segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16801: Notas de leitura (908): “Ten General Alípio Tomé Pinto, O Capitão do Quadrado”, pela jornalista Sarah Adamopoulos e pelo biografado, Editora: Ler Devagar, 2016 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Dezembro de 2016:

Queridos amigos,

Alípio Tomé Pinto está bastamente referenciado no blogue. A sua biografia é vastíssima, vai desde a esplêndida e comovente narrativa sobre a sua aldeia, Maçores, os locais de estudo, o cadete da Escola do Exército, a sua ida em 61 para Angola, onde chega a receber a Extrema-Unção, segue-se os tempos do capitão de Binta, depois o curso do Estado-Maior, o Funchal, de novo Angola, o seu envolvimento nos acontecimentos do 25 de Novembro, o Comando-Geral da GNR, depois de ter comandado a Primeira Brigada Mista Independente, e muito mais.

É uma leitura que delicia, temos ao espelho um homem íntegro, que despreza a pesporrência. Cinjo-me a três momentos que me sensibilizaram profundamente: Maçores, Angola e Binta. O resto fica para vocês todos lerem, seguramente com entusiasmo.

Um abraço do
Mário


Alípio Tomé Pinto, o Capitão do Quadrado

Beja Santos

O livro intitula-se “Ten General Alípio Tomé Pinto, O Capitão do Quadrado”, um mano-a-mano entre a jornalista Sarah Adamopoulos e o biografado, Ler Devagar, 2016.

Trata-se de alguém, hoje octogenário, ferido em Angola e ferido na Guiné. Promovido a general aos 45 anos de idade, por razões de mérito. Uma folha de serviços invejável. Alguns se pronunciarão de que a narrativa no seu todo é aliciante e de exigente leitura. Confesso que me comoveu acima de tudo a elegia transmontana e o palco da guerra. É sobre esses dois tópicos que me vou centrar.

Fins do século XIX, início do século XX, um geógrafo de renome, Vidal de La Blache, defendeu a tese de que ao meio que define o caráter do homem e das populações, é a factura de viver rodeado de montes ou à beira-mar, com verdura, neblina, florestas ou areais. Tomé Pinto, di-lo com orgulho, aquele chão foi a génese do sonho e da aventura, o chão chama-se Maçores, aldeia na Terra Quente do nordeste transmontano. E o meio fica cinzelado nestes termos:  

“As pessoas viviam do que produziam. Eram autónomas, ou quase. O dinheiro não circulava muito. Nem para ir à vila era preciso, por que as pessoas tinham com o médico uma avença que era honrada em cereal. Foi assim até aos anos 1950. O dinheiro quase não era preciso para a vida do dia-a-dia, porque havia a troca, a cedência e a oferta, e, na verdade, só quando iam à feira é que as pessoas precisavam de dinheiro. Para comprar, por exemplo, um fato, ou um lenço, ou tecido para o avental, ou para fazer um vestido. Ou então as coisas que a terra ali não dava: arroz, açúcar, bacalhau, peixe salgado, polvo seco”.

Um maçorano que foi assistindo ao progresso, viu as ruas calcetadas, a linha telefónica para Moncorvo, a chegada da luz elétrica, do transporte diário para Peredo e Torre de Moncorvo, uma escola de ensino primário. Depõe uma memória iluminada pela distribuição de papéis, masculino e femininos, Tomé Pinto é terno a falar das mulheres e da sua solicitude na vida comunitária, a aldeia como uma família, guarda com nitidez a casa, a escola, a educação e depois os estudos em Moncorvo, no Porto e em Bragança. Em 1953 assenta na Escola do Exército, não esqueceu detalhes que mais vida que minudências:  

“Lá vim eu pela primeira vez até Lisboa. Com o dinheiro enfiado no bolso da camisola interior que a minha mãe me tinha arranjado. Na altura, tínhamos de ser nós a comprar as fardas. E também pagávamos o talher com que comíamos, e a roupa de cama com que nos cobríamos. Havia uma despesa grande à cabeça que era preciso fazer. Sim, era uma espécie de enxoval militar”.
Vai cursando e descobre o amor da sua vida.

Em 1961, em Maio, chega a Angola, ainda viu trabalhos forçados. A sua Companhia é a CCAÇ 129. Em Outubro, quase morre na região do Uíge, entre Quizalala e São José do Encoje:

“Fui ferido nos chamados dembos, na Serra de Ambuíla, terra do café, numa emboscada durante um patrulhamento”.

Ferimento grave: Uma bala havia entrada por um dos lados dos maxilares, partindo-o, passando pelo palatino, e alojando-se junto à carótida. Chega a receber a Extrema-Unção. Recupera-se em Lisboa, é reenviado para o Regimento de Nova Lisboa (atual Huambo) onde vem a formar 200 cabos indígenas. Voltará várias vezes a Angola, durante a guerra e depois.

