quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16833: Os nossos seres, saberes e lazeres (190): De novo em Bruxelas e a pensar nas Ardenas (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 13 de Julho de 2016:

Queridos amigos,
Por vicissitudes que nem eu próprio sei esclarecer, voltei em menos de um ano ao interior das Ardenas. E voltei com imensa satisfação, se gosto da floresta à volta de Pedrógão Pequeno, aquela imensidade florestal que começa na região de Avelar, passa por Figueiró dos Vinhos, Pedrógão Grande, atravessa o Zêzere e interna-se por uma Beira em progressivo abandono até Castelo Branco. Vive cada vez menos gente, mas despontam sobreiros, pinheiros, castanheiros, eucaliptos e acácias, daí o poder da indústria madeireira, não posso ficar insensível à floresta das Ardenas que apanha uma vasta área que vai da Lorena ao Luxemburgo.
Férias de descoberta e de redescoberta. Com diz Saramago, o que se vê na Primavera não é o que se vê no Outono, e há dias ensolarados e há dias nebulados e há momentos em que o nosso coração colhe e recolhe, misteriosamente permeável às coisas do húmus. E houve aquela circunstância de dormir numa casa que ela própria é fronteira entre a França e Bélgica.
Podem ver as imagens.

Um abraço do
Mário


De novo em Bruxelas e a pensar nas Ardenas (3)

Beja Santos

Há diferentes vias de atingir as Ardenas a partir da capital. O itinerário escolhido é de seguir, na região de Namur, junto ao belíssimo rio Meuse, foi sugerido uma paragem na Abadia de Hastière, nunca ouvi falar em tal, e a verdade é que por ali andarei de boca à banda, com a grandeza e a espiritualidade. Ao que parece, por aqui andaram no século XI, monges irlandeses e instalaram-se. A abadia foi construída no estilo arquitetónico românico mosan, e construções e destruições foram a regra: escavacaram a abside romana, aumentaram com um coro gótico e abóbada de cruzeiro. Depois vieram os Huguenotes no século XVI e os revolucionários em 1793, as destruições do costume. Impressiona pelas dimensões, as pedras tumulares, uma estatuária excecional. E a cripta também tem muito que se diga, com os seus sarcófagos merovíngios. Abençoado condutor que escolheu este trilho. Vamos então até ao fundo das Ardenas!



Quem é que não quer ter uma experiência turística excecional? Entenda-se por excecional dormir numa casa que faz fronteira entre a Bélgica e a França, não é figura retórica, esta casa, até ao dia em que apareceram as Comunidades Europeias tinha para aqui um posto alfandegário, marcos, policiamento, caça aos contrabandistas, foi edifício da maior importância para o mercado negro, nos anos trágicos da guerra e da ocupação. A casa foi café, no passado servia de mala-posta e de albergaria. Um casal adquiriu o edifício, refê-lo integralmente, desapareceram os estábulos, a zona de taberna, emergiu uma casa com dois andares e o visitante se já vinha arrelampado com o que vira em Hastière sentiu-se lisonjeado pelo convite de aqui pernoitar e percorrer uma casa insólita, com vistas desafogadas com divisões interiores de traça arrojada. Bendita fronteira, parabéns a quem aformoseou um antigo lugar de pouca permanência, associado a contrabandos, fugas de resistentes, passagem de informadores. E o viandante adormeceu a ficcionar uma novela passada nesses tempos convulsos de escapadelas pela fronteira, qualquer guerra servia.




Hoje vamos calcorrear veneranda terra belga, o viandante regressa à Abadia de Orval, quem lhe diria quando em anos pretéritos saboreava uma cerveja de Orval que visitaria a unidade fabril duas vezes em menos de um ano? Pois foi exatamente o que aconteceu, Orval é a poucos quilómetros desta bela casa de fronteira e tem muito para ver e até uma comparação radical a fazer. A abadia medieval foi destruída pelos revolucionários, deixou-se a brutalidade à vista, é uma testemunha muda a quanto leva o fanatismo. É impossível visitar Orval sem sentir uma espiritualidade ambiente, são essas as impressões que procuro deixar ao leitor, registo do que foi Orval e como se manteve até ao século XVIII, aqui se vivia sobre o lema beneditino de trabalhar e rezar, buscando a autossuficiência, tal como aconteceu, tal como acontece. A cerveja da abadia tem fama internacional, e justificada.



Aqui se glorificou Deus, aqui houve hossanas, preces, aqui se sepultaram monges depois de uma vida na obscuridade, ao serviço da misericórdia e da compaixão. Alguém bem sensível misturou ruínas com a intemporalidade de valores religiosos e grandes arquétipos morais. O viandante para em recolhimento, sabe bem como são transitórias as glórias inventadas pelos homens, a olhar estas estátuas depuradas e estas ruínas de templos de paz lembra a guerra que viveu, os seus mortos e os seus vivos. E agradece do fundo do coração ter podido voltar a Orval, revê-la com outros olhos, mas sempre atónito de admiração.



(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16809: Os nossos seres, saberes e lazeres (189): De novo em Bruxelas e a pensar nas Ardenas (2) (Mário Beja Santos)

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