quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16671: Os nossos seres, saberes e lazeres (183): Uma viagem em diagonal pelos países dos eslavos do Sul (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Junho de 2016:

Queridos amigos,
Tendo um pouco mais de paciência, aqui se regista o final de viagem na Croácia[1], logo a seguir é uma incursão brevíssima pelo Triste e Veneza.
Abono que Rijeka é não só uma beldade como tem todos os predicados para ser a última estação desta corrida em diagonal deste lado do Adriático. Com sentido ou falta dele, não me saía do espírito um esplêndido livro de Stefan Zweig "O mundo de ontem", um assombroso relicário de recordações de um império austro-húngaro que desapareceu do mapa com tais consequências que também contribuiu para o novo caldeirão balcânico. Mais isso é outra história, o que aqui se recorda é que Rijeka é uma preciosidade desse tempo imperial, está bem marcada pela presença veneziana.
E a viagem continua.

Um abraço do
Mário


Uma viagem em diagonal pelos países dos eslavos do Sul (7)

Beja Santos

Saio do Parque Nacional dos Lagos de Plitvice contrafeito, sentia-me aqui muito bem, mais a mais uma chuva miudinha persistente acompanha-nos até à estação de autocarro e aqui desaba uma chuvada a sério, uma trintena de indivíduos de várias nacionalidades tentam o prodígio de resguardar as malas na paragem, operação insana. Felizmente que o autocarro chega a horas, o nosso destino é Karlovac, haverá depois uma mudança para o nosso destino Rijeka, no golfo do mesmo nome, ligado à península de Pula, aqui se sediava a armada militar do Império Austro-Húngaro. Não se escolheu Rijeka à toa, andou-se a namoriscar imagens surpreendentes, que a máquina fotográfica confirma. Rijeka foi o maior porto da Jugoslávia, é uma das principais cidades da Croácia, um lugar de trânsito turístico muito animado, algumas das maiores estâncias da Croácia situam-se à volta de Rijeka. Como vem sendo o hábito, temos aqui as chancelas presença austro-húngaro e italiana no seu melhor. O céu estava nublado, foi o melhor que se conseguiu.



Retenho estas imagens de imponência no centro histórico de Rijeka, uma cidade que a partir da Idade Média pertenceu a príncipes croatas, no princípio do século XIX era propriedade do Vice-Marechal austríaco Laval Nugent, Veneza está do outro lado do Adriático, a navegação é uma permanente riqueza de todas estas cidades. Indicadores de prosperidade não faltam. A despeito do que se mostra, Rijeka é uma cidade moderna, de manhã e à tarde chegam autocarros com italianos, sobretudo do Trieste, bem como eslovenos, vizinhos próximos, a cidade acolhe clínicas dentárias e de implantologia topo de gama, dizem que os preços são imbatíveis e os serviços ultrapassam todas as expetativas.




Não é qualquer cidade que se pode gabar de ter uma entrada tão bonita, uma casa de ópera tão faiscante, uma arquitetura de gosto tão requintadamente ocidental. Inventara-se uma Jugoslávia na Cortina de Ferro, uma coisa de otomanos, ciganos, folclore e tapetes orientais, pura mentira, essa Jugoslávia era um compósito de eslovenos que estudavam na Alemanha e falavam alemão, desta costa croata aberta à presença italiana, de uma monarquia sérvia que seguia os ditames da moda em Viena e Budapeste, e muito mais se podia acrescentar. Rijeka fala por si, de um passado que emparceira religiões, estilos artísticos arrojados, uma Jugoslávia encostada a leste com a Bulgária e a Roménia e uma Albânia a escassos quilómetros do Montenegro. Dou comigo a pensar num escrito extraordinário de Stefan Zweig “O mundo de ontem”, o mundo da sua infância, multilingue, multicultural, de fronteiras periclitantes e tendo como centro nervoso Viena e o sonho imperial dos Habsburgo. Aqui sente-se esse mundo de ontem.


Rijeka era um município romano, dava pelo nome de Tharsaticum. É uma bela surpresa, a de entrarmos neste recanto bem preservado. Naturalmente que o império romano construía habitações portuárias nestes recantos privilegiados, caso do golfe de Rijeka.



Isto de não falar croata, de entrar numa igreja sumptuosa e confrontar um altar esplendoroso onde há uma legenda que conta uma história bizarra de um alcoólico que desafiou Deus, e quando a justiça divina se consumou deixou aquela marca que se fez junto ao Cristo crucificado, será a relíquia mais valiosa de Rijeka. O importante é o vigor da composição barroca, há quem considere este estilo uma profunda vulgaridade, o oposto da espiritualidade. Para a minha sensibilidade, estou confrontado com algo que é muito belo, um convite à oração, uma projeção do sublime. E chega-me.



Está na hora da abalada, a olhar para o relógio e com a mão no trólei, lá vou passarinhado onde a vida pulsa, é hora das compras e os locais procuram legumes e fruta, eu procuro cor, sinto-me correspondido por este vermelho fosforescente à volta de um velho mercado Arte Nova recuperado a preceito. E encontrei a mais linda porta desta viagem, não me importava nada que fosse a porta do meu prédio, mesmo ciente da despesa que deve acarretar a sua conservação. E chega de considerações, aqui arribei num entardecer enevoado e pluvioso, parto num fim de manhã cheio de sol, levo uns pedacinhos de piza, daqui ao Triste ainda são duas horas. Mal sabia eu que ia encontrar uma cidade parente gémea de onde agora parto. Afinal, o mundo ocidental é mais amplo do que a gente pensa.

(Continua)
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Notas do editor

[1] - Poste anterior de 26 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16640: Os nossos seres, saberes e lazeres (181): Uma viagem em diagonal pelos países dos eslavos do Sul (6) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 de outubro de 2016 > Guiné 83/74 - P16657: Os nossos seres, saberes e lazeres (182): O Pedro Milanos, vinho tinto, DOC Douro, da Quinta da Graça... Hoje, até às 21h30, no Mercados Vinhos, no Campo Pequeno, em Lisboa, com o Zé Manel Lopes ("Josema") e a Luísa Valente...

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

BS, é «pau para toda a colher».

É muito interessante vermos as suas sanzalas da velha europa numa sequência das velhas tabancas da nossa nova Guiné.

Mas verifico que BS não se lembrou de nos fotografar as populações de Calais oriundas das ex-colónias, e protectorados ingleses da África oriental, que foram espalhadas para as capitais francesas.

Será tudo a seu tempo.