sábado, 18 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14487: Manuscrito(s) (Luís Graça) (54): Dias de ira, aqueles, os da guerra... (Poema dedicado a todos os meus camaradas que me honram como grã-tabanqueiros, quer me acompanhem ou não, hoje, em Monte Real, no X Encontro Nacional da Tabanca Grande)

Dias de ira, aqueles,
os da guerra...



para os meus camaradas
que combateram
naquela terra verde e rubra
a que chamávamos Guiné,
e que a pátria, a mátria e a fátria
há muito esqueceram,
mas que me dão a honra
de partilhar memórias e afetos,
neste blogue,
desde há onze anos,
e que vão estar hoje reunidos
em Monte Real,
mostrando afinal
que o Mundo é Pequeno
e a nossa Tabanca… é Grande!

e recordando ainda, com saudade,

os camaradas e amigos
que nos últimos dois anos e menos de quatro meses,
desde o início de 2013,
nos deixaram, 

ficando nós 
mais pobres e tristes
( foram 17,  numa lista, já longa,  que vai em 40, desde 2007,

os que da lei da morte se foram libertando):

Amadu Bailo Jaló (1940-2015)
António Manuel Martins Branquinho (1947-2013)
António Rebelo (1950-2014)
Armandino Alves (1944-2014)
Carlos Schwarz da Silva, 'Pepito' (1949-2014)
Fernando Brito (1932-2014)
Fernando Rodrigues (1933-2013)
João Caramba (1950-2013)
João Henrique Pinho dos Santos (1941-2014)
José Fernando de Andrade Rodrigues (1947-2014)
José Marques Alves (1947-2013)
Luís Borrega (1948-2013
Luís Faria (1948-2013)
Luís F. Moreira (1948-2013)
Manuel Martins (1950-2013)
Manuel Moreira (1945-2014)
Maria Manuela Pinheiro (1950-2014)

Cavalgam, caudalosos,
os rios
pela terra adentro,
enquanto fluem, ruidosos,
os dias da guerra.

Rios que não são rios mas rias,
entranhas ubérrimas,
fustigadas pelo vento do Sará,
rias baixas pela manhã,
pedaços, braços de mar,
restos de tsunamis,
pontas de fuzis,
palavras acérrimas,
imprecações ao grande irã,
picadas minadas,
de ir e não mais voltar.

Dias que não são dias,
circadianos, mas fragmentos,
ora ledos ora amargos enganos,
estilhaços de tempo,
riscos nas paredes sujas dos bunkers,
feitos de troncos de cibe, argamassa
e chapas de bidões,
repentinas, fatais emboscadas,
breves finais de tarde,
instantes, flagelações, balas tracejantes
sob o céu verde e vermelho,
enquanto o capim arde.

Narciso, revês-te ao espelho,
quebrado,
vais seminu, de camuflado,
de azul, celestial,
ao encontro do anjo da morte
em Jugudul.

E não há estrelas, à noite,
nem djubis soletrando em árabe
as tabuínhas dos marabús,
allahu akhbar,
allahu akhbar,
mas a bússola indica o norte, sideral,
nunca o sul,
nunca o nascer nem o morrer
numa curva apertada do Corubal.

Dies irae, dies illa,
dia de ira, aquele,
em que subiste o portaló,
o cadafalso do Niassa,
ou do Uíge ou do Ana Mafalda,
dias de ira, aqueles,
os da guerra!

Calai-vos,
rápidos do Saltinho,
cascatas de Cussilinta,
vós que mais não sois
do que canoas loucas,
desenfreadas, frenéticas,
levadas pelo macaréu da nossa raiva,
entre o Geba e a foz do Corubal.

Braços que não são braços,
amputados,
mas apenas tatuagens, traços,
letras de fado pungentes,
amor de mãe,
pontes que são miragens,

tentáculos, serpentes,
lianas, cortadas pelas catanas, 
a eito,
pela floresta-galeria adentro,
inferno tropical, túneis, tarrafo,
bolanhas, lalas, bissilões,
pontos de cambança,
flamingos vermelhos sangrando,
curvas da morte do Cacheu ao Cumbijã,
apocalípticos palmeirais,
pontas de punhais cravadas no peito,
irãs acocorados no alto dos poilões.

E depois o silêncio,
o impossível silêncio,
o silêncio das partituras,
dos mapas dos argonautas,
partículas, pausas, pautas,
cartas de tiro com claves de sol,
desidratação, a ogiva do obus,
o medo da avestruz,
o roncar do helicanhão,
gritos do djambé,
e do macaco-cão,
gemidos de kora,
espasmos de balafon,
a hiena que chora,
o dari que ri,
o hipopótamo que urra,
rajadas de kalashecos do bombolon,
o ribombar do trovão,
bombas de fragmentação
que correm no dorso dos cavalos
desde o Futa Djalon.

Não vou poder ouvir o silêncio 
do Cantanhez,
nem quero ouvir o grito da morte
outra vez.


v12 3 mar 2022

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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P14486: Parabéns a você (891): Raul Brás, ex-Soldado CAR da CCAÇ 2381 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 15 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14471: Parabéns a você (890): António Pimentel, ex-Alf Mil Rec Inf do BCAÇ 2851 (Guiné, 1968/70)

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14485: Convívios (666): CCAÇ 763, "Os Lassas" (Cufar, 1965/66): festa dos 50 anos, 17 de maio de 2015, Qta de Sto António, a 3 km da saída da A5 para Malveira... Inscrições, sem falta, até domingo, 20 de abril (Mário Fitas)









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Nota do editor:

Último poste da série > 17 de abril de  2015 >  Guiné 63/74 - P14484: Convívios (665): Os Maiorais da CCAÇ 2381 vão ter o seu XXIV Encontro no próximo dia 9 de Maio de 2015 na Batalha (José Teixeira)

Guiné 63/74 - P14484: Convívios (665): Os Maiorais da CCAÇ 2381 vão ter o seu XXIV Encontro no próximo dia 9 de Maio de 2015 na Batalha (José Teixeira)

Em mensagem do dia 16 de Abril de 2015, nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), solicitou-nos a divulgação do XXIV Convívio dos Maiorais, a levar a efeito no próximo dia 9 de Maio na Batalha.


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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14482: Convívios (664): Almoço do pessoal do BCAÇ 3832 (Guiné, 1970/73), dia 9 de Maio de 2015 em Celorico da Beira

Guiné 63/74 - P14483: Notas de leitura (704): A contestação contra a guerra colonial: A radiografia das universidades em 1971 feita por uma organização ultranacionalista (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Junho de 2014:

Queridos amigos,
A Feira da Ladra é sempre um alfobre de surpresas, ali encontrei um policopiado de 16 páginas da responsabilidade de um grupo ultranacionalista que inventariava a turbulência em meio universitário contra a guerra, dando conta do como e porquê.
Para melhor se entender a atividade desta Frente Nacional Integracionista, recomendo a leitura do documento que envio em pdf em que o investigador Riccardo Marchi nos dá uma panorâmica das direitas radicais em Coimbra até 1974. Só lendo esta documentação é que se pode ficar com a perceção da agitação estudantil e a sua importância para a criação de uma opinião desfavorável à continuação da guerra.

Um abraço do
Mário


A contestação contra a guerra colonial: 
A radiografia das universidades em 1971 feita por uma organização ultranacionalista

Beja Santos

Um investigador social, Riccardo Marchi, vem há anos a estudar a evolução das direitas radicais portuguesas nomeadamente nos anos contíguos aos da guerra que travávamos em África. A nota mais saliente que Marchi assinala é a exacerbação destes movimentos criticando o que eles apelidavam a pusilanimidade do regime de Marcello Caetano para contrariar as campanhas em meio universitário das esquerdas contra essa guerra. Para compreender melhor como as direitas radicais contestaram Marcello Caetano vale a pena ler o artigo de Riccardo Marchi publicado num número da Revista Análise Social, volume XLIII, 2008, intitulado “A Direita Radical na Universidade de Coimbra (1945-1974)”, que se anexa em pdf.(1)

Um feliz acaso levou-me a encontrar um documento produzido em maio de 1971 por uma intitulada Frente Nacionalista Integracionista. Para eles, o pesadelo começara com a vitória do comunismo e das democracias na II Guerra Mundial, surgira um aliado inesperado, os EUA, cujos dirigentes viam na saída dos europeus de África e da Ásia uma excelente oportunidade para encontrar novos mercados. Os outros países abandonavam cobardemente as suas posições em África, escreve a Frente, Portugal, guiado pelo génio político Salazar, mantinha-se indiferente à demagogia das Nações Unidas. Assim se fabricou o terrorismo. A Frente recorda o que dissera o Alferes Robles, por ocasião da manifestação de 27 de agosto de 1963, no Terreiro do Paço: “Nada mais pedimos senão que a retaguarda cumpra também o seu dever, como nós estamos cumprindo o nosso! Esta guerra nunca se perderá em África mas poderia perder-se em Lisboa!”. Alude-se seguidamente à propaganda comunista e como esta se infiltrou no nosso movimento associativo, tal como já acontecera em França, durante a guerra da Argélia.

