sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16650: Notas de leitura (896): “A Guerra da Guiné”, por António Trabulo com a colaboração de Leston Bandeira, Editorial Cristo Negro, 2014 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Outubro de 2016:

Queridos amigos,
Temos aqui um trabalho surpreendente de um neurocirurgião que está reformado desde 2009 e não pára de escrever. Como ele esclarece, cumpriu o serviço militar obrigatório como médico da Reserva Naval, a bordo do navio hospital Gil Eanes, nos mares da Terra Nova.
O seu conhecimento da Guiné é puramente livresco. E este seu livro, primoroso para quem pretende iniciar-se nos principais factos desta guerra, cumpre satisfatoriamente as boas regras da divulgação imparcial.
Não hesito em sugerir a sua leitura por todos.

Um abraço do
Mário


A Guerra da Guiné, por António Trabulo

Beja Santos

Confesso ter sido uma grande e agradável surpresa a leitura de “A Guerra da Guiné”, por António Trabulo com a colaboração de Leston Bandeira, Editorial Cristo Negro, 2014. António Trabulo é neurocirurgião reformado e tem os seus trabalhos publicados na Europress, Parceria A. M. Pereira, Esfera do Caos, Editorial Cristo Negro e Fronteira do Caos. Trata-se de um livro organizado por eventos ou marcos cronológicos, tudo num considerável esforço de síntese pautado pelo rigor informativo e uma boa capacidade de divulgação. Tanto quanto sei, é depois do livro do Coronel Fernando Policarpo a grande angular sobre a guerra da Guiné.

Estando estruturado em pequenos e curtos capítulos, o autor não ilude que o seu conhecimento é livresco mas que recolheu testemunhos escritos na primeira pessoa e declara a sua independência: “Não me prendem à Guiné com os laços de amor que chegam a turvar a vista quando olho para Angola. Existem realidades que se apreciam melhor à distância". Vejamos com algum detalhe a organização de um livro cuja leitura se recomenda a todos.

Primeiro, o assassinato de Amílcar Cabral, os dados estão corretíssimos. A propósito da prisão, a mando de Sékou Touré dos conjurados que lhe vieram anunciar o assassinato, ele observa a entrada dos revoltosos na prisão: “Eram três dezenas de pessoas descalças e vestidas com camuflados, com a cabeça erguida, parecendo muito orgulhosos do que tinham feito”. E recorda a acusação do jornalista Fernando Baginha, anos mais tarde: “O golpe de 14 de Novembro de 1980 não é mais do que a continuação do golpe de 20 de Janeiro de 1973. Quer um quer outro destinava-se a levar ao poder um homem: Nino”.

Segundo, o autor descreve a utopia de Cabral à luz da formação das novas nacionalidades africanas, do pan-africanismo, das tentativas federalistas. Terceiro, dá-nos um pouco da história da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, enunciando a multiplicidade de lutas étnicas e de resistência à ocupação, destacando a figura mais singular da Guiné-Bissau antes de Amílcar Cabral, Honório Pereira Barreto. Terceiro, dá-nos a trajetória ideológica de Amílcar Cabral e a importância do período que passou na Guiné, entre finais de 1952 e inícios de 1954. Ficamos igualmente com um quadro sinótico dos movimentos nacionalistas, das etnias, do significado do massacre do Pidjiquiti. Já temos o cenário das opções da guerrilha em meio rural, começa-se a preparar a luta armada e desencadeia-se a guerrilha. O autor escolhe como acontecimentos dominantes nesses primeiros anos a “Operação Tridente” e o Congresso de Cassacá.

Quarto, a luta armada é um facto, espalha-se pelo território, desarticula-se a economia, nos anos subsequentes Arnaldo Schulz garante um enorme esforço militar, recorre a bombardeamentos e a operações por tropas helitransportadas. Há posições defensivas onde se vive no maior sofrimento. E cita Carlos Fabião: “Tite começou por ser uma desgraça. Depois ocupámos Jabadá, em frente a Tite, mas tivemos mais de 100 ataques fortes a Jabadá”. Entra em cena a guerra psicológica, os aldeamentos estratégicos, a africanização da guerra com a distribuição de armamento pelos civis das tabancas e a instrução de milícias, pelotões de caçadores nativos e a formação de companhias de caçadores africanos. Se Schulz não consegue parar a guerrilha, Spínola traz novas promessas: concentra meios, faz crescer o número das aldeias estratégicas, promove Congressos do Povo, faz escolas, estradas, inúmeras infraestruturas.

Quinto, nos seus textos sinóticos o autor refere lutas internas do PAIGC, o massacre de três majores e um alferes num período que se julgava de mudança radical da guerra no chão Manjaco, apresenta Marcelino da Mata, o aprisionamento do capitão cubano Peralta, descreve as operações “Gata Brava” e “Mar Verde”, deixa uma água-forte de Rafael Barbosa e da sua personalidade enigmática. É neste contexto que vem à baila informações sobre os prisioneiros portugueses, como se alimentavam as tropas portuguesas, quem eram os comandantes do PAIGC, os seus dirigentes políticos, do mesmo modo ficamos a saber quem eram os colaboradores diretos de Spínola. Ficamos igualmente a saber o que Amílcar Cabral pensava das mulheres bem como foram os seus dois casamentos.

Sexto, Amílcar Cabral não confinava a sua estratégia aos ataques a quartéis, a fazer emboscadas, a pôr minas e armadilhas nas picadas, foi um incansável diplomata, em 1972, o ano que precedeu a sua morte viajou 31 vezes, as Nações Unidas eram o seu objetivo maior, mas não descurava os fornecedores de armamento, alimentos e medicamentos, promovia todos os contactos necessários para arranjar bolsas de estudos para os futuros quadros. Do mesmo modo, o autor lhe dedica um texto de referência sobre o pensamento político. E assim chegamos à frustração de Spínola quando percebe que o Marcello Caetano lhe nega a abertura de negociações para uma solução política da guerra. Os textos aparecem no final da obra a um ritmo mais acelerado, fala-se dos acordos de Argel, da independência de facto, da execução de guineenses que tinham combatido do lado português, de uma nova república sempre entregue à violência, ao conflito e à instabilidade.

Na conclusão, o autor também não esconde o seu desalento: “A Guiné-Bissau não voltou a atingir o nível de cuidados primários de saúde e educação assegurados no tempo da guerra pelos militares portugueses. Os camponeses continuam a predominar no conjunto da população e a sustentar o país, mas pouco ou nenhuma influência tem na gestão da república, em que, apesar das realizações periódicas de eleições, mandam os antigos comandantes militares”. E o livro termina com a seguinte observação: “Uma das maiores vitórias de Amílcar Cabral acabou por se dar numa luta que ele sempre relegou para lugar secundário. As dificuldades impostas ao governo de Marcello Caetano pela guerrilha ajudaram a abrir os olhos de muitos oficiais portugueses para o futuro. O anquilosado regime a cair de podre. Incapaz de resolver, a tempo e com serenidade, a questão colonial, foi derrubado por uma revolta militar. Nascera de forma semelhante, a 28 de Maio de 1926”.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16639: Notas de leitura (895): "Guiné: crónicas de guerra e amor", de Paulo Salgado: texto da apresentação do livro, pelo poeta e jornalista Rogério Rodrigues

1 comentário:

Cláudia Novais disse...

Boa tarde
Parabéns pela excelente crítica! Represento a Editorial Cristo Negro. quem estiver interessado em adquirir o livro, poderá contactar claudiatrabulonovais@gmail.com.
O valor é 10 euros + portes de correio.
Atenciosamente,
Cláudia Novais