domingo, 7 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15717: Memórias de Gabú (José Saúde) (60): A fuga

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
 
As minhas memórias de Gabu

No silêncio da noite dois guerrilheiros do PAIGC piraram-se da prisão de Gabu

A fuga

Relato, com um saudosismo que é próprio da minha pessoa, o conteúdo de uma fuga protagonizada por dois guerrilheiros do PAIGC, feitos prisioneiros, que uma bela noite se piraram de uma modesta e casual prisão existente no quartel novo de Gabu.

Assevero, que o meu primeiro aposento em chão fula, foi precisamente de paredes-meias com a dita cadeia. Naquele tempo alguém terá comentado a razão daquele espaço. Todavia, a coisa, dita com verdade, pareceu soar a “bocas da velhada” – no ciclo de rendição - para amedrontar o pessoal “piriquito” acabado de chegar àquelas paragens guineenses. 

Recordo que a temática acerca da prisão dos dois inimigos de guerra – usualmente conhecidos por “turras” pelas nossas tropas - transpirou a silêncio. Falou-se, sim, sorrateiramente no assunto, todavia as impressões sobre o caso caíram num pressuposto saco roto.

Lembro, que foram alguns os camaradas no quartel que se aperceberam da endiabrada aventura dos homens. Tanto mais que o acontecimento passou quase despercebido à generalidade da maralha. Falou-se do tema mas à socapa, mas comentou-se.

Naquele tempo, e com a guerrilha em plena atividade no terreno, tudo o que transpirasse a eventual curiosidade, ou saísse fora da rotina, era normalmente abafada. Assim, tudo, ou quase tudo, digo eu, era restrito a conversações entre graduados. A malta, o tal soldado desconhecido, combatente exímio e corajoso, cumpria deveres e recreava-se com momentos de ócio que os instantes livres lhes proporcionava.

Mas nem tudo era sinónimo de desinteresse. A novidade carecia sempre de dois dedos de conversa. Dois “turras” presos no quartel sintetizava um interesse acrescentado. Mormente para ver in loco o rosto de dois guerrilheiros com os quais o pessoal da Metrópole combatia no terreno.

Sei que a sua estadia foi efémera. Desconheço pormenores da sua captura e o local. Portanto, debitarei aquilo que, na ocasião, me foi dado saber. Evoco, como dado adquirido, que a chegada ao quartel foi marcada pelo secretismo. Seguiu-se, naturalmente, a sua instalação num espaço considerado de segurança. Uma espécie de “jaula” assegurava, fortuitamente, uma vigia apertada. Um pequeno quarto com uma porta que acusava já algum desgaste, sendo o espaço exíguo, parecia apresentar-se com as condições ideais para os homens pernoitarem sob o segredo dos deuses. Depois, sucedia-se o imprescindível interrogatório, como era hábito.

Mas, nem tudo o que parece é. Ou seja, existiam pequenos pormenores que tacitamente fugiam à intenção dos graduados chefes, homens que já pareciam denotar algum traquejo na guerrilha. Aquele pequeníssimo recanto virava para uma área totalmente livre. Havia, é certo, os arames que limitavam o quartel a que acresce a presença dos sentinelas cuja missão era garantir a segurança, logo, pressupunha-se, que a seguridade dos guerrilheiros inimigos apresentava fiança.

Mas tudo porém se esfumou num horizonte de incertezas, ou contrariamente de profícuas certezas, clarificando melhor o filme a preto e branco visualizado. Na noite da chegada às novas instalações, e sob o silêncio da madrugada, consumou-se a fuga. Os homens, quiçá mestres em escaramuças de guerra e sabendo o que obviamente os esperava, piraram-se sem ao menos deixarem um pequeno rasto da sua auspiciosa fuga.

Acrescente-se que a sua “porta” de saída foi simplesmente uma pequena janela vedada em tijolos de cimento. Os homens escavaram o espaço sem o mínimo de barulho, concentraram no interior tudo o que era entulho e calmamente soltaram o afiado grito de “Ipiranga”, como quem diz, o de liberdade.

Seguiu-se, com certeza, a passagem do arame, facto esse ultrapassado, e lá marcharam pela calada do breu rumo aos seus camaradas. A guerra, para eles, apresentava-se como um pesaroso calvário, sabendo-se que a razão da sua luta no mato era levar o seu povo à independência.

Dessa enlouquecida aventura nunca mais nada se soube!... Peripécias de uma peleja onde o sistemático envolvimento das forças em confronto transmitiam arte no saber contrariar as liças que o IN a todo o instante impunha.

Em Gabu, os dois homens do PAIGC trocaram as voltas ao inimigo, prepararam e concretizaram a fuga que parecia, em princípio, condenada ao fracasso. Mas assim não foi. “Os turras, piraram-se”, comentava-se depois, mas em sigilo, no quartel. 

Passados 42 anos dessa famigerada fuga que deixou de boquiaberta o pessoal que soube da estratégia montada pelos guerrilheiros, revejo a história e ainda hoje admiro a audácia dos afoitos prisioneiros. 


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 


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