segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16745: Blogoterapia (282): Reflexões sobre a morte no adeus ao Vasco Pires (Francisco Baptista, ex-Alf Mil)

Super Lua
Foto: © Luís Graça


1. Em mensagem do dia 16 de Novembro de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos esta reflexão à volta da vida e da morte, a propósito do recente falecimento do saudoso camarada Vasco Pires:


REFLEXÕES SOBRE A MORTE NO ADEUS AO VASCO PIRES

Nós somos os homens, os seres eleitos, para quem Prometeu roubou aos deuses o fogo da imortalidade, tendo sofrido um castigo terrível pelo seu crime. Todos, enquanto seres pensantes vivemos essa promessa de imortalidade, que não passa de uma ilusão, pois acaba sempre num acidente mortal que pode ter várias causas: Acidentes de carro, de barco, de avião de motociclo, por armas de fogo, explosivos, doenças prolongadas ou fulminantes, falhas orgânicas várias e outras.

A morte leva os sábios, aqueles que parecem ter atingido na Terra a sabedoria dos deuses, como leva os ignorantes, os mais simples, os que vivem mais de acordo com a natureza sem procurar decifrar os seus segredos.

A morte do homem é um mistério que vem interromper o curso de uma vida, que sendo um paradoxo, pois parece que nascemos para morrer, só se compreende quando aceitamos a ordem natural do universo e nos integramos nela, nesse eterno retorno do Inverno e da Primavera, que a uns mata e a outros faz nascer.

Por essa ordem seremos seres finitos, em que se misturam a sabedoria, a ciência, a arte e a técnica, a estupidez, a imperfeição, o mau-gosto, a lucidez e a loucura. Quisemos subir tão alto para no final termos o mesmo destino de todos os outros animais ditos irracionais. Será que ao morrermos, nos segundos finais da nossa vida, teremos a percepção de que vamos deixar de existir, voltar ao nada donde viemos? Voltar a ser o pó donde viemos, de que falam as Sagradas Escrituras: “Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te hás de tornar” (Gen. 3, 19).

A morte traz-nos o fim de todas as ambições e de todos os maus defeitos associados, a vaidade, o orgulho, a inveja, mas não nos torna melhores, nem mais santos mesmo quando purificados pelo fogo e transformados em cinzas no silêncio dos cemitérios. Seremos julgados pelos nossos actos pelos que nos sobreviverem mas não seremos punidos ou louvados por eles. Os mais virtuosos e puros, os que mais se privaram, os que menos pecaram terão o mesmo fim dos malvados, dos desumanos, dos desalmados, dos sanguinários e da canalha que pulula pela terra inteira.

No final, para todos, será o não-ser que não se atinge na contemplação nem se define por combinações ou jogos de palavras. Todas as tentativas de o compreender ou explicar falham por excesso ou por defeito. Poderei vir a mudar e até tornar-me num adepto fervoroso de alguma religião adepta da salvação, mas a minha verdade actual, pela ausência de qualquer fé, leva-me a estes pensamentos um pouco desgarrados, ainda que respeite as crenças de todos os meus semelhantes.

A morte do nosso grande camarada Vasco Pires, mais novo um ano do que eu, pelo choque causado, volta a trazer-me ao pensamento este tema recorrente que me tem acompanhado, por períodos com maior ou menor insistência, desde a adolescência, quando comecei a tomar consciência de que estava condenado a morrer um dia.

Gostava muito das opiniões que o Vasco escrevia sobre alguns textos meus e sobre muitos textos de outros camaradas e identificava-me muito com elas. Admirava a forma clara, leal, sóbria, delicada e humana com que se exprimia mesmo quando por vezes discordava dos outros. Tinha um conjunto de qualidades e virtudes que nem todos temos, pelo menos a mim não me sobram e o mais provável é que me faltem.

O Vasco deixou-nos, todos o sabem, no dia 31 de Outubro, era Outono em Vilarinho do Bairro, terra onde nasceu. Subitamente, suavemente, como uma folha que cai, soltou-se da árvore da vida, sem fazer ruído, presumo eu. Pelas nossas raízes rurais, com todas as vantagens e inconvenientes de crescermos em comunidades pequenas bastante repressivas e vigiadas, onde. a par de tabus e restrições antigas. se cultivavam também virtudes ancestrais, que os nossos pais e avós nos procuraram inculcar, senti-me muito próximo dele. Fomos tantos que saímos dessas aldeias do interior, e o interior começava logo a 10 quilómetros das grandes cidades, os mais intelectualizados divididos entre o fascismo, a democracia, o comunismo e o anarquismo, pois a pressão totalitária, a ignorância política, o amor pela liberdade, essa jovem sedutora e sem preconceitos, e a curiosidade, podiam-nos arrastar para qualquer desses caminhos do idealismo ou por outros caminhos de obediência a inclinações mais físicas e sensoriais.

