 216 pp.)... Um bom antídoto contra o stress natalício e a tristeza que nos invade ao cair da última folha do calendário...

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