Referem as campanhas de contestação, ao longo dos anos de 1968 e 1969, em que as faculdades foram inundadas de cartazes contra a guerra do Vietname. Depois, começaram a circular em diversas faculdades panfletos em grande parte emanados da Esquerda Democrática Estudantil, movimento marxista, embora de linha antissoviética, em que a defesa do Ultramar era apresentada como uma guerra destinada a servir os lacaios dos grandes monopólios internacionais. A Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências de Lisboa foi a primeira a tomar a iniciativa de atacar abertamente a guerra, ao afixar, em abril de 1969, no seu jornal de parede um recorte do artigo “Programa do Ministério da Defesa: fechar a universidade e mandar os estudantes para a guerra”.

A campanha eleitoral de 1969 levou à manifestação do movimento associativo, a mesma Faculdade de Ciências afixou um jornal de parede com uma mensagem dirigida por Amílcar Cabral em que incitava a nossa juventude a desertar das fileiras. E vem o remoque: “Durante alguns dias, este documento permaneceu afixado sem que as autoridades académicas o mandassem retirar”. A Frente dá também a saber que a linha maoista estava muito ativa, reconhecendo os movimentos de libertação e apelando ao seu apoio político. É a partir daí que vão proliferar artigos da maior violência contra a defesa do Ultramar. Surge mesmo um panfleto com “exigências da juventude”: fim da guerra; solução pacífica do conflito com a independência dos povos africanos. As faculdades de Medicina e Direito de Lisboa também afixam cartazes contra a guerra. Nova crítica da Frente: “Indiferença das autoridades académicas. O subdiretor da Faculdade de Direito chegou mesmo a afirmar que esse problema não lhe interessava absolutamente nada, tanto mais que não o considerava da sua alçada”.

A cabine da Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico transmitia durante as horas das refeições programas subversivos, atacando o colonialismo português. Os estudantes de Direito quiseram realizar em 18 de fevereiro um colóquio “Política Colonial”, orientado por Salgado Zenha, Afonso de Barros e Arnaldo Matos. Comentário da Frente: “Felizmente que nessa ocasião o diretor da Faculdade se mostrou à altura das suas obrigações e proibiu o colóquio”. Em Coimbra, realizou-se em 9 de março, dentro das instalações da Universidade, um colóquio sobre o serviço militar, um dos pontos analisados era o serviço militar como castigo. Acabou por se debater a guerra colonial. No final do colóquio, aprovou-se uma moção que classificava o ministro da Defesa Nacional e o secretário de Estado do Exército como inimigos da Academia.

A frente também está atenta ao que fazem os alunos do ensino secundário, registam um boletim do Liceu Nacional de Gil Vicente e fazem troça dos estudantes liceais nacionalistas: “A vossa comunicação distingue-se das demais pela contestação vigorosa e justa, pela mensagem válida aos corações portugueses de têmpera, que em África defendem o nosso património, regam as florestas a napalm, aquecem as palhotas dos negros com lança-chamas, engordam os corpos com chumbo, desmentindo assim os boatos de que as populações das nossas províncias ultramarinas estão subalimentadas e subdesenvolvidas…”. Também o Instituto Comercial de Lisboa incitava contra a guerra colonial. Preso o estudante Saúl Noronha da Costa, decretou-se greve às aulas, pediu-se a demissão do direito do Instituto, os estudantes fizeram uma manifestação de apoio que decorreu no Chiado e na Baixa.

Em Coimbra, uma multidão de associativos apedrejava quem saia do Teatro Gil Vicente onde nacionalistas e seus simpatizantes assistiam à representação de uma peça de Paul Claudel. A Frente não esconde a sua preocupação com o facto de que a partir de 1970 quase todas as associações propõem que se reflita sobre a libertação do Ultramar. O grupo cénico do Instituto Superior Técnico pretendia mesmo fazer um espetáculo sobre o colonialismo. Na Faculdade de Letras de Lisboa era distribuída a letra da balada de Manuel Alegre "Romance de Pedro Soldado", que visava criar na população sentimentos de derrotismo. No anfiteatro I, algumas centenas de estudantes, pouco antes do natal de 1970, discutiram a invasão da República da Guiné, classificando-a como um ato de agressão preparado pelo colonialismo português. Nesse mesmo mês de Dezembro, houve em Coimbra um convívio com Zeca Afonso, gritou-se contra a guerra colonial e aplaudiu-se entusiasticamente um texto de Amílcar Cabral intitulado “A Força das Armas”. E comenta a Frente: “O ambiente atingiu o paroxismo quando dois cabo-verdianos, após entoarem algumas canções nativas, leram uma poesia contra a guerra no Ultramar, tudo isto no meio de estrondosas ovações”.

A Frente explica porque procedeu a este levantamento: para demonstrar o espírito de traição que reina no associativismo estudantil e a necessidade que há de pôr termo a essa atividade bem como à benevolência com que é encarada por quase todas as autoridades académicas. Insistentemente, a Frente refere que as autoridades académicas têm sido negligentes a tomar medidas para que estes pasquins prontamente desaparecessem das paredes dos edifícios que a nação entregou à sua guarda.

Riccardo Marchi tem razão: estes grupos ultranacionalistas estavam ativos e identificavam os focos de contestação que se iam espalhando sobretudo nas universidades de Lisboa e Coimbra. Bom seria conhecer o trabalho destes grupos em 1972, 1973 e 1974. Pelo menos ficaríamos com uma ideia da temperatura da contestação universitária contra a guerra.
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Notas do editor

(1) - O PDF referido pelo nosso camarada Mário Beja Santos vai ser enviado à tertúlia

Vd. último poste da série de 14 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14468: Notas de leitura (703): Sinopse do livro "Guerra na Bolanha", por Francisco Henriques da Silva

Guiné 63/74 - P14482: Convívios (664): Almoço do pessoal do BCAÇ 3832 (Guiné, 1970/73), dia 9 de Maio de 2015 em Celorico da Beira

1. Comentário deixado num dos Postes do nosso Blogue pelo camarada Diamantino Monteiro:

Sou o António Lopes Pereira, da CCAÇ 3305/BCAÇ 3832 
Camarada Luís Graça, 
Venho-lhe pedir para me ajudar a divulgar este almoço/convívio entre os meus camaradas.



BATALHÃO DE CAÇADORES 3832 - GUINÉ 70/73

C O N V O C A T Ó R I A

Almoço/Convívio em Celorico da Beira no próximo dia 9 de Maio

Uma óptima tarde a todos.
Venho por este meio informar a todos os interessados que se realiza um almoço/convívio em Celorico da Beira no próximo dia 09 de Maio.
O almoço realizar-se-á no Mercado Municipal, gentilmente cedido pela Câmara Municipal, no centro da Vila, e será servido pelo restaurante Artur.

A concentração será no Jardim Carlos Amaral (junto ao Centro de Saúde), a partir das 11h30.
Às 12h30 seguiremos para o local de almoço.
Às 13h00 será servido o almoço.
Às 17h30 será servido o lanche.

O Preçário mantém se igual ao do ano passado:
Crianças até 4 anos - Grátis.
Jovens até aos 10 anos - 17,5 Euros.
Adultos - 35Euros.

Responsável pela organização:
Júlio Xavier - 963 315 422 / 271 748 402
julioxavier14@sapo.pt
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14476: Convívios (663): Encontro do BCAV 3864, dia 23 de Maio de 2015 em Leiria (Vânia Santos/Vitor Santos)

Guiné 63/74 - P14481: Os nossos seres, saberes e lazeres (87): Berlim, cidade ainda hoje invisivelmente dividida: as marcas da guerra e do terror (Parte IV) (Luís Graça): o muro da nossa vergonha europeia...


Berlim > "East Side Gallery" > 22 de março de 2015  > O famoso beijo entre dois "camaradas"... [O artista, ele próprio russo, passou por cima da idiossincracia do "beijo russo",  deu à sua pintura mural uma outra conotação, histórica e política, a do beijo da morte... Entre os russos, o beijo na boca entre dois homens nada tem de chocante ou homofóbico, é de acordo com a tradição russa um grande sinal de afeto e gratidão...]


Господи! Помоги мне выжить среди этой смертной любви [em russo], Gospodi! Pomogi mne vyzhit' sredi etoy smertnoy lyubvi [em russo transliterado]

Mein Gott, Hilf Mir Diese Tödliche Liebe Zu Überleben [em alemão] |

Tradução: My God, Help Me to Survive This Deadly Love [inglês]   | Meu Deus, ajuda-me a sobreviver a este amor mortal [português]...


1. Um dos mais famosos grafitos da "maior galeria de arte ao ar livre, do mundo", a chamada "East Side Galllery", situada numa  seção de mais de 1,3 km, na parte oriental do antigo muro de Berlim, que escapou ao camartelo...

