quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16750: Os nossos seres, saberes e lazeres (186): Uma viagem em diagonal pelos países dos eslavos do Sul (10) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Junho de 2016:

Queridos amigos,
Aqui se põe ponto final a uma digressão iniciada em Belgrado e com percurso pelo Montenegro e Croácia.
Não consigo imaginar uma longa estadia em Veneza, tal a pressão provocada pelo turismo de massas. Da última vez que cá estivera desenhara uma visita a partir de Milão, por comboio fui batendo várias capelinhas, como o lago de Garda, Vicenza, Pádua, dois dias em Veneza e depois os Dolomitas. Admito que haja seres humanos que se sintam perfeitamente integrados, semanas ou meses a fio, naquele mundo de canais, pontes e praças, com passeios esporádicos pelas ilhas. É um turismo caro o de Veneza, sente-se que uma parte esmagadora deste turismo desaparece ao anoitecer, tais são os preços dos hotéis e dos albergues. A despeito destas restrições, Veneza é extraordinária, deve estar para nascer o primeiro turista que não se mete numa embarcação e atravessa todo o Canal Grande sem um frémito diante de uma beleza única, irrepetível. Isto para dizer que recomendo a todos os viajantes que por aqui comecem ou acabem viagens esplendorosas como a que tive pelos países dos eslavos do Sul.

Um abraço do
Mário


Uma viagem em diagonal pelos países dos eslavos do Sul (10)

Beja Santos

Ao romper da alva, o viandante parte de Cannaregio para San Marco. Convém esclarecer que Veneza divide-se em bairros administrativos ou sestieri. Vivo no campo dos Jesuítas em Cannaregio, amanhã vai dar um grande jeito viver neste bairro extremo com uma ilha-cemitério em frente, ao longe uns Alpes com as cumeadas cheias de neve, e uma estação de barco à porta que me deixará em Marco Polo, o aeroporto de Veneza. Prova provada que a cidade já está enxameada de turistas é o gralhar em muitas línguas, jovens branquíssimas besuntam-se com protetor solar, anda tudo enchapelado. O dia promete. A ver se o viandante não se distrai com praças, ruelas ou fachadas de igreja, a manhã está reservada para essa relíquia que é San Marcos.





Duas colunas assinalavam a principal entrada de Veneza, as colunas de S. Marcos e S. Teodoro, o viandante já está na Piazzetta, frente a um edifício notável, a Zecca, foi a Casa da Moeda de cidade. Aqui se descansou a contemplar o tráfego já intenso, mesmo em frente esta a ilha de S. Jorge, é um verdadeiro regalo para os olhos. Não é possível fotografar no interior da basílica, entra-se e o viandante fica para ali especado a olhar a cúpula central, só mais tarde é que a basílica vai ficar completamente iluminada, o melhor é sonhar, andar por ali a ver mosaicos, a mirar as paredes decoradas com preciosos mosaicos, o interior das cúpulas, caso dos mosaicos do batistério, sentar-se numa das capelas e procurar abstrair o ruído de fundo. É difícil dizer o que é que é mais excecional que o outro, o viandante regozija-se de que desta vez teve tempo e luz para ver a Cúpula da Ascensão. Nada na história da arte Ocidental é tão primoroso como este casamento entre sucessivos estilos do Gótico ao Barroco, dentro da arte e arquitetura bizantinas.
Cá fora, uma longa mirada sobre a Torre do Relógio renascentista, outra peça preciosa com fases da lua e o Zodíaco, trata-se de um relógio de esmalte dourado, invulgaríssimo. O guia que o viandante regularmente consulta alerta para um pormenor. No nível superior, vê-se o leão alado de S. Marcos contra um fundo azul recamado de estrelas. Lá no alto as duas enormes figuras de bronze têm o nome de mouros, são estas figuras que batem no sino a dar as horas. A idade impõe limites, é enorme a tentação de voltar a visitar o palácio dos Doges, fica para a próxima. Mas o viandante não resiste a fotografar a Ponte dos Suspiros, um dos locais mais iconográficos de Veneza, a ponte é famosa porque outrora os delinquentes atravessavam-na a caminho do tribunal, manda a imaginação romântica que paravam nas janelas para suspirar antes de uma condenação.


