quarta-feira, 20 de abril de 2016

Guiné 63/74 - P15995: Os nossos seres, saberes e lazeres (149): O ventre de Tomar (12) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Abril de 2016:

Queridos amigos,
Há um limite para manter estas séries ao redor de um tema, neste caso o interior de lugares que mereceram a nossa predileção, em Tomar. Uma despedida com bastante sentimento.
Como não perco uma oportunidade para andar a remexer em papéis e traquitana, fui visitar uma loja de velharias, um alfobre atrativo para colecionadores, sobretudo de selos e moedas. Um dos ícones monumentais de Tomar é o Convento de Santa Iria, a beijar o Nabão. Quem lhe viu o exterior não pode sonhar com o descalabro que vai lá dentro, foram séculos a mudar de dono e a extinção das ordens religiosas foi a mais funda das pazadas de cal. E a última imagem não é casual, retrata o modo como abandonamos ao maior desprezo o peso da História.

Um abraço do
Mário


O ventre de Tomar (12)

Beja Santos

Hoje vou passear-me pela antiguidade, melhor dizendo olhar e fazer reparos sobre coisas antigas, algumas delas de valor incalculável. Começo por uma digressão a um estabelecimento onde se vendem móveis, loiças, velharias com ou sem préstimo, livros, muitos deles associados a Tomar, e peças de colecionismo, numismática, filatelia, bilhetes-postais. O estabelecimento mudou de poiso, está dentro de um prédio antigo e o espaço ganhou com as obras, terá sido oficina, tem dimensão para por ali deambular com tempo, ter até conversas com história. Fui atendido por um jovem que se preparou em restauro e gosta de artes decorativas, combinámos que lhe vou emprestar todos aqueles postais que saíam de Tomar desde o século XIX e iam até Angola, isto de ter uma avó tomarense presta-se a memórias. Aliás, sempre que posso vou à feira de velharias, por vezes sou bem-sucedido. Por ignorância, continuo a interrogar-me como é possível a cidade não dispor de um museu municipal, é uma quase ofensa ao passado, sempre presente neste casco histórico por onde andou a mão de um infante-empresário chamado Henrique, ao que parece um expedito administrador da Ordem de Cristo, aqui se ajuntou dinheiro para as caravelas africanas.





Despeço-me, estou alvoroçado, é hoje que vou conhecer por dentro o Convento de Santa Iria, passo vezes sem conta pelas suas paredes exteriores mantidas e andava roído de curiosidade, vejo sempre o monumento fechado, pedi a intercessão da Isabel Miliciano, é hoje que se vai operar a visita. O que leio sobre a história do monumento nem chega a ser rocambolesco, compras e trocas, invasores e depredadores, vida religiosa e vida laica, da época quinhentista ao escombro que visitei, quantas vicissitudes!



Quem vê caras não vê corações. Por fora, um conjunto de fotografias sugestivas deixa o viajante indeciso, parece que está tudo mantido, embora seja percetível que há muitíssimo a fazer com aquele monumento devotado à padroeira da cidade, a igreja é visitável o resto está fechado, aguarda um plano para reaproveitamento de um interior apodrecido, jamais visitara ruínas tão estranhas. E, no entanto, o claustro seiscentista, a respirar o espírito da Reforma, pequeno e austero, é um deleite. Depois começa a viagem a zonas bombardeadas, o caos dos estilos, casas apodrecidas, escritórios que parecem ter sido saqueados, tudo aqui se apresenta. Mostro agora a seguir um lajedo com vários séculos, demorei a encontrar o ângulo possível onde não houvesse excrementos ou sinais de puro vandalismo. Vejam.


Quem nos guia é um senhor paciente que gosta de mostrar aquilo que não se prevê ou antevê no estado geral da ruína. Teríamos visitado a zona de lagares e da vasta autossubsistência do convento e foi-nos indicado uma divisão onde apareceu este nicho e nem vale a pena conjeturar se foi capela ou recanto de oração, esta pedra fala de um passado devoto e diz-me a imaginação que esta pedra grita ao escândalo de tanto abandono, desta incompreensível perdição.


No primeiro andar terá vivido gente com posses e recursos, muito provavelmente aqui instalaram, entre boas madeiras, um lugar aconchegado para conversar, fazer renda e leituras, era o tempo em que se punha vidro colorido nas portadas e não se regateava aformosear as paredes revestindo-as de madeiras.


A viagem chega o fim, será possível? Aqui se tem dito até à exaustão que as viagens não acabam, os viajantes é que fenecem. Neste caso, há que repensar como irá prosseguir a viagem depois de se tocar em tanto ventre e de se ter auferido tantas alegrias e também tristezas, baste vir ao Convento de Santa Iria juncado de tanta ruína, um edifício com uma vista primorosa sobre o Nabão e sobre a cidade, mas é assim a lei dos homens, uma no cravo e outra na ferradura, felizmente que fizeram obras para que não haja derrocada. E despedimo-nos com uma imagem em que um troço de um claustro seiscentista viu embutido umas ferragens Arte Deco, foi afirmado ter sido o arquivo de um banco e um dia partiram apressados, parece ter vindo uma epidemia, deixaram tudo ao abandono. Não conheço nada de mais cruel que deixar a História ao abandono. E muito obrigado pela paciência com que me leram este tempo todo.


Fim
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Notas do editor

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Último poste da série de 14 de abril de 2016 Guiné 63/74 - P15974: Os nossos seres, saberes e lazeres (148): A pele de Tomar (1) (Mário Beja Santos)

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