É um dos lugares obrigatórios dos percursos da "ostalgie"... [Um neologismo, usado pelos berlinenses, que deriva de Ost (leste) e Nostalgie (nostalgia)... Mais do que um sentimento, é um negócio, o turismo da "ostalgie" que alimenta museus, privados, excursões, visitas guiadas, restauração, hotelaria, arte, cultura...Não há, na Alemanha de hoje,  "saudades" do regime da RDA onde parece que havia emprego para todos na proporção inversa da liberdade... Em relação ao passado (nazismo, holocausto, guerra, muro de Berlim, reunificação...) os alemãs lá vão fazendo, como podem, o difícil "coping".... Até inventaram um palavrão para designar esse fenómeno: Vergangenheitsbewältigung, a arte alemão de saber lidar com o passado...

Apesar de tudo, parece-me que, a nível público, os alemães (ou pelo menos os berlinenses) fazem-no melhor do que nós, que ainda não conseguimos fazer o luto de muita coisa, e nomeadamente a perda do nosso cordão umbilical histórico com o "além-mar" (, desde a nossa frota do bacalhau e a nossa marinha mercante, até às "joias da coroa" ultramarinas, India e Angola, por ex.) ou o debate sereno sobre o Estado Novo, a guerra colonial / guerra do ultramar / guerra de África, o 25 de abril e a descolonização...

Como é sabido, o muro esteve de pé entre 1961 e 1989,  dividindo não só os berlinenses e os alemães, como o próprio continente europeu. A ser apropriada a expressão "muro da vergonha", ele foi historicamente o muro da vergonha de todos, nós, europeus... A reunificação da Alemanha, em 3 de outubro de 1990, marca o fim da chamada guerra fria, que opôs a Rússia soviética aos seus antigos aliados ocidentais da II Guerra Mundial (EUA, Inglaterra e França). Desgraçadamente, outros muros, menos visíveis, se estão a erguer na Europa de hoje, enter o norte e o sul, entre o oeste e o leste... A Rússia, por exemplo, é um urso ferido e humilhado,, o que não é bom para ninguém...

A guerra fria marcou a nossa geração e as duas superpotências (EUA e URSS) diglariaram-se em muitos pontos do mundo  (da Coreia a Cuba, do Vietname a Angola). através de terceiros a quem armamaram ou apoiaram de muitas outras maneiras [, como foi o caso da ex-Guiné portuguesa, onde a G3 era  alemã ocidental, e a Kalash era russa; no caso da ex-RDA, todos os três movimentos nacionalistas lusófonos, PAIGC, MPLA e FRELIMO, que combateram contra o exército colonial português, beneficiaram da "solidariedade internacionalista" (sic) dos alemães de leste].

O mural é do artista russo Dmitri Vladimirovich Vrubel (n. 1960) e data de 1990 (restaurado em 2005) (*). Esta pintura mural pretende caricaturar o dirigente comunistas Leonid Brezhnev  (1906-1982), russo, e o presidente Erich Honecker (1912-1994), alemão oriental, num dos seus famosos "beijos fraternos" (saudação tradicional russa).  Dimitri Vrubel reproduziu aqui uma célebre foto tirada em 1979, por ocasião da celebração do 30º aniversário  da fundação da República Democrática Alemão (RDA). A pintura mural tem as seguintes dimensões: 365 cm × 480 cm.



Berlim >"East Side Gallery" A> 22 de março de 2015  >  Outra não menos famosa pintura... Em primeiro plano, o símbolo da RDA, o "Trabant" (ou "Trabi", em linguagem coloquial), a versão alemão oriental do... "carro do povo". Em segundo plano, o beijo dos "camaradas"  Brezhnev e Honecker... Autor: Lake.


2. A "East Side Gallery" tem trabalhos de 118 artistas de 21 diferentes países, que usaram diferentes técnicas plásticas para  comentar, livremente, num hino à paz e à liberdade, acontecimentos políticos decisivos dos anos em que caiu o muro de Berlim (1989) e acabou a guerra fria (1990)....

A "East Side Gallery" fica ainda no centro histórico de Berlim, na Mühlenstraße,  em Friedrichshain-Kreuzberg, estendendo-se ao longo da margem direita do rio Spree que atravessa Berlim e Brandemburgo.


 Berlim > "East Side Gallerey" > 22 de março de 2015 > O histórico dirigente soviético Mikhail Gorbachev  (n. 1931),  fazendo da foice e do martelo um "volante simbólico" da história,  provável referência à sua política de reformas, consubstanciadas nas palavras de ordem Glasnost Perestroika... Foi-lhe atribuído, muito justamente,  o Prémio Nobel da Paz (1990). O mural está muito "vandalizado", não consegui saber quem era o autor...


Berlim >"East Side Gallery" > 22 de março de 2015 > A arma (sempre desconcertante e saudável) do humor...




Berlim > "East Side Gallery" A> 22 de março de 2015  > A Alice Carneiro,  nossa grã-tabanqueira, e a mana Nitas, na iminência de serem "atropeladas" por um Trabi (**)...




Berlim > "East Side Gallery" A> 22 de março de 2015  > A Alice, ao longo do muro, saturado de grafitos... Esta parte correspondia, no passado, ao território de Berlim Oriental.


Berlim > "East Side Gallery" A> 22 de março de 2015  >  Uma secção do muro que foi deslocada da localização original, pro razões de acesso ao rio Speer... Do lado direito da foto era Berlim ocidental e do lado esquerdo, Berlim Oriental... Ao fundo a famosa ponte de tijolo, a Oberbaumbrücke, que foi em tempos a mais comprida da cidade (, datando de 1896). Continua a ser um dos ícones da cidade. Foi dinamitada, a secção central, pelos alemães em abril de 1945 para atrasar a chegada do exército vermelho.  Com a criação do Muro, em 1961, a ponte passou a servir de fronteira entre o leste e o oeste. Havia aqui  um dos "checkpoints" dos alemães orientais. Foi posteriormente reconstruída e devolvida ao seu esplendor em 1994.



Berlim > "East Side Gallery" A> 22 de março de 2015  > Também há marcas de "tugas"... que por aqui passaram recentemente e quiseram deixar a sua "peugada"... Neste caso, de uma Rita Gaião e de uma Carol...


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados

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Notas do editor:

(*) Vd., postes anteriores >

9 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14450: Os nossos seres, saberes e lazeres (85): Berlim, cidade ainda hoje invisivelmente dividida: as marcas da guerra e do terror (Parte III) (Luís Graça)

1 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14428: Os nossos seres, saberes e lazeres (82): Berlim, cidade ainda hoje invisivelmente dividida: as marcas da guerra e do terror (Parte II) (Luís Graça)

31 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14424: Os nossos seres, saberes e lazeres (80): Berlim, cidade ainda hoje invisivelmente dividida: as marcas da guerra e do terror (Parte I) (Luís Graça)

(**) Último poste da série > 15 de abril de  2015 > Guiné 63/74 - P14472: Os nossos seres, saberes e lazeres (86): Bruxelles, mon village (Parte 1) (Mário Beja Santos)


quinta-feira, 16 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14480: Tabanca Grande (458): Gustavo Vasques, BCAÇ 619, Catió, 1964/66

1. Hoje apresenta-se nesta nossa Tabanca Grande o nosso Camarada Gustavo Vasques, ex-Soldado do BCAÇ 619, Catió, 1964/66, que enviou a seguinte mensagem ao Luís Graça:

Caro camarada, ao fazer uma pesquisa na internet, sobre a Guiné encontrei o vosso blogue e gostaria de fazer parte dele.

Estive na Guiné e pertenci ao BCAÇ 619 sediado em Catió, vou tentar enviar as duas fotos pedidas.

Um abraço 
Gustavo Vasques


2. Sobre a unidade do Gustavo Vasques, conseguiu o José Martins reunir a seguinte informação: 

Batalhão de Caçadores 619

Mobilizado pelo Regimento de Infantaria nº 1, Amadora, sob o comando do Tenente-coronel de Infantaria Narsélio Fernandes Matias, 2º Comandante o Major de Infantaria Manuel de Jesus Correia e como Oficial de Informações e Operações/adjunto o Capitão de Infantaria Rogério Jorge Vale de Andrade. O Comandante da Companhia de Comando e Serviços era o Capitã SGE José Francisco Galaricha.

Usou a Divisa “SENTINELA DO SUL”

Embarca em Lisboa no dia 8 e desembarca em Bissau a 15 de Janeiro de 1964.

Em 17 de Janeiro de 1964 assume a responsabilidade do Sector F, substituindo o Batalhão de Caçadores nº 356. Tem a sede em Catió e os subsectores de Catió, Empada, Bedanda e Cabedú.

Depois da Operação Tridente, que foi efectuada no período de 15 de Janeiro a 24 de Março de 1964, integrou na sua zona de acção o subsector de Cachil

Entre as operações que coordenou destacam-se as operações “Broca”, “Campo”, “Razia” e “Satan”, tendo apreendido 1 metralhadora pesada, 4 ligeiras, 32 espingardas, qq pistolas metralhadora, 30 minas e 59 granadas de armas pesadas.

No dia 11 Janeiro 1965 o sector passa a ser designado por Sector S 3 e em 17 de Janeiro de 1965 passa a incluir o subsector de Cufar, então criado na sua zona.

Com as populações dispersas, a 17 de Março de 1965 iniciou a experiência de reagrupamento de populações, sendo criada a tabanca de Ualala, para o efeito.