Caminhamos para a hora de almoço, é melhor sair deste lugar, é onde a comida é mais cara em Veneza. Toca de caminhar contornando S. Marcos e o Cannaregio, como se fosse em direção da estação ferroviária e paralelo ao Canal Grande, viagem movimentada, resistindo a todas as tentações de ver vidros de Murano e outras atrações locais. É nisto que o viandante vê o anúncio do concerto, música de câmara alemã, cravo e flauta de bisel, entrada grátis. Com os pés cansados e a promessa de umas sonoridades amenas, por ali se entrou, igreja muito austera, deu para perceber que era credo protestante, ouvia-se falar alemão e rapidamente deu para perceber que se estava na igreja luterana de Veneza. Foi um concerto inesquecível numa sala em que o viandante ficou face a um quadro que dava facilmente para perceber que tinha mão de mestre. E tinha mesmo: Martinho Lutero pintado por Lucas Cranach. Como não se podia fotografar, o viandante comprou um bilhete-postal, este belo retrato de Lutero pode ser visitado na comunidade evangélica luterana de Veneza no Campo dos Santos Apóstolos, em Cannaregio.



A primeira vez que o viandante veio a Veneza foi em 1981, tratava-se de uma reunião de gente que fazia programas de televisão dedica aos consumidores, três dias a visionar filmes e a comentá-los no salão nobre do Palazzo Labia, no canal Cannaregio. Reza o guia do viandante que em 1745-50 o salão de baile foi pintado a fresco por Tiepolo com cenas da vida de Cleópatra. Ao tempo era estação de rádio da RAI. Uma das atrações fora do trabalho foi ir a Pádua e outra visitar o Museu Peggy Guggenheim, nunca o viandante tivera oportunidade de ver ao vivo tantas obras consagradas de mestres contemporâneos. Mete-se ao caminho com igual intento, esta tarde, mas é atraiçoado por mais igrejas, praças, recantos, fachadas de edifícios, a coscuvilhice de andar a mirar os palácios do Canal Grande. Enfim, quando lá chegou, ia encerrar. Não houve desapontamento, o que não se vê hoje fica para a próxima, é o que vai acontecer. Entretanto, aqui ficam duas imagens da esplêndida passeata em que a procura de rumo foi menos relevante que o prazer de descobrir novos lugares sem bússola e sem carta.



Se é a última tarde em Veneza, morra marta morra farta, vou palmilhar o Cannaregio, depois jantar e cama. O local da devassa chama-se Fondamente Nuove, aproveito, é hora de missa, entro na igreja dos Jesuítas, dedicada a Santa Maria Assunta. Estranho a opulência da fachada, espera-se dos Jesuítas maior comedimento. Se a fachada tem pompa o interior não tem menos, carregado de mármore verde e branco, fica-se com a impressão de que a igreja está revestida de damasco. E para descansar as pernas o viandante dá-se o luxo de ficar a contemplar até ser posto na rua um quadro de Ticiano, o martírio de S. Lourenço. Toca de palmilhar, ali perto está um outro ícone veneziano o Cà d’Oro, uma das grandes atrações do Grande Canal, o mais belo exemplar do Gótico veneziano da cidade. E para acabar o dia o viandante percorre o gueto, um bairro judeu de Veneza, mantém o seu castiço mas judeus há poucos no bairro. O viandante detém-se no memorial do holocausto, percorre lentamente alguns estabelecimentos locais e vê o exterior de sinagogas. Anoiteceu, a fisiologia do septuagenário ainda é uma dádiva dos céus, está regalado, segue-se o último jantar em Itália, tudo arrumado para a viagem de regresso amanhã, seriam cinco da manhã e os russos vieram para a casa de banho fazer um pandemónio de autoclismo, duche e secador. O viandante considerou e reconsiderou se devia protestar. Ficou a dormitar, resignado. Queria levar as melhores recordações de Veneza e deixar no olvido a má criação destes russos convencidos.
E assim se põe termo a uma viagem que começou em Belgrado, andou-se por Sutomore, Kotor, Dubrovnik, Split, Plitvice, Rijeka, Trieste e a Sereníssima. O leitor que se prepare, dentro de umas semanas o viandante volta a Bruxelas e às Ardenas.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16727: Os nossos seres, saberes e lazeres (185): Uma viagem em diagonal pelos países dos eslavos do Sul (9) (Mário Beja Santos)

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