quarta-feira, 4 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16048: Os nossos seres, saberes e lazeres (152): A pele de Tomar (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Janeiro de 2016:

Queridos amigos,
Há quem se faça à viagem para ir ao Vale dos Reis, contemplar pirâmides, ou percorra o Tamisa para sentir no rio todo o poder de então e o esplendor da City, a maior praça financeira da Europa. Intramuros, as nossas viagens não deixam de ser surpreendentes e o que Tomar oferece tem uma magnificência discreta, há para ali um brilho antigo ditado pela presença templária, pelos bens da Ordem de Cristo, por aquele rei D. Manuel que não descansou enquanto não viu o seu sonho cumprido, a Charola, talvez a mais retumbante ao cimo da Terra.
A Tomar que eu calcorreio são vestígios, pormenores de materiais usados na arquitetura em vários séculos, são, como o título da rubrica aponta, manifestações epidérmicas, que se caldeiam entre o passado e o presente, suficientemente elucidativas para tomar a cidade nos braços e olhá-la com ternura, bem o merece.

Um abraço do
Mário


A pele de Tomar (3)

Beja Santos

No final do seu livro “Viagem a Portugal”, José Saramago escreve: “A viagem acabou. Não é verdade. A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: ‘Não há mais que ver’, saia que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que nunca foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava”. Pois vai ser assim a viagem que hoje enceto, embrenho-me em terra conhecida, em espaço que posso percorrer às cegas, procura uma luz diferente, é um a vagabundagem sem tempo, quero é uma certa luz por minha conta. E esta Tomar que me desvanece está num grande sossego.




Não, não ando à procura do tempo perdido, como o escritor Marcel Proust. É a sedução pelos espaços cuidados, o direito a uma cidade se tratar e retratar, ter memória, por aqui se calcorrear e dizer: é medieval, é renascentista, por aqui andaram mercadores, por aqui passou o Infante feliz depois de ter recebido as tenças, ali permaneceu o Venturoso que não descansou enquanto não viu a Charola transformada em suprema riqueza, em tesouro inigualável. Aqui deixo a minha profissão de fé pelos esquinados, por uma porta vetusta que abre para uma mansão bem conservada. E prossegue a viagem.




O que gosto mais nas portas é a proporção, o visível de um equilíbrio que o criador encontrou entre o lugar por onde se entra e sai e a largura e o comprimento do edifício. Acresce que quem lá vive tem sobejas vezes bastante orgulho em manter as portadas conservadas, é do senso comum que quem olha e vê a caliça a cair e a tinta a descamar lhe vem à ideia que temos lá dentro família desafortunada, já incapaz de manter preservado património que vem de outras eras. Porque o passado respeita-se, é um dos últimos assomos da dignidade que não queremos ver desrespeitado, na boca dos outros.




Tenho para mim que estas duas figuras à porta de templo religioso falam como parábola, dão para meditar entre o poderoso e aquele que se julga fraco, as vaidades mil, os abusos de poder, as insânias do forte contra o débil acabarão por ser castigadas. É esta a minha interpretação, e por isso aqui me detenho para me lembrar que venho do pó e em pó me hei de tornar. E depois há as fachadas, o tempo acumulado, os cuidados na manutenção desse bem precioso que são os valores ancestrais, e temos a contrapartida de situações de abandono, é caso para especulação: será litígio entre herdeiros? As obras começarão amanhã? Os proprietários andarão por França ou pela Suíça a amealhar tostões para as obras de vulto? As especulações não pagam imposto, qualquer dia o viajante passa por aqui, pode dar-se o caso do edifício estar refeito, não há mais motivos para a especulação.


Acreditem ou não, tive que esperar por um dia cinzento para que tudo acontecesse como eu tinha sonhado, a pedra em carne viva, parece uma moldura de uma grande construção, tem vontade de subir aos céus, felizmente que a câmara tem ecrã reduzido, cada um anteveja como foi este edifício no passado e se felicite por haver reconstrutores que sabem selar o passado ao presente e dar ao viajante o sentimento de que tudo tem futuro, e que Saramago tem razão no tal livro que já citei: “É preciso voltar aos espaços que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já”.

(Continua)
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Nota do editor

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