É rendida em 21 de Janeiro de 1966, pelo Batalhão de Caçadores nº 1858, seguindo para Bissau a aguardar embarque.


3. Sobre o BCAÇ 619 há várias referências no blogue que se podem ver no seguinte link: http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/BCA%C3%87%20619

E referências a pelo menos 4 Camaradas deste batalhão: 

- Carlos Alberto Rodrigues Cruz, ex-Fur Mil da CCAÇ 617/BCAÇ 619 (Catió e Cachil, 1964/66)

- João Gabriel Sacôto Martins Fernandes, ex-Alf Mil da CCAÇ 617/BCAÇ 619, Catió, Ilha do Como e Cachil (1964/66)

- Ana Paula Ferreira, filha do ex-1.º Cabo Fernando Ferreira da CCAÇ 617/BCAÇ 619, Catió e Cachil, 1964/66
- João Pinho dos Santos, ex-Alf Mil da CCAÇ 618/BCAÇ 619 (Susana e Binar, 1964/66)

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 

Guiné 63/74 - P14479: (Ex)citações (271): Também estive na Op Bola de Fogo, de 8 a 14 de abril de 1968, no apoio à construção do aquartelamento de (e depois nos reabastecimentos a) Gandembel (Mário Gaspar, ex-fur mil MA, CART 1659, Gadamael, jan 67 / out 68)

1. Comentário de Mário Gaspar ao poste P14478 (*):

Camaradas e Amigos

Estive lá, nessa Operação…Esqueceram-se da CART 1659 ? (*)

Em determinadas circunstâncias fico bastante magoado, escrevi um livro, “O Corredor da Morte”, sem a intenção de ser Prémio Nobel, mas para falar sobre aquilo que me atormentava e atormenta que é o escândalo da História da Guerra Colonial não ser contada e ficar escondida e perdida. 

Ao editar o livro, já o poderia ter feito em 1996, e tinha editora, pretendi narrar, principalmente as situações em que participei, nunca como observador. O livro surge por solicitação, e nunca me preocupei com o português usado, mas com o que sentia e sinto. Cometi erros e assumo. Se existir uma outra edição, possivelmente vai existir, porque fiquei engasgado, atravessado na garganta, [farei as necessárias correções].

Vamos acreditar nas historietas que nos narram, ou seremos nós que devemos fazer a História ? Se não tivermos capacidade para o fazer,  vamos pedir ajuda a um amigo. Editei o livro para que surjam outros rostos para escreverem sobre as experiências do “G” de Guerra e “G” de Gadamael Porto, Guidage,  Ganturé, Guileje,  Gandembel e outos “G”. Ser chamariz.


Sobre a “Operação Bola de Fogo”, falo resumidamente
no meu Livro “O Corredor da Morte”,  nas páginas 172 e 173. Pois estive na “Operação Bola de Fogo”, de 8 a 14 de Abril de 1968, a Implantação de um aquartelamento no “corredor de Guileje” ou “corredor da morte”, Gandembel. 

Almocei, jantei e bebi cervejas, com o Furriéis Milicianos que iam abastecer-se a Gadamael Porto. Estivemos (eu também) nas descargas de todos os reabastecimentos e material destinados às forças empenhadas na operação e à montagem do novo aquartelamento, e apoiámos ao transporte dos mesmos até Guileje, com viaturas e respectivos condutores, em todas as colunas que, de Guileje, se efectuaram para Gandembel. Depois seguiu-se a Operação “Boa Farpa” a 5 e 6 Junho  (Reajustamento do dispositivo e escolta à coluna de reabastecimento no itinerário Guileje-Gandembel e inverso). Tivemos um condutor ferido e evacuado. 

A CART 1659 fez com a CCAÇ 1621, 12 colunas de reabastecimento de Abril a Julho de 1968 a Guileje. Na 11.ª coluna, efectuada em 28 de Junho, fomos vítimas de uma emboscada na via Ganturé-Guileje,  tendo o PAIGC sofrido 8 mortos confirmados e feridos. 

Na 12.ª coluna, efectuada em 26 de Julho de 1968, a CART 1659 foi vítima no rebentamento de uma mina A/C e accionada uma outra de que resultou e destruição de 1 viatura GMC e 1 ferido grave e 7 ligeiros, para as NT. Tenho fotos dele e do Cruzamento, num dia que apoiámos Guileje após um ataque do PAIGC. 

Sobre a construção da padaria em Gandembel foi o Soldado n.º 00747866, António Manuel Magalhães Mendes Cerejo, que era da minha Secção,  que colaborou no mesmo. Um bom soldado reguila, atrevido, mas um grande soldado. Conheci-o bem, ajudei um pouco para que melhorasse. Sei que foi um bom elemento que debaixo de fogo ajudou a construir o forno. 

Terminámos a Comissão em Outubro.
Tenho muito que contar, mas só pretendo dizer que sinto-me honrado por ter conhecido alguns desses homens, o sofrimento. Contarem os segundos de não escutar um simples tiro. Estive tempos infinitos no Cruzamento de Guileje para Gandembel. 

Escrevam, cada um de vós tem um pouco de história. (**)

Mário Vitorino Gaspar, 
Furriel Miliciano da CART 1659,
Gadamael Porto, de JAN67 a OUT68

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Notas do editor:


Guiné 63/74 - P14478: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (18): Operação Bola de Fogo - Construção de Gandembel (O Inferno)

1. Em mensagem do dia 7 de Abril de 2015 o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta memória da sua guerra que lembra a Operação Bola de Fogo - Construção de Gandembel.

Caros amigos
Tenho este trabalho pronto para encerrar o meu livro. Ele é fruto de alguns testemunhos que registam a participação da minha Companhia – a CART 1689. Portanto, perdoem-me a visão parcial e redutora dessa enorme e injustificada Operação que ficou bem marcada na história da Guerra Colonial.
Não sei se isto terá interesse para a publicação no nosso Blogue, até porque há vários testemunhos que já foram ali publicados.
Como hoje decorre o 47.º aniversário do início dessa Operação, lembrei-me de por o assunto à vossa consideração.

Um forte abraço do
Silva da CART 1689


Outras memórias da minha guerra

17 - Operação “Bola de Fogo” – construção de Gandembel 
(O inferno)



1 - DESTINO FELIZ OU PRÉMIO AO DEVER

Fui criado num ambiente extremamente humilde e bastante castigado pelo regime salazarista. Todavia, quando ouvi a minha Professora D. Irene, logo na primeira classe, ensinar-nos marchas e louvores a Portugal e aos nossos heróis, senti-me eternamente ligado à nossa Pátria. Recordo que, mais tarde, numa das redações que costumávamos fazer, exaltei o meu sentimento patriótico, prometendo que estaria disponível para dar a vida por Portugal. A Professora ficou comovida e, em lágrimas, aproveitou para me elogiar, arrancou a folha do meu caderno e colou-a na parede.
Orgulhoso pela história dos nossos antepassados, cimentei esse sentimento patriótico pela vida fora. Ainda hoje vibro de alegria ou choro de raiva, sempre que algum português se salienta ou é injustiçado.
Porém, quando a guerra do ultramar despoletou, já não sentia a mesma vontade e a mesma coragem de menino. No entanto, apesar de se notar bastante o interesse comunista em África, através da sua propaganda e apoio à libertação desses povos, era comum, entre nós, um sentimento de obrigação de lutar pela nossa defesa, pela defesa da nossa Pátria. Por outro lado, não havia grandes possibilidades de escolha; ou vais ou foges. Muitos fugiram porque tinham possibilidades financeiras ou contactos para fazer isso. Mais tarde, com o 25 de Abril, alguns deles beneficiaram, ainda, do estatuto de revolucionários, de antifascistas e de grandes patriotas.

Em 1965, quando ingressei no serviço militar, alimentava a esperança de que a guerra terminaria em breve. Porém, à medida que o tempo passava, as coisas pareciam piorar. Assim que me apercebi de que poderia ir para a guerra, procurei assimilar bem a instrução, especialmente quando tive que frequentar a especialidade de “Ranger” – Operações Especiais.
Na Guiné, tal como os outros combatentes, sofri com tristeza, raiva e angústia, os piores momentos da minha vida. Todavia, esforcei-me para dar o meu melhor na defesa dos meus interesses e dos meus camaradas, tendo participado nos maiores combates em que a minha CART 1689 esteve envolvida. Mas também tive a sorte de me safar positivamente deles.
Nunca faltei a nenhuma Operação até vir de Férias. Nem à OP Diabo Negro faltei (Vd. P7921 - Celebrando os meus 25 anos). Como fazia anos, poderia ter tido uma folga, normalmente concedida. Nessa altura o meu Pelotão estava mais desfalcado de graduados. Previa-se uma grande Operação e eu não me baldei. Quando falei nisso com o nosso Capitão, tive a oportunidade de lhe dizer:
- Enquanto estivermos em Intervenção, participarei em todas as Operações, mas quando regressar de férias “vou engolir um garfo” e não vou poder fazer mais nada!

