segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15631: Blogues da nossa blogosfera (72): Uma aventura em África: em 14 de novembro de 1980, eu estava em Bissau... Depois do jantar, no Hotel 24 de Setembro, fui surpreendido pelo golpe de Estado do 'Nino' Vieira (Francisco George, antigo represente da OMS - Organização Mundial da Saúde na Guiné-Bissau)

1. O dr. Francisco George é uma figura pública, enquanto diretor-geral de saúde (*), e como tal conhecido da generalidade dos portugueses, pelas suas amiudadas intervenções na comunicação social e, em especial, na televisão. 

O que é menos sabido a seu respeito é a sua forte ligação à Guiné-Bissau e o seu grande carinho pelo povo guineense. O Francisco George, meu colega e amigo da saúde pública, é também um grande contador de histórias. Conheci-o em Beja, depois do seu regresso de África, no início da década de 1990. Tem uma página na Net, "Dossier de Lutas", que merece uma visita.  Foi de lá, e esperando contar com a sua compreensão e benevolência, que retirei esta história: acho que os amigos e camaradas da Guiné vão gostar de a ler e comentar... Eu depois peço-lhe a devida autorização... e dou-lhe o nosso "feedback" (**). (LG)




Em 1980 fui colocado em Bissau, no âmbito do recrutamento como novo membro do staff da OMS, depois de terminados os procedimentos administrativos e de informação técnica na Sede Regional em Brazzaville.

A chegada à Guiné-Bissau foi tranquila. O escritório da OMS tinha como Representante o médico de nacionalidade espanhola Garcia Morilla. A correspondência quer com Genebra quer com Brazzaville era assegurada pelo serviço semanal de Mala Diplomática. Para além disso, só telegramas através dos Correios garantiam ligações rápidas, uma vez que, na altura, não se podia contar com telefones.

Garcia Morilla estava muito perto de atingir a idade da aposentação,  que era de 62 anos. O calendário de folhas soltas em cima da sua secretária tinha a enumeração decrescente até ao seu último dia de trabalho. Quando o encontrei pela primeira vez faltavam 421 dias, no dia a seguir diminuiu para 420, depois 419 e assim por diante. Invariavelmente, todos os dias pela manhã, mostrava-me a folha correspondente com assinalável satisfação ao verificar que a distância ia ficando cada vez mais encurtada. Ausentava-se com frequência para se deslocar a Cabo Verde, visto que a Representação assegurava a cobertura dos dois Estados, politicamente ligados desde o tempo da Luta de Libertação conduzida pelo PAIGC.

O dia 14 de Novembro de 1980 foi igual aos anteriores até à hora do jantar. Depois, foi bem diferente como se verá. Julgo que Morilla estaria em Cabo Verde.

Como habitualmente, jantei no “Hotel 24 de Setembro” (antiga messe de oficiais do Quartel General do tempo colonial). Muitos cooperantes, mesmo os que não ficavam nem jantavam no Hotel, concentravam-se na magnífica esplanada a fim de tomarem café ao ar livre e, sobretudo,  para a conversa. Discutiam-se temas sobre o desenvolvimento, sobre política Africana e, naturalmente, sobre Portugal da AD de Sá Carneiro.

Ora, pelas nove da noite, repentinamente, ouvem-se uns ruídos, percebem-se correrias, pessoas espantadas, muito assustadas e, de forma inesperada, surgem grupos de militares rebeldes que montam uma metralhadora pesada no centro da esplanada. Logo de seguida, o Comandante dá ordem para todos levantarem as mãos. Momentos depois estavam todos os guineenses e cooperantes, incluindo eu, com mãos ao alto, surpreendidos, sem sabermos o que se seguia.

