quarta-feira, 27 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16338: Os nossos seres, saberes e lazeres (165): Ai, se Bocage soubesse ou visse… (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Fevereiro de 2016:

Queridos amigos,
Asseguro-vos que estes setubalenses são afáveis, e quem veio de outras procedências e aqui assentou praça está contente e promete ficar.
É um espaço amplamente voltado para o rio e ensimesmado em ruas, ruelas e pracetas. Assomam monumentos que evocam tempos faustos, havia uma rica lavoura, os medievos fizeram do sal uma das suas principais riquezas; e há o entorno da Arrábida, as praias paradisíacas e a gastronomia tem os seus pergaminhos.
O pretexto era uma exposição de Júlio Pomar, com derriço fiquei mais tempo e não me arrependi.

Um abraço do
Mário


Ai, se Bocage soubesse ou visse… (2)

Beja Santos

Pois bem, atraído pelas entranhas de Setúbal, trajetos que escapam ao turista que vem à procura de praias, petiscos ou os monumentos consagrados, aproveitei a deixa de passear pelo mais vetusto, a Setúbal que teve muralhas, palácios e sede de bispado, aqui começou a cidade virada para o mar.


Já se falou de que Setúbal teve muralhas, hoje derruídas, praticamente esquecidas. O que aqui vemos, manifestamente desprezado, é uma entrada à volta de um pano de muralha, e lá ao fundo houve quartel de infantaria, o 11, hoje escola de hotelaria, dispõe de uma galeria municipal e consta que para breve ali aparecerá hotel onde no passado se erguiam as casernas dos soldados.


E não digam que não somos um povo divertido, estamos no Beco dos Proletários, em palácio da velha fidalguia, mas a desgraça maior são aqueles cabos que desfeiam o que nos devia merecer muito respeito. O que pensaria o senhor conde se por aqui passasse e visse o desaforo destes proletários na vizinhança?




Disse para comigo: olha, entraste a preceito na Idade Média, ou tempo muito parecido. A rua é elegante no seu enviesamento, prédios restaurados olham para prédios decrépitos, mas a inversa é verdadeira. E há estes arcos, felizmente bem integrados e condizentes do respeito pelo património histórico. O viajante mete conversa, há gente que veio do Norte e que arrumou a sua vida em Setúbal, andam contentes com a afabilidade setubalense; há mesmo quem tenha dito que nas últimas décadas o que era ruína pura se transformou em edifício com enlevo, há quem diga com o peito cheio de orgulho que Setúbal vai ser, nas próximas décadas, uma das cidades mais lindas do mundo. E di-lo com convicção, com a mesma convicção se regista tão bons sentimentos.


A época do Entrudo presta-se a atividades económicas muito dignas, este senhor está à espera da clientela, ainda lhe perguntei se era um negócio de aluguer, foi perentório – aqui é só para vender. Já me cruzei com espadachins, gatos e gatas, super-homens e rapaziada tirada da guerra das estrelas, acreditem que a curiosidade foi acicatada pelo turbilhão da cor, com esta garridice ninguém se irá disfarçar de Conde Drácula.



Há sempre um refrescamento de olhar quando se vem ao Museu do Trabalho, aproveitou-se lindamente uma fábrica ao abandono, o visitante tem ao seu dispor manifestações laborais da mais diversa índole. Desta vez, quedei-me frente à mercearia de outras eras, há mais de 60 anos frequentei uma parecida, no termo da Rua de Entrecampos, numa altura em que ainda não sonhávamos que ia aparecer a Avenida dos Estados Unidos da América, vendia-se arroz em cartuchos, azeite a granel, uma quarta de banha em papel manteiga, o milho tinha as suas medidas e havia a rasoira, móveis imponentes, o livro para registar as vendas a fiado. Tenho quase a certeza que todos vós têm lembranças deste mundo passado, agora peça de museu.



Um dos propósitos que me trouxe a Setúbal foi ver estes desenhos de Pomar, a exposição terminava nesse dia, sempre tinha perdido a ocasião de conhecer tão belas obras. Estava interdito tirar imagens, limitei-me ao que reza na brochura. Convidado pelo Metropolitano de Lisboa, nos anos 80, a desenvolver um projeto plástico para o revestimento azulejar das paredes da estação do Alto dos Moinhos, Pomar tomou como tema quatro grandes poetas – Camões, Pessoa, Bocage e Almada. Sensível à especificidade do espaço da estação de metropolitano, o artista inspirou-se na técnica cursiva e caligráfica dos grafitis e nas pinturas parietais das grutas de Altamira e de Lascaux, como ponto de partida para um intenso olhar pessoal. Esses desenhos foram depois expostos na Gulbenkian, mais tarde em Setúbal, no que toca a Bocage. E o poeta regressou 30 anos mais tarde, nas comemorações que a autarquia lhe preparou.



Aqui houve quartel, mesmo em frente ao Sado. Daqui saíram infantes para a guerra, veio a paz e foi reciclado, deu em galeria municipal, escola de hotelaria e turismo, e vai ter hotel, aqui ficam as imagens para desfazer equívocos, tudo quanto é quartel pode ser convertível.

(Continua)
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Nota do editor

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