quarta-feira, 2 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15817: Os nossos seres, saberes e lazeres (143): O ventre de Tomar (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Fevereiro de 2016:

Queridos amigos,
O tempo convidava à vadiagem, e passear sem bússola é aceitar as benesses dos imprevistos. E foram vários, nessa tarde, não é a qualquer hora que se encontra uma perita em latoaria artística, de desempregada entrou num desses programas para criar pequenas empresas e lá vai subsistindo, dando alegria a muita gente com artefactos destinados à Festa dos Tabuleiros, bijutaria e até lancheiras e caixas para ferramentas.
No fim do dia, resolvi reverter a meu favor estas deambulações pelas vísceras da cidade, foi confrontado com uma fachada soberba, tenho para mim que é no tempo histórico deste edifício que está o último assomo dos bons tempos industriais que seguramente já não voltam a Tomar.

Um abraço do
Mário


O ventre de Tomar (7)

Beja Santos


É tudo uma questão de gosto, não discuto. Mas quem teve a ideia de repescar o genial património de Rafael Bordalo Pinheiro e de o replicar no presente, merece o meu respeito. O que é belo ganha intemporalidade, qualquer uma destas réplicas tem o condão de se misturar bem com o mais antigo e até com o que está na moda. Diante destas réplicas de alguém que correu todos os riscos para criar uma fábrica de cerâmica nas Caldas da Rainha, quando já estava consagrado como o maior desenhador de humor, pasmo de admiração, bem merecia ser apontado como figura cimeira e exemplar do nosso empreendedorismo. É bom revê-lo e levá-lo para casa.


Não sei se é a obra mais valiosa do núcleo de arte contemporânea de Tomar. Este Júlio Resende justifica que aqui o viajante se detenha perante um testemunho inigualável de alvorada da pintura abstrata. E caso curioso, regresso à atualidade de Rafael Bordalo Pinheiro: o que nasce excelente, excelente permanece, e ainda bem que haja outras obras-primas fora do Museu do Chiado e de Serralves. Há para aqui muito conteúdo para trazer os alunos a aprender ver o que de melhor se pintou em Portugal.


Esta é a maqueta de El Rei D. Sebastião, a escultura está em Lagos, com outros matizes, tanto quanto me parece. Não sei o que idealizou o mestre João Cutileiro, este jovem parece muito inocente, inocente caminha para o holocausto que ele próprio desenhou. Reza a história que o jovem era reguila, desencabrestado e até vândalo. Mas a arte é assim mesmo, este menino Sebastião fica-nos na memória por ir até Alcácer Quibir onde morreu e deixou saudades. Em vez de um deus grego, mestre Cutileiro esculpiu o menino redentor que há de regressar numa manhã de nevoeiro, e salvar Portugal.





De há muito que desejava fazer esta visita a uma oficina de metais que privilegia a latoaria artística. Passava por aqui e via pelos vidros artefactos obrigatórios na Festa dos Tabuleiros. Entrei em hora vaga para a artesã, descobri que isto da latoaria é assunto sério, mete mãos engenhosas, um sentido apropriado para revigorar as tradições, da lata também se faz bijutaria, lancheiras e caixas de ferramentas, a artífice surpreende-me com o esplendor da coroa, parece prata iridescente, equilibrada pela Cruz de Cristo, tão austera. O viajante tem as suas fraquezas, como é um desastrado manual olha para estas mesas de trabalho como se tivesse o privilégio de ver Picasso a trabalhar, há para ali instrumentos para torcer e retorcer, para cortar e afinar, e ele ali fica especado vendo transformar um pedaço de lata em arte fundente.


Um dia, há semanas, almoçava todo lampeiro um prato de povo à lagareiro e tinha pela frente, ali bem perto, alguém que falava com boa disposição, que se levantou e partiu. Então, não é que, bem pouco depois o viajante ao entrar nesta oficina não deu de frente com aquele outro que se amesendava, tão bem disposto? Explicou-lhe o viajante que não vinha comprar mas conhecer, pedia licença para ver como se repara ou cria de raiz, tirou imagens à vontade, escolheu esta porque a madeira fala a verdade, uma carpintaria tem poeira e há um outro aspeto nesta imagem que é a arrumação do ferramental e talvez umas colas e vernizes bem linhados, para melhorar a cenografia. Palavra de honra que hei de voltar!


Aviso desde já que esta imagem inverte deliberadamente os propósitos destes registos de imagens, sei muito bem que isto é pele, pele é exterior, e o ventre é interior. Mas o que acontece é que houve uma força irresistível, parecia ser o melhor prémio de consolação que naquele dia me podiam dar, tantas vezes por aqui passei, devo ter passado sempre com os olhos no chão, esta fachada Arte Deco, já com sinais de transição, é esplendorosa. Reparem bem na escala volumétrica, na harmonia das varandas e como aquele envidraçado se ergue, retilíneo qual coluna vertebral que alevanta a reta proporção e que define a harmonia da escala. Merecia este bálsamo para os olhos depois de ter passado a tarde metido nos interiores, naquelas vísceras das redes comerciais onde também desaguam os nossos sonhos. Ainda bem que te contemplei de frente, foste a última saudação numa tarde de sol, depois de uma doce caminhada em territórios tão aprazíveis.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15789: Os nossos seres, saberes e lazeres (142): O ventre de Tomar (6) (Mário Beja Santos)

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