Sempre soubemos que, depois de um ano em Intervenção, teríamos o chamado descanso. Por isso, programei as férias para Abril, com a convicção de que, atingido esse mês, poderia considerar-me livre de perigo.
Já de férias, enquanto me sentia efectivamente livre dos perigos da guerra e, ao mesmo tempo, já a entrar numa fase de projectos e de sonhos, coisas impensadas anteriormente, os meus camaradas da CART 1689 entravam (sem eu saber) na sua pior fase da guerra na Guiné.


2 - A CAMINHO DE GANDEMBEL
(Texto da autoria de Carneiro de Miranda)

"Depois da saída de Catió, a 22 de Março e passada a noite ao largo de Bolama, recordo bem aquela calma e descontraída deslocação em LDG, a caminho de Buba.
Os militares foram-se acomodando junto das suas mochilas, já rompidas de tanto uso e de tanta mudança. Quase não falavam. Limitavam-se a poucas palavras mas a muitos pensamentos, interrogando-se e matutando neste momento apreensivo. Quem se mostrava mais inquieto era o Machado, que questionava:
- Estamos a poucos dias de fazer um ano de Intervenção, cheio de porrada, de cansaço e de ronco, porquê sacrificar-nos mais uma vez?
Logo respondeu o Viana:
- Vamos pagar o custo do nosso bom comportamento.
- Claro - acrescentou o Rodrigues, que concluiu:
- Orgulhem-se do reconhecimento ao nosso valor.
- Boa Rodrigues. Só esperamos que esse valor não nos fique caro. – acrescentou o Zacarias.

Entretanto, enquanto alguns, mais isolados, mexiam no saco das fotos, cartas e outras recordações, quase a meio da LDG, estava o nosso capitão, sentado num mocho, de cabeça curvada, mais parecido com um condenado à decapitação. Esperava a intervenção do nosso Barbeiro. Talvez com alguma apreensão devido à sua necessária apresentação formal ao Comandante do Sector, o coronel Celestino Rodrigues. O tal que viria a ser punido com dez dias de prisão agravada, por problemas nesta Operação Bola de Fogo. Coisa nunca vista num Oficial Superior – segundo lamentava o sargento Viscoso.
Passámos mais de uma semana de “férias”, com actividades de lazer e de treino de tiro. Ainda me rio de ver o Sargento Biscaia a tomar banho com umas cuecas, cheias de carimbos, a fazer de conta que eram calções de banho. Até ao dia 6 de Abril ocupou-se o tempo com patrulhamentos com pelotões alternadamente, fez-se instrução de tiro, com competições de tiro ao alvo e outras de índole desportiva.
Dia 7 de Abril deu-se início à OP BOLA DE FOGO, uma das maiores realizadas na Guiné. Foi, talvez, a mais difícil, mais violenta e mais estúpida, depois da tomada da Ilha do Como.

O objectivo apontava para a implantação de um Aquartelamento (Gandembel) para efectivo de Companhia, no Corredor do Guileje, na região entre Gandembel e Ponte Balana.
Durante a Operação e dias subsequentes, além da nossa Cart 1689, actuaram também:
3.ª Companhia de Comandos
5.ª Companhia de Comandos
CCAÇ 2316
CCAÇ 2317
CART 1612
CART 1613
Pel Sap do BART 1896
Pel Caç Nat 67
Pel Caç Nat 51
Pel Mil 138
Pel Mil 139
Pel Rec Fox 1165
Pel Rec Daimler de Aldeia Formosa
BEng 447
27 Carregadores de apoio

A ida para Aldeia Formosa, por terra, em coluna auto, fez-se sem grandes receios aparentes. Na chegada reinava a calma. Foi muito agradável termos jantado com a Companhia de Comandos e ter-me encontrado com o tenente Carapeta, meu comandante de pelotão em Vendas Novas.
Saímos dali, pelas 22h00, também em coluna auto, em direcção a Chamarra, onde estacionámos até as 03H00 (08.Abril.1968). Estava iniciada a OP “Bola de Fogo”, uma das maiores e mais perigosas de toda a Guerra Ultramarina".


3 - OPERAÇÃO BOLA DE FOGO
Por José Neto
(Memórias de Guileje (1967/68) – blogue “luísgracaecamaradasda guine”)

"(…) A abertura da picada estava a dar pelas barbas à nossa tropa.

Era impossível jogar com o elemento surpresa porque tornava-se necessário retirar abatizes, detectar e fazer explodir fornilhos (até uma viatura GMC em tempos abandonada pelas NT foi pelos ares porque se desconfiava que estava armadilhada) e, principalmente, derrubar árvores para substituir os troncos apodrecidos que, no leito dos regatos, serviam de ponte para a passagem de viaturas.
Os turras nem precisavam de atravessar a fronteira para morteirar os lenhadores. E nós não podíamos ripostar por respeito às convenções internacionais.
Ao fim de duas ou três semanas, com muitos ferimentos ligeiros, mas sem qualquer morto, o itinerário foi dado como praticável e ia seguir-se a segunda fase, que era a marcha da Companhia para Gandembel.

Parecia-nos que, das duas, a CCAÇ 2316 era a que ia avançar, já que a CCAÇ 2317 tinha sido inicialmente designada para nos substituir em Guileje, mas afinal veio a ser esta última, a do 1.º sargento Martins, comandada pelo capitão Barroso de Moura, a quem coube o petisco.
Ao mesmo tempo, como manobra de pressão, iniciou-se do lado norte a abertura da picada Chamarra – Gandembel.
A valentia e pertinácia dos bravos de Gandembel devem ter impressionado o inimigo que fez deslocar para aquela zona um potencial de fogo considerável.
Pelo itinerário de Chamarra juntou-se à CAÇ 2317 a CART 1689 e, com acções pontuais dos Paraquedistas e dos Comandos e o apoio do fogo de artilharia e bombardeamentos dos Fiat da Força Aérea a posição consolidou-se, mau grado as flagelações contínuas de que era alvo.
Mas o cerne da questão continuava. Como o IN precisava de manter o reabastecimento dos seus grupos que actuavam no interior do território, passou a utilizar trilhos um pouco a sul de Gandembel, perto de Paroldade, e esses trilhos cruzavam-se com as nossas colunas que também iam reabastecer o novo aquartelamento.
Nestas condições, cada reabastecimento nosso era uma autêntica operação de três, quatro dias, com fogachadas por todos os lados.

Na última das três operações desta natureza em que a minha Companhia e outras unidades estiveram empenhadas, houve três mortos, sendo um nosso (o 1.º Cabo José Augusto da Silva Leal), outro do Pel Caç Nat 51 (o Fur Mil Sebastião Dionísio) e o terceiro do Pel Rec Fox 1165 (o Soldado Manuel Vieira).
Dois soldados nossos foram gravemente feridos e evacuados para Lisboa, o Júlio Rodrigues Calado e o José Alves Pereira e mais doze, de várias patentes, dos quais três do Pel Rec Fox 1165, feridos com menos gravidade e evacuados para Bissau.

O regresso ao quartel foi difícil e dramático.

O Capitão Corvacho teve de pedir fogo dos obuses de 8,8 dando as coordenadas dum lugar já bem do outro lado da fronteira, mas que sabia ser o ponto de onde o IN o estava a atacar com armas pesadas. O alferes comandante da força de artilharia hesitou e, ao pedir a rectificação dos elementos de tiro, fez saber que o fogo ia cair na zona da fronteira da Guiné-Conacri. Pelo rádio percebeu-se bem a irritação do capitão que insistiu e perguntou ao alferes se desconhecia que ele era oficial de Artilharia.

Resta um pormenor que revela a grandeza dos homens quando confrontados com situações extremas. Aquando do regresso desta última operação os tempos calculados para o trajecto modificaram-se devido à forte concentração de fogo do IN, com as consequências que já descrevi, e o Capitão Corvacho tinha a certeza que, se permanecessem na mata depois do sol-posto, poucos sairiam dali com vida. As viaturas rodavam em marcha lenta porque havia que inspeccionar cada metro da picada. (…)
Mais ou menos por esta altura chegou à Guiné o Brigadeiro António de Spínola, logo depois promovido a General, para substituir o General Schulz no Governo e Comando-Chefe da Província.
Notou-se perfeitamente uma alteração na cadeia de comando principalmente porque, como diziam os soldados, enquanto o primeiro nunca tinha saído do asfalto de Bissau, o segundo aparecia em todo lado sem se fazer anunciar.
Uma das suas primeiras visitas foi ao inferno de Gandembel onde quase obrigou à força o tenente piloto do helicóptero a descer. Foi-lhe fácil concluir que a posição era pouco sustentável e ordenou a retirada progressiva de modo a salvar a face das nossas tropas.

Constou, não posso garantir, mas acredito, que naquela aventura, as NT tiveram cinquenta e dois mortos e muitos feridos graves”.

