terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15583: Excertos de "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (1): O meu irmão Álvaro

1. Excertos de "Memórias da Guiné" da autoria do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro com o mesmo título, Edições Polvo, 2005:


EXCERTOS DE MEMÓRIAS DA GUINÉ

Fernando de Pinho Valente (Magro)
Ex-Cap Mil de Artilharia*

1 - O Meu Irmão Álvaro

O esforço humano (e material) dos portugueses para responder às guerras de África, nas três frentes (Angola, Guiné e Moçambique) era enorme no final da década de sessenta e nos primeiros anos da década de setenta.

No caso da minha família nós éramos (e somos) oito irmãos, seis dos quais homens.

Todos os seis foram chamados a prestar serviço militar obrigatório e todos foram mobilizados: um para Moçambique, como alferes miliciano, dois para Angola sendo um deles no posto de furriel e o outro como cabo especialista da Força Aérea e três para a Guiné, sendo eu o mais velho, como capitão, o mais novo como furriel e o imediatamente a seguir ao mais novo como primeiro-cabo auxiliar de enfermeiro.

A vida militar deste último cruzou-se mesmo com a minha, pois fazendo parte da Companhia de Artilharia 3493, foi mobilizado para a Guiné e colocado em Mansambo, na região de Bafatá, quando eu me encontrava ao serviço do Batalhão de Engenharia 447.

Fui esperá-lo, subindo ao barco que o trouxe e fundeou ao largo de Bissau, nos primeiros dias de Dezembro de 1971.

Pedi ao seu Comandante que, logo que possível, o deixasse passar comigo alguns dias em Bissau, o que aconteceu em princípios de Janeiro de 1972.
Ele, nessa altura, queixou-se muito da vida difícil e perigosa que levava no mato e eu, depois de ele regressar à sua Companhia, comecei a congeminar um processo de o trazer para o Hospital Militar de Bissau.

O que determinou a minha diligência nesse sentido foram as notícias que dele recebi em Fevereiro de 1972. Nelas me dizia que tinha entrado numa operação militar de um dia e duas noites e que, a certa altura, no meio do mato, foi dada ordem pelo Alferes, Comandante do seu pelotão, para que o pessoal descansasse por algum tempo.

Como havia perdido a noite anterior, acabou por adormecer, protegido pela vegetação.
Quando acordou foi grande o seu espanto ao se encontrar completamente só no meio do mato, numa região que sabia ser frequentada por “terroristas”.

No aerograma que me enviou relatava, desta maneira, o sucedido:

"Não imaginas o meu estado de espírito ao ver-me só e perdido dentro daquela mata densa. Andei cerca de uma hora perdido, cheio de medo. Cheguei a pensar que seria apanhado pelos terroristas e que nunca mais voltaria a ver a família. 
Procurei encobrir-me com a vegetação, mas se porventura tinha de atravessar uma clareira, fazia-o rastejando.
Por fim encontrei um trilho por onde segui algum tempo, encharcado em suor.
Finalmente vi, ao longe, um pequeno grupo de militares.
Aproximei-me deles correndo o mais que pude e quando me pareceu que a minha voz poderia por eles ser ouvida, gritei com quanta força tinha.
Era tropa da minha Companhia, embora não fosse do meu pelotão. 
Contei o que havia acontecido, quase sem poder falar, por estar muito cansado.
Não tive nenhuma culpa do sucedido."

Eu conhecia o Director do Hospital, embora não tivesse com ele grandes relações.
Conhecia-o dum jantar festivo a que ele compareceu, como convidado, no Batalhão de Engenharia.
Lembrei-me de o procurar.
Relatei-lhe que tinha um irmão como cabo enfermeiro no mato, irmão que tinha tido, quando adolescente, problemas de saúde e mesmo uma paralisia facial.

Contei-lhe o que havia sucedido por dele se terem esquecido, quando adormeceu de cansaço no meio da vegetação.
Perguntei-lhe, depois, quantos cabos enfermeiros faziam serviço no seu Hospital e se todos mereciam estar lá colocados.
Referiu-me que tinha algumas dezenas de cabos enfermeiros e que, pelo menos um deles, teria de o castigar severamente e de o mandar para o mato porque tinha roubado alguns militares feridos ou doentes.

Estes militares, como de resto acontecia com todos, quando chegaram ao Hospital Militar receberam um pijama próprio e as suas fardas e haveres foram guardados em armários metálicos individuais.
Esse cabo enfermeiro conseguiu ter acesso a alguns desses armários e havia roubado dinheiro e outros pertences dos doentes.

"- E, ainda por cima, ontem embriagou-se e fez por aí uma série de disparates.
Vai com certeza apanhar alguns dias de prisão e, por via disso, terá de ser colocado numa companhia destacada no mato"
, referiu o meu interlocutor.

Perante este relato do Director do hospital perguntei-lhe se não seria possível que o cabo enfermeiro, cujo comportamento merecia uma punição exemplar, fosse colocado por troca na companhia do meu irmão. Evitar-se-ia, continuei eu, que na caderneta militar do rapaz fosse averbado um castigo que, naturalmente, lhe poderia trazer prejuízo na sua vida futura. Com a sua ida para uma unidade de combate, sofreria de qualquer forma uma pesada punição e essa situação talvez o obrigasse a reflectir no sentido de melhorar o seu comportamento.

Assegurei ao Director, por outro lado, que a conduta do meu irmão Álvaro seria irrepreensível no caso de vir a ser colocado naquele Hospital Militar. Por isso responsabilizar-me-ia eu próprio. O Coronel-médico reflectiu e depois ditou-me os termos de uma declaração, em que o meu irmão teria de assinar em como concordava ser transferido para o Hospital Militar de Bissau em troca com o tal 1.º cabo auxiliar de enfermagem mal comportado.

Disse-me o Director que iria chamar o rapaz à sua presença e que o aconselharia a requerer a sua transferência para a Companhia de Artilharia 3493 de Mansambo por troca com o meu irmão Álvaro.
No caso de ele concordar, a minha pretensão seria bem sucedida e eu estava convicto que ele iria dar o seu acordo porque não poderia continuar mais tempo ali, tendo inevitavelmente de ser castigado e enviado para o mato.

Despedi-me do Coronel-médico com a continência regulamentar e aguardei os acontecimentos. A 20 de Fevereiro de 1972 foi publicada uma nota da 1.ª Repartição do Quartel-general do Comando Territorial Independente da Guiné que continha a oficialização da referida transferência.

Dois dias depois, quando entrei em casa vindo do quartel, tinha à minha espera o meu irmão Álvaro.
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Nota do editor

(*) Vd. poste de 12 de fevereiro de 2014 Guiné 63/74 - P12710: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (15): Fim da comissão - O regresso

1 comentário:

Anónimo disse...

Se aquele militar tinha que ser castigado e o castigo adequado era mandá-lo para o mato eu, no lugar do Capitão, faria o mesmo por um irmão meu.

Um abraço Carvalho de Mampatá