Pela impressão que me ficou do que conheci dele através do que escreveu, e eu li, pareceu-me que terá havido afinidades que nos aproximavam, sem nunca ter um conhecimento definitivo sobre o assunto, já que nunca, para pena minha, tive uma conversa pessoal com ele.

Gostaria de ter ido, no dia 5 de Novembro, à missa de 7.º Dia em sua memória por dois motivos:
Para sentir no ambiente natural e paisagístico onde ele nasceu se conseguia intuir um pouco mais do seu espírito, para o conhecer melhor e procurar ter com ele uma comunhão espiritual mais próxima;
Para falar com alguém, camaradas, familiares ou conterrâneos dele que me ajudassem a construir melhor a boa imagem, mas incompleta que guardo dele. Infelizmente não pude ir a essa missa por motivos familiares que não me deram qualquer saída.

Acredito que há homens que são bons, puros, justos, grandes, solidários, antes de morrerem, ao Vasco Pires, recordá-lo-ei sempre como pertencendo a essa galeria de notáveis.

Preciso de boas referências para continuar esta caminhada incerta, e tu camarada és uma boa referência, como esta lua cheia, que hoje brilha no céu, com mais intensidade.

Quando morrer não quero encontrar-te porque tu estarás em lado nenhum, o mesmo lugar para onde eu irei, mas enquanto for vivo não te esquecerei, continuarás a ser esse meu amigo tão distante e tão próximo pelas vivências portuguesas e africanas, por sonhos e ideais realizados ou não.

Até sempre camarada!

Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16571: Blogoterapia (281): o nosso blogue, um excecional serviço público ao dispor de todas as gerações, nacionais ou além fronteiras, onde se escreve e faz ciência histórica (Jorge Araújo)

6 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Um grande texto, de um grande homem, o Francisco Baptista, homenageando outro grande homem que nos deixou, com saudade (e sem que alguma vez nos tenhamos encontrado, fisicamente falando).

O Vasco era um bairradino, de alma e coração, que os caminhos da guerre levaram até à Guiné, a Gadamael, em 1970/72, e que o Brasil acolheu, logo a seguir, como sua segunda pátria. Manteve sempre a sua nacionalidade portuguesa, e mais do que isso, a sua idiossincrasia, a sua marca, o meu ADN português dos sete mares...

O Baptista é um transmontano, puro e duro, que é capaz de expor, em público, no nosso blogue, os seus sentimentos mais profundos sobre a vida e a morte, sen ferir o pudor de ninguém, crente ou não crente, com esta aparente naturalidade e sobretudo com esta grande nobreza neste texto que eu li e reli, logo de manhã cedo, com emoção.

O Vasco era um os "nossos", sem nunca nos termos conhecido... Bastou a sua passagem, em vida, pela Guiné e pela nossa Tabanca Grande. Obrigado aos dois, são pessoas como eles, o Vasco Pires e o Francisco Baptista, camaradas, amigos, portugueses, que fazem Grande esta Tabanca.

Joaquim Mendes Gomes disse...

Limito-me a subscrever muito respeitosamente estas tão luminosas palavras sobre um nosso camarada...Deus o receba na sua glória.
Joaquim

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

Não tenho tido tempo para participar mais activamente no nosso Blogue mas isso não significa que não o acompanhe diariamente (quase, quase,,,) mas falta-me a disponibilidade para a intervenção.
E bem sei que o Blogue precisa disso (há que alimentá-lo, pois é muito voraz) mas vou fazendo o que posso, dando 'sinal de vida' através dos parabéns aos aniversariantes e sempre, sempre, com a esperança de que 'para a semana vou conseguir'... vê-se!

Mas era impossível não reagir a este texto de antologia do Francisco, de reflexão sobre um tema sempre presente ao longo das nossas vidas e que, teimosamente, sempre procurámos evitar aprofundar.
O pretexto foi a partida do Vasco Pires. O que o Baptista escreve sobre ele é totalmente subscrito por mim. Não, não é preguiça ou simples economia de palavras e tempo, é porque realmente mais seria escusado.
O falecimento apanhou-nos a todos de surpresa. Acho que ninguém sabia que estaria debilitado. Acho que ninguém previu ou pressentiu a sua morte. Se calhar, nem ele.
Mas as intervenções aqui no Blogue ganharam o meu respeito, consideração e admiração e como tal, a sua morte, para além da surpresa, deixou-me também numa espécie de 'rejeição'.

Voltando ao que o Francisco escreveu digo que o seu texto poderia muito bem ser trabalho de base para uma (ou umas) boa tertúlia de discussão sobre os diversos aspectos que nele estão contidos com vista não a encontrar 'solução' para a morte para sim para sobre isso se reflectir e elevar pensamentos e acções.

Obrigado, Francisco, por este incontornável texto, que na prática também é uma justa e merecida homenagem ao Vasco Pires.

Hélder Sousa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

... De madrugada, e cada vez mais com mais insónias, nem sempre escrevemos direito...

Eu não queria dizer "o meu ADN português dos sete mares"...mas sim o "seu (dele) ADN"...

