sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15387: Notas de leitura (777): “O Mundo Português”, revista de cultura e propaganda, editada pela Agência Geral das Colónias em conjunto com o Secretariado da Propaganda Nacional em Abril de 1936, um número dedicado à Guiné (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Fevereiro de 2015:

Queridos amigos,
Lá diz a consigna "a sorte favorece os audazes", mal entrei na Feira da Ladra em dia de chuvisco e bruma, e num dos passeios que circundam S. Vicente alguém vendia a granel um conjunto de números de uma revista que fez época.
Este número de Abril de 1936 era exclusivamente dedicado à Guiné, bem ilustrado, com belas fotografias, com expressivos subsídios para uma bibliografia da Guiné. Escolhi alguns parágrafos avulsos que me pareceram esclarecedores do que era o sentido da nossa "ação civilizadora", de como se amava o Império, como se mostravam os seus heróis, se fazia etnologia e etnografia rudimentares, contos como Artur Augusto Silva aqui publicou.
É impossível deixar de ler esta revista se se quer conhecer a ideologia do Estado Novo face ao Império naquele tempo em que eclodia em Espanha uma guerra civil.

Um abraço do
Mário


Um olhar sobre a Guiné, 1936

Beja Santos

“O Mundo Português”, revista de cultura e propaganda, editada pela Agência Geral das Colónias em conjunto com o Secretariado da Propaganda Nacional, publicou em Abril de 1936 um número exclusivamente dedicado à Guiné. Se acaso pretendêssemos ter acesso a uma comunicação reveladora do que era o sentido civilizacional do Estado Novo à data, os textos a que se fará referência mostram-se esclarecedores, registam o pensamento ideológico da época em toda a sua extensão.

Logo o artigo “Gente negra, corações vermelhos”, de autoria do coronel Leite de Magalhães. Abre assim: “Negros! Porque Deus os fez assim, diferentes de nós em cor, há quem viva entocado na crença de que naqueles peitos só se formaram corações e almas de timbre inferior. Na dúzia e meia de anos em que andei caboucando, apaixonadamente, por esse ultramar além, quantas vezes me feriu os ouvidos, num grito raivoso, a apóstrofe depreciativa ‘eh, cão negro’ cuspida sobre um pobre diabo que se encobria de pavor e humildade…”. E exalta as grandes qualidades dos Mandingas: “Foi na Guiné, em 1897. Sob o comando do alferes Graça Falcão, organiza-se uma coluna em Farim para castigar os rebeldes do Oio. Era porta-bandeira da coluna um chefe Mandinga: Limani Injai. No dia 29 de Março, um tiroteio infernal rompe da floresta alvejando a coluna. Soldados e irregulares Mandingas batem-se como leões. Caem mortos o tenente António Caetano e o alferes Luiz António. E no mesmo campo morre também heroicamente o grande chefe Mandinga Quecuta Mané. Três sargentos e mais catorze cabos vão caindo sucessivamente. Limani Injai, orgulhoso do troféu que lhe fora confiado, erguia-o a toda a altura do seu braço robusto e agitava-o intrepidamente, numa provocação ao inimigo. De súbito, oscila e cai. O sangue, em borbotões, jorrava de uma ferida. Mas lembra-se da bandeira, grita para que lhe acudam. Cai de novo, em novo arranco ergue-se sobre as pernas, e de bandeira alçada, a plenos pulmões, lança um apelo de socorro. Um soldado aproximou-se e Limani Injai ao vê-lo aponta-lhe a bandeira caída murmurando: leva-a. E expirou. Qual será o povo capaz de citar ao mundo um caso de amor semelhante?”.