(P527 de 16 de Fevereiro de 2006 - blogue “luisgracaecamaradasdaguine”)


4 – Do primeiro dia da OP Bola de Fogo
(Texto do livro “Cambança Final” de Alberto Branquinho)

“SÃO JOÃO NO PORTO”

Havia muita tropa envolvida na operação junto à fronteira com a Guiné-Conakri. Uns vindos de norte, outros de sul, em coluna auto.
A tropa que progredia na mata no sentido norte-sul começou a ouvir água a correr em declive acentuado. Era o rio assinalado na carta, que tinham de atravessar. Quando começou a ser visível, constataram que, então, na época seca, era um riacho com três ou quatro pequenos braços de água. Água doce, sem lodo nas margens, devido à altitude, embora muito baixa.
O pessoal que ia à frente e se preparava para atravessar o rio, agachou-se atrás das árvores, aguardando autorização para encher os cantis. A zona era muito perigosa. Não passava por ali tropa havia muitos anos. A autorização foi dada, mas, antes disso, devia passar para a outra margem um número suficiente de homens, por razões de segurança. Quando os primeiros se tivessem abastecido, iriam os outros substitui-los e depois a coluna, seguindo-se andamento lento.

A primeira secção preparava-se para sair da mata e atravessar o rio, quando surgiu, descuidado, na outra margem, um rapaz com sete ou oito anos. Trazia um barrete camuflado. Acocorou-se e retirou da água um pequeno caniço, dentro do qual se debatiam dois peixes. Depois de um momento de espanto e indecisão, um soldado apontou-lhe a G-3 e ia fazer fogo. O alferes agarrou-lhe a arma pelo guarda-mão e empurrou-a para baixo.
- Jubi ! – chamou-o.

O rapaz olhou em volta, procurando de onde vinha a voz. Viu os militares. Levantou-se e ficou estacado, largando caniço e peixes.
- Jubi, bô bem. – e fez-lhe sinal com a mão para se aproximar.

O rapaz fez menção de ir dar um passo em frente, mas voltou-se e desatou a correr para uma baixa do terreno do outro lado da margem e desapareceu na mata, não muito densa. O mesmo soldado e outro levaram as armas à cara, mas o alferes gritou-lhes:
- Não!

Toda a secção desatou numa correria, tentando agarrar o rapaz. Os que vinham atrás correram, também, sem entenderem o que se estava a passar. O alferes foi incapaz de os deter porque estava a comunicar ao capitão, pela rádio, o que acontecera.
- Instalar! Passa a palavra: instalar.
A correria parou e alguns começaram a regressar.
O capitão e o alferes, agachados, passaram para o outro lado do rio. Um furriel, que fora na perseguição, veio ter com eles.
- Há gajos por aqui. Há fogueiras apagadas, com cinzas quentes.
O capitão chamou o guia e deu-lhe instruções.
Recomeçou a marcha, lenta e cuidadosamente.

Não tinham passado mais que dez minutos – uma emboscada. Pouco tempo depois - outra emboscada. A marcha prosseguiu assim, entre emboscadas e tiros de morteiro, disparados não de muito longe, causando só ferimentos ligeiros, de estilhaços e areias.
Sobre o meio da tarde ou porque se lhe escassearam as munições ou porque detectaram a coluna de viaturas vinda do sul, pararam os ataques.
Feito o contacto entre as duas colunas, começou a preparar-se a instalação para passar a noite.
Em pequenos grupos, foram encher os cantis no auto-tanque.

Mal a noite ficou bem cerrada, recomeçaram os ataques. Agora muito fortes. Ora de leste, ora de norte, ora de nordeste – armas ligeiras, metralhadoras pesadas, lança-granadas e morteiros. Ao rasto das tracejantes, silvos de balas, acrescentavam-se os rebentamentos, quase ininterruptos. Na escuridão da noite, sem qualquer abrigo adequado, era impressionante e aterrador.
O alferes, instalado com o pelotão no lado oeste, teve de mudar de lugar, onde estava bem abrigado atrás de um poilão, para não ouvir o soldado que o acusava:
- A culpa é sua, meu alferes. Se eu tivesse “lerpado” o “puto”, isto não acontecia.

Junto à nova posição de abrigo do alferes, um outro soldado, deitado de costas, com a G-3 ao lado, no chão, olhava para cima e dizia, repetidas vezes, em sotaque nortenho:
- Parece o São João no Porto, carago!»

(IN: “Cambança Final” de Alberto Branquinho – Página 199 – Edição Vírgula, Maio de 2013)



Gandembel

Fotos: © Alberto Branquinho (2012). Todos os direitos reservados


5 - O INÍCIO DE GANDEMBEL/PONTE BALANA
(Texto de Idálio Reis)

"(...)
E por via disso, na superior linha de festo do rio Balana, nos viemos a quedar nessa manhã, para de imediato dar início à odisseia que representou a construção de um posto militar fixo, que se viria a chamar Gandembel e mais tarde a uma anexa afastada apenas de poucas centenas de metros, de nome Ponte Balana.

Sob a vigilância directa de uma tropa já bastante mais experimentada - a CART 1689 -, que já reconhecera o local antecipadamente, e que teve uma acção extraordinária durante a permanência que teve connosco até à sua retirada a 15 de Maio, e que é de elementar justiça salientar o papel relevante que sempre demonstrou, começámos a arranjar as nossas guaridas colectivas, autênticos abrigos-toupeira, que nos ofertassem uma maior segurança pessoal durante o tempo de construção dos abrigos definitivos.

Mas antes do mais, houve que proceder à limpeza arbórea da zona, onde a única ferramenta mecânica - a moto-serra -, nos propiciou uma ajuda preciosa. Não foi assim, mestre-soldado Horácio Almeida? Tu que desde criança, tens tido uma vida mancomunada com a floresta.”(…)

(P1654 de 12 de Abril de 2007 – blogue “luisgracaecamaradasdaguine”)


6 - EM GANDEMBEL
(Texto da autoria de Carneiro de Miranda)

"O furriel Marta, que se havia desviado para arrear a giga, ao sentir as formigas assassinas, a morder-lhe as partes, larga-se a correr agarrado às calças. Com este restolho, alerta uns turras que fugiram. Estavam a escamar peixe junto à margem. A nossa tropa, em descanso, não reagiu, para não espantar a caça.
Teríamos que continuar em direção ao Pontão, local apontado para nos juntarmos à CCAÇ 2317, futura defensora do aquartelamento a construir, com a designação de Toupeiras de Gandembel. Sob um sol escaldante, passámos entre um capim altíssimo, onde fomos atacados por moscas que, coladas ao suor, faziam de alguns de nós, pretos retintos. Seguíamos cautelosamente, tendo em atenção que o alerta já fora lançado, através dos fugitivos da beira rio.

Pelas 13H00, com o PCV e os T-6 à nossa vertical e quando já se ouvia o barulho das viaturas da coluna que vinha do Sul, o IN, instalado do lado Leste da estrada, desencadeou uma emboscada, cujo tiroteio demorou uns 10 minutos. Felizmente, tudo correu bem. De seguida avançámos para ver o ronco e fomos surpreendidos pelas abelhas. Situação resolvida e recebemos a ordem para avançar para o Pontão.
Inicialmente ficámos na dúvida se aqueles nativos, que vinham na frente. Seriam turras ou milícias. Valeu a nossa calma e uma dedução muito lógica: aquele barulho que os acompanhava não podia ser dos turras. Eles nunca se ouviam. Efectivamente, tratava-se da coluna que trazia os periquitos da CCAÇ 2317, acompanhados de outro pessoal, para iniciarem a instalação do aquartelamento. (…)
Fez-se a junção e procedemos à inversão de rumo, visando um local mais próximo do rio, para se fazer o aquartelamento. Guileje.
Mal nos distribuímos no espaço idealizado e logo sofremos um violento ataque de morteiros. Valeu-nos a 3.ª Companhia de Comandos, que acompanhava de perto a coluna e que deteve o avanço das tropas inimigas. Esta rápida intervenção dos Comandos deve ter tido grande influência intimidatória junto do IN, uma vez que passou a atacar mais de longe.

Nesta primeira noite em Gandembel, sofremos ataques às 20H00, às 23H30 e às 2h30.
Mal amanheceu, sofremos ataques às 6H00 e às 6H20.
Pelas 8H00, depois de reconhecido o local, procedeu-se à construção dos abrigos, cabendo à nossa CART 1689, a zona Norte e Oeste de um aquartelamento idealizado em forma de quadrado.
Neste dia 9, tivemos a primeira evacuação (por doença). Foi a de Joaquim Sousa Campos.
Grupos de 3 ou 4 elementos, com pequenas sacholas individuais, iniciaram escavações para se abrigarem do IN. Mal se cabia nas covas, cobriam-se com madeira e tudo que aparecesse. Enquanto uns trabalhavam no duro, outros tratavam da protecção da zona e do acesso à água. Apesar desta diminuta distância de 100 metros aproximadamente, o percurso foi sempre picado pela nossa CART 1689. Foram quase sempre os mesmos a fazer esta tarefa.