Todos nós compreendemos, rapidamente, que eram manobras integradas num golpe para derrubar o Presidente Luís Cabral. No meio deste cenário, surge o gerente do hotel a pedir ao chefe dos revoltosos para os clientes pagarem as respectivas contas. É então que é dada nova ordem: “Todos pagam primeiro as dívidas do café e logo depois voltam a levantar as mãos”…

A situação, apesar de caricata, foi apagada pelo medo generalizado. Medo misturado com a esperança de um futuro melhor.

Era o Movimento de Nino Vieira. Afinal, o grande herói da Luta que todos admiravam e respeitavam. A confiança era imensa. Julgavam que a pobreza podia ser combatida como Nino fizera contra o exército de Spínola. Era agora que o País iria para a frente, pensaram muitos.

Voltando à esplanada. Depois das contas pagas, todos ergueram de novo os braços. Cerca de meia hora depois, os soldados rebeldes às ordens de Nino Vieira mandam todos para os quartos. Acontece que muitos dos que ali estavam não tinham alojamento no hotel. Era essa, aliás, a minha situação. Olhei em redor para ver se conhecia alguém. Resolvi, então, pedir a um cooperante português que me deixasse ficar no quarto dele. Nada levava comigo. Já no quarto do António Manuel Reis, que eu acabara de conhecer, resolvemos proteger as janelas com almofadas. Durante a noite os sons de tiros de canhão que tudo faziam estremecer, aumentavam a nossa ansiedade.

A manhã seguinte foi, pelo contrário, de alegria generalizada perante a confirmação do sucesso da operação rebelde. Luís Cabral, deposto e expulso, deu lugar a um Conselho da Revolução. O próprio Nino Vieira apresentou os membros do Conselho num grande comício que promoveu na Praça do Império cinco dias depois. Assisti a esta manifestação, genuinamente popular, a lembrar-me do nosso Primeiro de Maio em 1974.

Hoje, trinta anos passados, temos que reconhecer, a construção de um Estado de Direito, regido por princípios democráticos, é um processo ainda inacabado.

Francisco George
Verão de 2011


Guiné-Bissau > Bissau  > 2010 > Hotel Azalai > "Foi piscina dos oficiais, dos hóspedes do Hotel 24 de Setembro, aparece agora retocada para a inauguração do Hotel Azalai. Tem beleza e quem organizou este espaço foi feliz com o traçado do meio envolvente." (Foto e legenda de Mário Beja Santos, aqui).


Foto (e legenda); © Mário Beja Santos (2010). Todos os direitos reservados

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Notas do editor:



Francisco George. Foto: Cortesia
de Direção Geral de Saúde

(i) nasceu em Lisboa, em 1947;

(ii) licenciado em Medicina (1973);

(iii) diplomado com  o Curso de Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública (Lisboa) (1977);

(iv) especialista em saúde pública, foi delegado de saúde a partir de 1976 (em Cuba e depois Beja);
 (v) funcionário da Organização Mundial da Saúde (OMS), entre 1980 e 1991;

(vi) para além de Bissau e Harare, foi consultor em missões da OMS nas mais diversas partes do mundo (Pequim, Xangai, Brazzaville, Genebra, Rio de Janeiro, Maputo, Praia, São Tomé, Luanda, Bamako, Antananarivo, Maseru e Lusaka);

(vii) ainda no âmbito da OMS, foi designado: chefe do projecto da OMS para o desenvolvimento dos serviços de saúde, na República da Guiné-Bissau (1980); representante da OMS na República da Guiné-Bissau (1986); epidemiologista do Programa Mundial de Luta Contra a SIDA da OMS (coordenador deste programa na África Austral) (1990):

(viii) tendo regressado à carreira nacional de saúde púiblica,   é chefe de serviço de saúde pública desde 1992;

(ix) nomeado subdirector-geral da saúde em 2001 e reconduzido em 2004;

(x) nomeado director-Geral da Saúde, em 2005, cargo que mantém até hoje;   

(xi) é professor auxiliar convidado da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa (ENSP/UNL);

(xii)  foi condecorado com a Ordem do Infante D. Henrique, Grande-Oficial, pelo Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio (2006).

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