quinta-feira, 14 de abril de 2016

Guiné 63/74 - P15974: Os nossos seres, saberes e lazeres (148): A pele de Tomar (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Dezembro de 2015:

Queridos amigos,
Esta cidade de Tomar é um alfobre de surpresas. Já se falou do ventre, lojas onde se encerram coisas de outras eras, estão ali de pedra e cal a testemunhar hábitos do passado, adaptam-se sabe Deus com que esforço aos caprichos do nosso consumismo ondulante.
Hoje fala-se da pele, sinais exteriores de riquezas malbaratadas, outras vulgarizadas pelo olhar e outras aceites como o ar que respiramos. Mas não pode ser assim, há manifestações da pele que têm um cunho caraterístico, os pedaços de pedra à vista do casco histórico (havemos de lá voltar), portas tomarenses de quando a cidade pulsava quase exclusivamente numa margem; há aquele açude incompreensivelmente entregue à natureza que vai tomando conta de tudo; e há um Nabão que sai airoso da cidade, cheio dos dourados do Outono, o reverso da moeda daqueles dias curtos que já nos fazem suspirar pela Primavera.

Um abraço do
Mário


A pele de Tomar (1)

Beja Santos

Uma das singularidades de Tomar é a envolvente rural, o murmurejar de um rio quase sempre pachorrento e discreto, o ter cravado bem perto do casco histórico uma belíssima mata de onde se contempla o castelo e a Charola. A cidade não é ruidosa, não sente o frenesim ou o tumulto dos grandes centros urbanos, não se anda nas ruas aos gritos e as pessoas param para se cumprimentar. O que dá tempo para olhar o arvoredo, quedar-se diante de portas onde se sente o cunho do tempo, andarilhar até ao açude, um daqueles mistérios de como tanta beleza está desbaratada, cercada de belo arvoredo que nos conduz aos escombros da fábrica de fiação. É a pele, é a superfície das coisas, não é necessário comunicar com os outros, resta sentir e meditar.




Eu preferiria estar ali comodamente sentado, junto do açude que podia ser um mimo turístico, podia ali haver um parque e um equipamento onde apetecesse passar umas horas a ouvir o correr das águas, em qualquer estação do ano. Mas não, faz-se a visita, contempla-se uma vez mais esta indiscritível beleza e ala morena que se faz tarde, não há um banco para a gente se sentar e com as chuvas o melhor é vir de galochas. É bem possível que esta natureza expectante venha a favorecer o aparecimento de hotéis de charme, condomínios de luxo, sei lá que mais. Mas acho que os tomarenses mereciam coletivamente esta fruição. Estou bem contente por começar a falar da pele de Tomar neste sítio.




Quem vê portas não vê interiores, resta a especulação: a porta tão bela corresponderá um recheio idêntico? A porta é um sinal de distinção, mas embarga-nos a entrada, é preciso anunciar quem chega, e quando a porta se abre para deixar sair podemos medir a representação de quem por ela sai. Estão aqui três marcas de dois tempos, as duas últimas portas correspondem a um período amistoso e ascensional de Tomar, aí pela década de 1940, o peso da industrialização impressionava. A partir daí, a cidade cresceu na outra banda, deste lado ficaram vestígios indeléveis de um poder que se esfumou.




Os fotógrafos amadores também têm dores de cabeça, não há autodidatismo que permita saber de ciência certa qual a melhor hora para apanhar estes tons dourados no Nabão à saída da cidade, a confluir com S. Lourenço. Ali se esteve ao princípio e ao fim da manhã, num fim de Novembro, à espera de sol e de um céu azul. Insatisfeito, o fotógrafo amador regressou depois de almoço e não subsistiram mais dúvidas, era agora ou nunca. Fixou-se aquilo que enche o coração de quem ama o rio e os seus arvoredos e a lânguida partida do rio a caminho de um curso de água mais cheio. Pasmou o fotógrafo amador com aquele bando de corvos marinhos, certamente empoleirados para descerem num raide para apanhar o peixe desacautelado. E perdoem o amor-próprio de quem captou, com uma árvore de premeio, a despedida do rio que embeleza Tomar. São delicadezas da pele, pontos de superfície que às vezes vemos sem olhar, são pontos nevrálgicos do amor que ganhamos aos sítios, aos lugares, já que a exuberância do património sulca a cidade e quem lhe dá o alento.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de abril de 2016 Guiné 63/74 - P15947: Os nossos seres, saberes e lazeres (147): O ventre de Tomar (11) (Mário Beja Santos)

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