No dia seguinte (10 de Abril), pelas 10H30, sofremos um ataque que nos provocou dois feridos; João Inácio Sousa e o Eduardo Rodrigues Lopes.
O dia 11, que iniciou com um ataque sofrido durante 40 minutos, foi muito activo. Depois de uma boa resposta das NT, distribuímos pelotões por lugares chave, onde estiveram emboscados durante o dia. A partir deste dia, foi evidente o aparecimento de elementos doentes, que não podiam sair dos abrigos.
No dia 12, o ataque veio pelas 3H30. Nestes dias já encontrámos vário material deixado pelo IN e vestígios de sangue. Voltou a ser atacado pelas 22H30.
Este dia destaca-se pela chegada do primeiro correio e pelo início da construção da padaria.
Cedemos quatro “especialistas” para isso. O pessoal da nossa 1689, andava sempre ocupado em emboscadas e a montar segurança aos trabalhos da CCAÇ 2317, que veio a ser apelidada de “Os Toupeiras de Gandembel”. Abate das árvores e construção dos abrigos, eram trabalhos quase ininterruptos.
O tempo corria vagarosamente. Normalmente sofríamos ataques todas as noites. Por vezes, nem tempo nos davam para dormir.

Enquanto nós ansiávamos pelo regresso, cientes que terminaria o nosso período de intervenção, pensávamos nos desgraçados dos Toupeiras que iriam viver naquele inferno.
No dia 13 foi evacuado, por doença, Fernando Martins da Cunha.
No dia 17, quando faziam um patrulhamento de reconhecimento, foram atingidos por uma mina, o Furriel Belmiro Santos João e o nosso Capitão Manuel Moreira Maia. Foram evacuados para Bissau, onde viria a falecer o Belmiro.
No dia 19, dia em que deixou de haver pão, Foram atingidos por um dilagrama: Una Infalé, José M. Martins Costa Rêgo e Raul Pires. Foram evacuados para Bissau, onde veio a falecer o Una Infalé.
No dia 20, houve a primeira visita de um médico.

Dia 24. Já se havia entrado em comportamentos de rotina. Várias baixas, vários doentes inertes, dentro dos abrigos e muitos elementos debilitados, já se acomodavam ao esforço mínimo. Os Toupeiros, talvez mais cansados fisicamente, devido ao trabalho permanente, parecem agora pouco motivados e muito acomodados. Os militares da 1689, já com algumas baixas e sem o Capitão, chegaram a protestar por esta situação.
Lembro-me de termos ido montar segurança para protecção a uma coluna vinda do Guileje, comandada pelo Cap Corvacho, em que nos acompanhou um pelotão dos “Toupeiras”. Os turras soltaram as abelhas, que se dirigiram para este pelotão. Ia sendo um desastre! Estes militares descontrolaram-se e fugiram para o trilho, aos gritos, sujeitos a outro tipo de acção do IN. Muitos estavam tão inchados das ferradelas que nem se reconheciam. Regressámos ao aquartelamento e esperámos o que fazer. Chega a ordem para se voltar para a segurança à coluna e a maioria dos militares da 1689 recusa-se a fazê-lo, alegando o perigo da actuação da Companhia dos periquitos (Toupeiras). Estes apareceram mas, da 1689, só foram 14 elementos. Alguns, mais afoitos, isolam-se na coluna e provocam alguma confusão, porque outros não querem ir na frente. Rebenta um forte ataque do IN, que se havia emboscado à espera da coluna de Guilege. Aproximámo-nos do local do “assalto” e vimos o camião GMC carregado de cerveja, metido na cratera de um fornilho. Quando perguntei ao Corvacho o que iriam fazer à GMC e à cerveja, uma vez que estava a ficar tarde, ele disse:
- Não te preocupes, se a GMC não sair, rebento as garrafas com meia dúzia de granadas. Estes filhos da puta não vão beber nenhuma.

Felizmente a GMC saiu do buraco, para bem de todos e, muito especialmente, para os da 1689 que se abasteceram razoavelmente. Soubemos que no seu regresso a Guileje, esta coluna sofreu mais ataques em emboscadas e teve mais feridos.
Dia 26 de Abril, a nossa CART 1689 completava um ano. E todos os dias 26 davam motivo há maior bebedeira do mês. Ali, não havia Messes, Refeitórios ou Bares. Só buracos no chão e alguma água do rio. No entanto, sabe-se lá como, o nosso pessoal foi bafejado com a oferta de algumas garrafas de bagaço. Fracos e doentes como andavam, os soldados acusaram rapidamente o efeito exponencial de tais cargas etílicas. E o IN, talvez sabedor do significado desta data, resolveu atacar desmedidamente. Valeu-nos o ânimo bagaçal adquirido, para uma resposta compatível. E quando o festival acabou e se concluiu que ninguém havia sofrido ferimentos, foi a alegria generalizada".


7 – NOS PRIMEIROS DIAS

Vejo, pela História da Companhia, que a minha CART 1689 permaneceu naquele espaço, que veio a ser o quartel de Gandembel, cerca de um mês e meio.
Eu já tinha vivido com a Companhia a experiência de longos dias na construção de outro quartel totalmente novo (“Gubia”, no sector de Empada). Mas, devido a perigosidade da zona onde ia sendo construído o quartel de Gandembel, a poucos quilómetros da fronteira com a Guiné-Conakry, situado no chamado Corredor da Morte/Corredor de Guileje, eu calculava que os primeiros dias deveriam ter sido muito difíceis. Eram os ataques constantes de que falavam, a necessidade de água, organização do terreno para efeitos defensivos, para albergar (com a segurança necessária) duas-Companhias-duas num espaço tão limitado e em terreno praticamente plano.
Já tinha abordado estes aspectos com alguns graduados, mas a conversa derivava sempre para outros aspectos pessoais, de cada um, relacionados com a actividade operacional em período de tempo mais avançado e não durante a bagunça que, entendia eu, teriam sido os primeiros dias.

Num convívio da CART 1689 abordei este aspecto com alguns soldados:
- Então e nos primeiros dias, como é que foi? Muita confusão? E água? Havia água ou era cerveja?

Vou tentar reproduzir, com a realidade possível, partes do diálogo que as minhas perguntas causaram.
- Água? Água, a gente tinha. Havia um rio ali pertinho. Foi o único rio que eu vi na Guiné que não tinha água salgada.
- De dia os gajos atacavam, mas era só de longe. Com canhões e morteiros. Mas de noite os filhos da puta vinham de ao pé e com metralhadoras e tudo. E era todos os dias, de manhã e à noite e se não era de dia, chateavam-nos a noite toda.
- Então, quando a gente ainda estava a cavar os abrigos para três ou quatro de nós (que ficaram tapados com troncos em cimba e despois com chapas de bidões e depois com terra por cimba), não havia mais nada e tínhamos que ir “arrear o calhau”. Ora, pois! Como não havia inda onde ir, cagávamos do lado de lá das árvores maiores. Arreávamos as calças, púnhamos a G3 encostada às árvores, sempre com os olhos a olhar à volta. Feito o serviço, voltávamos p’rá picareta e p’rá pá. Quando os gajos vinham à noite p’rá atacar, deitavam-se ó detrás dessas árvores e cagavam-se todos. Eh! Eh! Eh! Eh! Eh!
- Póis! Mas as mais das vezes a gente andava a montar emboscadas e a fazer patrulhamentos de segurança às obras que os periquitos andavam a fazer.
- Mas, quando precisavas, também cagavas assim, daquela maneira, ou não?


8 - 15 de Maio – DIA TERRÍVEL
Primeiro ferido grave da CCAÇ 2317 – Furriel António Alves
(Texto da autoria de Carneiro de Miranda)

“Julgo que era o segundo ou terceiro dia em que os Toupeiras efectuavam o trabalho do abastecimento de água. A Cart 1689 sairia neste dia de Gandembel e já deixara de o fazer.
A Companhia “Os Ciganos”, apesar dos seus cuidados bastante experimentados, tivera ali, em Gandembel, 2 mortes e dezenas de evacuados. Todavia, sempre manteve os cuidados essenciais de comportamento, incluindo, neste caso, a prática diária de picar esse escasso percurso de cerca de 150 metros.
Ora, os Toupeiras, ao contrário dos “Ciganos”, não sentiram necessidade de picar esse pequeno percurso. Claro que o experimentado IN estava atento a estes facilitismos e, logo no dia seguinte, ouviu o rebentamento das minas colocadas.
Disse-me o Cabo Mendes:
- Ó furriel, foi chocante ver o estado do seu colega que, com as pernas esfaceladas, dos joelhos para baixo, gritava:
- Tirem-me as botas! Tirem-me as botas!”


9 – No último dia da CART 1689 na OP BOLA DE FOGO
(Texto do livro “Cambança Final” de Alberto Branquinho)l

“DESPOJOS”

"Eram cerca de nove horas da manhã. O calor começava já a apertar. O pessoal da Companhia estava pronto e equipado para sair, com os seus pertences dentro dos sacos de lona. Estavam encostados nas sombras possíveis, na proximidade dos abrigos, prevenindo a necessidade de terem que se proteger em caso de ataque.
Aguardavam a coluna auto que estava a chegar, de norte, para, depois, saírem desse quartel fortificado, com as mesmas viaturas, em marcha apeada, fazendo o movimento de retorno. A norte ouviram-se três ou quatro (cinco?) rebentamentos de grande potência. A primeira reacção foi correr para os abrigos. Muitos estacaram imediatamente, porque, estouros com aquela força, não tinham nada a ver com “saídas” de canhão ou de morteiro. Todos os rostos se viraram, com expressão ansiosa para norte. Uma nuvem de fumo e pó começou a surgir e a avantajar-se muito ao longe.
- Que merda foi aquela?

