quarta-feira, 18 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16103: Os nossos seres, saberes e lazeres (155): A pele de Tomar (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Fevereiro de 2016:

Queridos amigos,
Foi uma digressão em várias direções, meteu portas, detalhes do Convento de Cristo e um passeio à Quinta da Anunciada Velha, cuja origens se confundem com os primórdios da nacionalidade, pertenceu a um moçárabe que a vendeu à Ordem do Templo, daqui passou para a Ordem de Cristo, viveu um mau bocado com a extinção dos conventos, em 1834, pertenceu à família do conde de Tomar, é hoje uma casa esplêndida que inclui turismo de habitação, foi renovada com enorme desvelo por Sofia e António Pinto da França, falamos exatamente daquele que foi embaixador de Portugal na Guiné-Bissau em 1977 e 1978 e que escreveu "Em Tempos de Inocência, Um Diário da Guiné-Bissau", foi um diplomata que amou aquela terra e sobre ela escreveu: "As gentes que apreciam carregar uma dignidade ancestral. Demonstravam grande senhorio, cultivavam com esmero e minúcia os rituais de secular hospitalidade. A qualquer porta que se batesse, por mais pobres que fossem os seus habitantes, logo nos convidavam festivamente a entrar e nos ofereciam nem que fosse um simples chá nos mais rudimentares recipientes".

Um abraço do
Mário


A pele de Tomar (5) 

Beja Santos



Primeiro, uma digressão mundana, venho à procura de portas, que tenham caráter, que representem poder ou estatuto, portas com charme, singulares, daqueles proprietários que não se fiam no gosto do construtor, querem bilhetes de identidade. O que é que me aderiu na primeira porta? É maciça, tem uma solidez dos materiais e manutenção, quem lá vive gosta de ordem, recebe quem quer com este magnífico cartão-de-visita. Há muito que a Fanny não vem a esta loja, basta olhar para as paredes corroídas, é uma porta com muito uso, está marcada pela modernidade do seu tempo, oxalá que quem vier reparar este edifício, ou mesmo demoli-lo, fique condoído pelas linhas magníficas que marcaram a entrada da loja da Fanny, que ela viva em paz, quem transacionou nesta loja e deixou tão linda porta merece perdão.




Agora, subo às alturas, chegou este sol de Inverno, vou em demanda de uma luz crua que reflita a suavidade rósea da pedra e que destaque da pátina da janela mais linda que há em Portugal pormenores soberbos. Subi, vi e venci. Se D. Manuel I, o Venturoso, não andou por aqui numa onde de vertigem e deslumbramento, não subsistem dúvidas. Aceito que ele tinha muito dinheiro, podia convocar os maiores artífices das quatro partidas do mundo. Mas tudo isto são pedras que falam para a eternidade, isto é alegria de viver, de ver a pedra rendilhada, que nem bordado à mão de Bruxelas; até a carranca é magnífica, mesmo com a pedra doente. Vem-se mil vezes a estas alturas e aprende-se sempre, toda esta pedra levanta voo, em glória de terras descobertas, de Cristo em viagem para outros continentes, até este guerreiro de Cristo partiu de Tomar e foi à Índia e ao Brasil, fez circunavegação por todo o continente africano, demandou o Japão. Por isso estarreço vezes sem conta diante desta epopeia de pedra.



Algures, ali para os lados de Cem Soldos e as Algarvias, há uma quinta que vem desde os primórdios da nacionalidade, houve até um moçárabe que vendeu o local à Ordem de Cristo, é uma casa ligada ao conde de Tomar, sente-se no seu interior uma fidalguia convivente. O casario deu muitas voltas, segundo a proprietária, foi recebido na antiga abegoaria, dali a visto uma bela vinha, atapetada de verde, os olhos espraiam-se até às colinas. É uma senhora gentil, viúva de diplomata, mostra o interior e o exterior dos edifícios com uma grande candura, com voz pausada relembra antepassados, férias, obras imensas, onde se descobriram no entulho preciosidades. É o caso deste banco, quem nos diria que estes azulejos quinhentistas estivessem expostos aos caprichos da natureza?


Esta torre manuelina tem igualmente valor concelhio, saímos da casa, percorremos um caminho e subimos à Torre, ali perto há um tanque, consta que é um lugar mágico. Tomei a sério tudo quanto me disse a anfitriã, ali escreveu e recebeu cartas de amor, ali vinha descansar depois de acompanhar o marido pela Indonésia, Brasil, Guiné-Bissau, Angola e Itália, e muito mais. Pusera-se uma tarde de grande serenidade, eu só queria uma luz que me desse a certeza que registava fielmente a cor da pedra e o enlevo da torre octogonal que sobe, com donaire, pelo céu limpo de nuvens.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16075: Os nossos seres, saberes e lazeres (154): A pele de Tomar (4) (Mário Beja Santos)

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