Hugo Rocha escreve sobre Mamadu Sissé, régulo e tenente de segunda linha, figura de destaque da I Exposição Colonial, que se realizou no Porto em 1934. A sua fama era tão grande que o Alcaide de Vigo exigiu vir à exposição pôr-lhe no peito uma condecoração. E ao autor explana sobre a bravura deste chefe Mandinga: “Durante dois anos, Mamadu Sissé serviu às ordens do Tenente-Coronel António Maria. Constara que um aeroplano francês descera na região de Jefunco. Os Felupes alvoraçaram-se, deflagrou uma revolta. Entretanto, saiu de Suzana uma coluna comandada pelo Capitão Jorge Velez Caroço. Os Felupes, em número de 1500, atacaram numa lala. Vieram reforços com Mamadu Sissé à frente, e a seguir repeliram os rebeldes, mas o corpo de Mamadu ficou marcado por cinco golpes de azagaia. Teve comportamento notável na campanha do Oio, em 1908, contra os régulos Bonco Sanhá e Infali Soncó e contra os Papéis de Bissau. Em 1913, bateu-se contra os Balantas de Mansoa”. Descreve mais e mais façanhas, e o artigo termina assim: “Estimado pelos brancos, Mamadu Sissé é um preto feliz. Passou o tempo das guerras, é certo. Não há, já, Felupes ou Manjacos rebeldes para subjugar. Todavia, se lhe requisitarem o braço prestigioso, que tem fama nas terras da Guiné, Mamadu não recusará”.

Maria Archer, à época com notoriedade no campo da escrita, deixa-nos o seu depoimento sobre a Guiné em 1917, chegou a Bolama ao amanhecer de um dia brumoso e descreve a cidade como muito pobre e triste, o palácio não passava de um barracão acaçapado, deselegante. Meses depois foi viver para Bissau, e é bem curiosa a descrição que nos deixa: “Quando cheguei a Bissau pouco tempo havia que a cidade fora desaperreada do seu espartilho de muros. Só na fortaleza persistia o aparato bélico. Todas as noites se ouviam os berros das sentinelas. Os extremos das ruas, após a derruba dos muros, escancaravam-se sobre a selva. Bissau ainda não criara arrabaldes. Conservava o seu aspeto de presídio, de guarita militar atalaiando o resgate das mercadorias. Nessa época tinha apenas duas ruas, longas, mal calçadas. A ponte de cimento, obra rica, construíra-se, mas mantinha-se inacabada. Havia boas casas, empilhadas. Torturada nos seus muros, Bissau estrangulara-se. Seu aspeto era horrível (…) Teixeira Pinto, o grande capitão africano, batera os Papéis, as muralhas de Bissau já não apertavam a cidade na gargalheira do ergástulo, mas ainda se não iniciara a construção de novos edifícios. Brancos e indígenas viviam amontoados. Os pretos dormiam às dúzias em quartos alugados, noite e dia abertos sobre as ruas. As mestiças pobres viviam em promiscuidade e cozinhavam na calçada. Contava-se como certo que as onças se aventuravam até à cidade, a horas mortas, e que algumas, mais ousadas, roubavam crianças dos quartos cheios de gente adormecida. Ninguém se atrevia a passear no mato. Os Papéis continuavam a infundir terror. Espairecer até ao Alto de Intim era façanha só acessível a ânimos intemeratos. Não havia estradas. A penetração da selva fazia-se pelos rios e canais. Os viajantes chegados do interior raras vezes contavam seus espaços sobre terreno. Eram sempre histórias de viagens sobre a água, rios doces, rios salgados, encalhes no lodo e no mangal, riscos com hipopótamos e crocodilos. Sai da Guiné. Corri as sete partidas do mundo. Coisa alguma esbateu na minha memória essa região exuberante, que não compreendi – e me maravilhou. Taça fervilhante de raças inimigas, de religiões que se combatem, de povos que se medem. Terra fértil, apojada de selva, desentranhada em frutos. Clima tropical, pródigo de malefícios. Sol, água, seiva, gentes – em transbordamentos”.

Um número de revista fértil em histórias e discursos. E tem fotografias prodigiosas, acreditem, vou digitalizá-las para o vosso juízo. A bibliografia da Guiné é igualmente boa, quem a estuda encontrará surpresas. E não resisto a deixar-vos aqui igualmente desenhos de modernistas que aqui buscavam o seu ganha-pão, caso de Bernardo Marques e de Stuart.




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Nota do editor

Último poste da série de 16 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15373: Notas de leitura (776): Reler Álvaro Guerra: “O Capitão Nemo e Eu” (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Gosto mais de BS quando se perde pela feira da ladra do que quando se perde em Roma ou em Paris.
Em 1936 já Salazar tinha 3 anos de 1º Ministro, se não me engano.
Já Salazar se agarrava ao Ferro (António) e falava.
Já mandava historiar como os Mandingas ajudavam os brancos a unir aquilo que não tinha lógica.
Unir tribos.