A resposta chegou pouco depois, via rádio e retransmitida boca a boca: “Fornilhos”.
Chamam-se os enfermeiros e saem viaturas, com mais pessoal, em socorro.
A coluna tarda e não há mais notícias.
Chegam as viaturas que tinham saído. Os homens vêm com ar soturno. Duas viaturas tinham sido despedaçadas e havia muitos pedaços de corpos.
Quantos? Ninguém sabe responder.
As primeiras viaturas da coluna começam a chegar. Entra a viatura, de caixa aberta, com os pedaços de corpos. Alguns, curiosos, agarram-se às cancelas e espreitam:
- Foda-se! Queimados! Parecem todos pretos.

A viatura é coberta com panos de tenda amarrados, depois de enxotarem as moscas, que teimavam em ficar por debaixo dos panos.
Mais do que medo, uma raiva enorme, surda, irracional enche as cabeças e os peitos. Muitos cospem para o chão de forma maquinal, contínua, inconscientemente.
As viaturas são abastecidas de combustível para o regresso, directamente dos bidões, ao mesmo tempo que é retirada a carga que se destina ao quartel
Reorganiza-se a coluna para o regresso, com a indicação de que a viatura com os pedaços de corpos seguirá em último lugar. O pessoal da Companhia que aguardava seguirá apeado, espaçado, pelotão a pelotão, entre as viaturas.

Começa o andamento, desenrolando o “novelo” de viaturas e de homens. A raiva sobe-lhes às cabeças. Os dentes cerrados. Há indicação para estarem, também, atentos às copas das árvores.
Não demoraram muito tempo a chegar ao local de rebentamento dos “fornilhos”. Cabia um homem agachado dentro de cada buraco. Um furriel, quando viu um braço ou, talvez, uma perna, pendurado de um ramo, disse para um soldado:
- É pá, deixa aí a G-3 e vai lá em cima buscar aquilo, que a gente dá-te cobertura.
- Foda-se! Ir lá em cimba?! Bá lá bocê!

Frente à recusa, ficou parado, a olhar fixamente para “aquilo” e desistiu.
Ia recomeçar a andar e olhou para o chão. Viu, junto ao tronco de uma árvore, três ou quatro formigas grandes, pretas, que, com as pinças da cabeça cravadas, tentavam arrastar um pedaço de carne, ainda com um farrapo de farda camuflada agarrado. Com raiva, elevou o pé para esmagar as formigas (e, ao mesmo tempo, o pedaço de carne), mas susteve o pé no ar, com a perna flectida e acabou por dar um passo mais largo, passando adiante. Voltou-se para observar melhor e verificou que havia mais pedaços de carne, em volta. Ficou a olhá-los, sem dar conta que viaturas e homens iam passando por ele. Ele já não estava ali. Pairava, cérebro vazio…
Retomou a marcha, maquinalmente, devagar, muito devagar, titubeante e, entre dentes, ia repetindo Lavoisier: “Na natureza nada se cria… nada se… nada se… nada se perde… nada se perde… nada se perde…"

(IN: “Cambança Final” - página 157, edição Vírgula - Maio de 2013)


10 - O ALFERES MONTEIRO
(Texto do livro “Na Tenda do Mestre Isaías” de Emídio Soares)

"Quando passámos por Aldeia Formosa, onde jantámos na noite de 7 de Abril, tivemos a oportunidade de conviver com os militares ali estacionados. Dentre eles, destacamos o alferes Monteiro que, com a comissão quase terminada, aguardava, sem pressa, o seu regresso a Bissau e a Lisboa. Para além de manifestar essa satisfação do dever cumprido, o Monteiro, exteriorizava uma agradável camaradagem e uma evidente simpatia. Parecia que todos o admiravam. Todavia, quem mais o apreciava era o seu grupo de africanos com quem viveu intensamente quase dois anos.
No dia 14 de Maio, o Monteiro ainda estava em Aldeia Formosa. Precisamente nesse dia, o seu Comandante dava-lhe conhecimento que o seu pelotão teria que seguir de madrugada na coluna auto para Gandembel, a fim de levar materiais de construção e géneros alimentícios e, ao mesmo tempo, trazer de volta a CART 1689 que havia terminado a sua missão.
O Monteiro, numa atitude de solidariedade e de despedida do seu grupo, solicitou ao Comandante que o deixasse fazer esse último serviço.

A coluna seguia normalmente e cerca das nove horas já estava perto de Gandembel. Perante umas rajadas de armas ligeiras, a coluna parou e os militares atiraram-se para a as margens da estrada, a fim de se posicionarem e de se defenderem. Logo de seguida explodiram 12 fornilhos, transformando as valetas em crateras, e massacrando a maioria do pelotão do alferes Monteiro.
Seguiram-se cenas horrorosas na procura de corpos e pedaços de carne humana, espalhados em redor daquela zona de morte. Grande parte deles pendiam das árvores, para onde foram disparados.
(…)
No início desta recta, à terceira cratera, do lado direito, e junto à estrada, via-se um tufo de três palmeiras. Numa delas, estava uma perneira de calças de camuflado, com uma bota amarrada e pendurada na copa da palmeira. No tronco da palmeira central, estava a tampa do crânio de uma cabeça com cabelo loiro, à altura de um metro e quarenta, do chão. O resto do tronco até ao chão, era uma massa de carne e sangue, impregnada na casca da palmeira. Deduzimos que eram os restos mortais do alferes Monteiro. Ele era o único branco e loiro do pelotão”.(…)

(IN: “Na Tenda do Mestre Isaías” – página 120, de Emídio Soares, edição do autor)


11 – GANDEMBEL - A TERRA DOS HOMENS DE NERVOS DE AÇO

Por Idádio Reis

"(…) A briosa e colaborante CART 1689 despede-se definitivamente do nosso convívio, e a partida-separação deste bravo punhado de homens, deixou-nos claramente mais pobres, porquanto ficávamos francamente mais indefesos e inseguros. Em mais de um mês que nos acompanhou, até 15 de Maio [e 1968], desenvolveu um trabalho extremamente meritório, tendo-se empenhado denodada e esforçadamente em nos acompanhar. Passou também por graves vicissitudes, em que perde fatidicamente um furriel, alvo de um dos vários artefactos armadilhados por ela mesma, e sofre mais de uma dezena de evacuações, por ferimentos e doenças, entre os quais o seu capitão-comandante.” (…)

(IN: “No Corredor da Morte – A CCAÇ 2317, na guerra da Guiné” – página 112 de Idálio Reis, edição do autor – Fevereiro de 2012)


12 - HINO DE GANDEMBEL
Recolha de José Teixeira
Revisão e fixação de texto: L.G.

“Ó Gandembel das morteiradas,
Dos abrigos de madeira
Onde nós, pobres soldados,
Imitamos a toupeira.

- Meu Alferes, uma saída! -
Tudo começa a correr.
- Não é pr’aqui, é pr’ponte! (i),
Logo se ouve dizer.

Ó Gandembel,
És alvo das canhoadas,
Verilaites (ii) e morteiradas.
Ó Gandembel,
Refúgio de vampiros,
Onde se ligam os rádios
Ao som de estrondos e tiros.

A comida principal
É arroz, massa e feijão.
P’ra se ir ao dabliucê (ii)
É preciso protecção.

Gandembel, encantador,
És um campo de nudismo,
Onde o fogo de artifício
É feito p’lo terrorismo.

Temos por v’zinhos Balana (i),
Do outro lado o Guileje,
E ao som das canhoadas
Só a Gê-Três (iv) te protege.

Bebida, diz que nem pó,
Só chocolate ou leitinho;
Patacão, diz que não há,
Acontece o mesmo ao vinho!”

(P2319 de 1 de Dezembro de 2007 – blogue “luisgracaecamaradasdaguine”)


13 – NOTAS FINAIS

1 – Já em Catió, regressado de férias, deslocava-me amiúde para o Cais, esperando a chegada da minha Companhia. Na manhã do dia 24 de Maio ouvi um tiroteio a jusante. Era a LDG a ser atacada de ambas as margens, tendo-lhe sido causado dois rombos: um do lado esquerdo e outro à ré.
2 – Ao registar aqui a maior e mais perigosa OP realizada pela minha CART 1689, sem ter participado nela, pretendi somente transmitir alguns testemunhos que possam vincar a sua acção.
3 – Para assimilar melhor o que foi a guerra em Gandembel, aconselhamos o livro” No Corredor da Morte”, escrito pelo alferes Idálio Reis, da CCaç 2317, que esteve lá desde o início da OP Bola de Fogo até ao abandono do quartel, por ordem de Bissau (10 meses depois), do qual são transcritas acima algumas passagens.

Silva da Cart 1689
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12887: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (17): O Asdrúbal do Cu da Serra e os seus amores tardios