A segunda experiência duríssima é a Guiné, onde amadureceu e ficou marcado para a vida. Vai para Binta, chamar-lhe-ão o capitão de Binta, entre Farim e Bigene. Para entender o que ele foi encontrar temos que recuar àquele pano de fundo que é a desarticulação quase completa daquela região, com fuga de populações para o Senegal e os guerrilheiros a circularem com a maior liberdade, cultivando mesmo as bolanhas. Chega e procura percecionar as formas de atuação. Comanda a CCAÇ 675. Vai de patrulhamento em patrulhamento, impunha-se esclarecer onde estavam os focos da guerrilha, afastá-los e intimidá-los, e estabelecer mesmo ligação entre Binta e Farim, sede do BCAÇ 490. Sucedem-se as operações a um ritmo trepidante: uma batida à região de Lenquetó, a 12 km de Binta. Esta operação teve números consideráveis: entre 20 a 30 mortos, 40 prisioneiros. Progridem em quadrícula, dois grupos de combate reproduzem um clássico dispositivo militar, muito usado nas campanhas africanas do século XIX. Tática bem-sucedida, Tomé Pinto passará a ter cognome: o Capitão do Quadrado.

A obra cita o livro que escrevi com o Embaixador Henriques da Silva “Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um Roteiro”, onde se fala nessa catadupa de patrulhamento ofensivos e golpes de mão e batidas; as estradas que estavam ao abandono ficaram limpas das abatizes, assim se chegou a Guidage; 22 itinerários, numa extensão de cerca de 250 km, foram percorridos ao longo do mês de Julho de 1964. O dia 5 de Agosto será funesto. Pretende-se ir até Santancoto, no limite do setor. Entra-se numa mata fechadíssima, passa-se por uma bolanha, e nisto deu-se uma intensa troca de fogo, retoma-se o quadrado, e um acidente tomou conta de tudo:

“Apesar do recomendado ao soldado do morteiro para ter cuidado com as árvores de grande copa que ladeavam a estrada, o seu excesso de zelo e ardor combativo (…) levou-o a disparar a morteirada, com tal precipitação que a granada foi rebentar num ramo alto de uma árvore (…) crivando de estilhaços o lado onde se encontrava o capitão e alguns soldados”.

Tomé Pinto cai ferido, o furriel enfermeiro estanca-lhe a hemorragia, pede-se a evacuação. E desse relato há uma página memorável:

“Todos queriam pegar na maca para o transportar até ao helicóptero; um despia o casaco camuflado para lhe aconchegar melhor a cabeça na maca (…) outro dava-lhe o seu concentrado de frutos da ração de combate para comer pelo caminho; outro ainda quase que o obrigava a beber a água do seu cantil. Todos lhe queriam tocar, apertar a mão, desejar-lhe as melhoras para que voltasse depressa”.

Recupera, vai de avião até Farim e com o comandante de batalhão mete-se num barquinho a motor no rio Cacheu, pretende chegar até junto dos seus soldados que dentro de horas partem para uma operação. É recebido com emoção. A guerra não pára, chegou a vez de Binta ser flagelada. Além da guerra, reergue-se a povoação, atrai-se população dispersa, cultivam-se alimentos, há imenso entusiasmo entre civis e militares. Quando, em Agosto de 1965, está em Bissau a caminho de férias, é informado ter sido admitido no Curso do Estado-Maior. Tomé Pinto resistiu a deixar a sua Companhia, tentou adiar a entrada no curso para o ano seguinte. Mas teve que partir. Tudo se irá alterar a partir de então, multiplicar-se-ão as missões e os elogios. Não será por acaso que se escolheu para a capa do seu livro a sua fotografia a bordo do Uíge, a caminho da Guiné. É o Capitão do Quadrado, desse momento inevitável em que se transformou numa terra chamada Binta, congraçando os feitos de guerra com as alegrias do repovoamento e do cuidar do próximo.

Uma grande biografia em que Sarah Adamopoulos revela o seu altíssimo nível jornalístico.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de Dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16788: Notas de leitura (907): “Histórias Coloniais”, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, A Esfera dos Livros, 2016 (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mário: Seria injusto nºao recordar aqui o nosso JERO, o "último monge de Alcobaça", que foi o primeiro a evocar, com admiração, gratidão e ternura, do seu capitão, hoje general, a quem desejamos longa vida... Trás os Montes é terra de gente brava, grandes navegadoresm, grandes soldados... E Moncorvo é a terra do ferro... Uma abraço para os três... LG

Antº Rosinha disse...

Aqui está um militar, pela mão de BS, que veio interromper o "capítulo" que o blog do imaginativo Luis Graça, tinha dedicado aos "batoteiros".

Estas biografias de gente que dedicou o melhor da sua vida a defender uma causa que se perdeu, devem ser muito bem realçadas, sem complexos.

Com ou sem razão das causas defendidas, a história deve ser totalmente contada, para compreender o esforços nacionais e internacionais e suas consequências.

Houve 3 tomadas de posição em África, contra as independências das colónias africanas, naqueles anos 50 e 60.

A França com Argélia, Portugal com as suas colónias Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, e os Boers na África do Sul ao lado da Rodésia (Zimbabué).

Independências de filhos adultos (um caso ou outro)sim, abandono de "crianças gatinhando" na rua, (a maioria) foi demagogia.

Hoje os africanos e afrodescendentes estão reclamando na Europa e contra a Europa (os pais), por aquilo que correu mal.

Também em Portugal, jornal o "PÚBLICO" de hoje, os afrodescendentes lusos e emigrantes dos PALOP agora exigem um tratamento "DIFERENCIADO" e já se queixaram às Nações Unidas contra Portugal.

Venham biografias e que quem lá andou, não seja esquecido, e os africanos que estavam ao lado de Spínola, ou ao lado do General Salam, também não sejam esquecidos.