Já são muitas mortes (quase todas "antes de tempo"...) dos nossos camaradas e amigos da Guiné... Algumas "tocam-nos" nais do que outras, por se tratar de camaradas ou amigos com quem interagimos mais... Não vou aqui discriminar ninguém... Infelizmente, esta lista vai "engrossando" com o tempo... LG
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Lista dos amigos/as e camaradas que da lei da morte se foram libertando
(n=50):


Alfredo Dinis Tapado (1949-2010)
Amadu Bailo Jaló (1940-2015)
António da Silva Batista (1950-2016)
António Dias das Neves (1947-2001)
António Domingos Rodrigues (1947-2010)
António Manuel Martins Branquinho (1947-2013)
António Rebelo (1950-2014)
António Teixeira (1948-2013)
António Vaz (1936-2015)
Armandino Alves (1944-2014)
Augusto Lenine Gonçalves Abreu (1933-2012)
Carlos Geraldes (1941-2012)
Carlos Rebelo (1948-2009)
Carlos Schwarz da Silva, 'Pepito' (1949-2014)
Daniel Matos (1949-2011)
Fernando Brito (1932-2014)
Fernando [de Sousa] Henriques (1949-2011)
Fernando Rodrigues (1933-2013)
Francisco Parreira (1948-2012)
França Soares (1949-2009)
Humberto Duarte (1951-2010)
João Barge (1945-2010)
João Caramba (1950-2013)
João Henrique Pinho dos Santos (1941-2014)
Joaquim Cardoso Veríssimo (1949-2010)
Joaquim Vicente Silva (1951-2011)
Joaquim Vidal Saraiva (1936-2015)
José António Almeida Rodrigues (1950-2016)
José Eduardo Alves (1950-2016)
José Fernando de Andrade Rodrigues (1947-2014)
José Manuel P. Quadrado (1947-2016)
José Marques Alves (1947-2013)
José Moreira (1943-2016)
José (ou Zé) Neto (1929-2007)
Luís Borrega (1948-2013
Luís Faria (1948-2013)
Luís F. Moreira (1948-2013)
Luís Henriques (1920-2012)
Manuel Castro Sampaio (1949-2006)
Manuel Martins (1950-2013)
Manuel Moreira (1945-2014)
Manuel Moreira de Castro (1946-2015)
Manuel Varanda Lucas (1942-2010)
Maria da Piedade Gouveia (1939-2011)
Maria Manuela Pinheiro (1950-2014)
Rogério da Silva Leitão (1935-2010)
Teresa Reis (1947-2011)
Umaru Baldé (1953-2004)
Vasco Pires (1948-2016)
Victor Condeço (1943-2010)

Anónimo disse...

José Manuel Moreira Cancela na página do Facebook da Tabanca Grande, com data de hoje:

https://www.facebook.com/profile.php?id=100001808348667


Adorei o texto do Francisco Baptista. Há uns anos atrás conheci outros camaradas que também escreviam assim,no nosso Blogue,não sei porquê,cansaram-se.

Não te canses tu,amigo Baptista.É um privilégio ter-te de vez em quando ao meu lado e convivermos, e não esqueças o que sabes fazer de melhor... que é escrever.

Um abraço

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Meu caro Zé Cancela: o que queres que eu te diga sobre os camaradas que se "cansaram" do blogue ? São 13 anos a blogar, mais de 16700 postes, 731 camaradas inscritos no blogue, formalmente inscritos (mas muitos mais, 2313, na página do Facebook da Tabanca Grande)...

Muitos de nós já raparam o baú da memória, já fizeram as pazes com o passado, e hoje a Guiné-Bissau é uma deceção, não era o país que todos desejávamos que fosse, nós, os amigos da Guiné e sobretudo os guineenses... Mas quem está 100% satisfeito com o país que lhe caiu na rifa ? O mundo é hoje uma trampa, está cada vez mais feio e perigoso... E podemos especular sobre (antes de temer) o que ainda nos espera... Com a nossa idade e experiência, só nos resta sermos, não direi otimistas (só os idiotas é que são otimistas...) mas positivos e proativos...

Zé Cancela, 13 anos é muito tempo... Estamos todos cansados...Cansados da vida e da guerra... Bolas, são 6 comissões!.... A p... da guerra não durou tanto... A malta vai "desertando", "ficando pelo caminho", "envelhecendo", "entristecendo"... e "morrendo".

Esperemos que entre "sangue novo" na Tabanca Grande... Estou cansado, o Carlos Vinhal está cansado, os nossos colaboradores permanentes estão cansados... É humano, é normal, era expectável...

E depois temos a concorrência do Facebook, que é "fast food", é "pudim instantâneo"!...

Reconhecemos que o blogue é mais exigente, dá mais trabalho, tanto para quem escreve como para quem lê.... O blogue e o facebook têm missões diferentes, estilos diferentes, e até públicos diferentes...

Um alfabravo do Luís