domingo, 11 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15234: Libertando-me (Tony Borié) (38): A nossa farda amarela

Trigésimo oitavo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 29 de Setembro de 2015.




A Nossa Farda Amarela

A nossa vizinha, que também veio lá do norte, anda pela nossa idade, quando vem cá fora, buscar o jornal pela manhã, às vezes encontramo-nos, e ela, mostrando um “sorriso amarelo”, pois ainda não cuidou de si, fazendo a higiene matinal, levanta a mão, dizendo “Olá”.

O amarelo é a cor do ouro, da manteiga e dos limões maduros, entre outras coisas, mas no espectro de luz visível e, na roda da cor tradicional usada por pintores, a cor amarela encontra-se mais ou menos entre a cor verde e laranja. É uma cor primária, usada na impressão a cores, juntamente com a cor azul, magenta ou preto, também entre outras.
No nosso tempo de jovens, se alguma rapariga, quando frequentava aqueles bailes, ao som daquelas máquinas modernas a que chamávamos “toca-discos”, queria sobressair, bastava levar um vestido “amarelo”, pois passava logo a ser a mais popular, passava a ser “a rapariga do vestido amarelo”.

De acordo com algumas pesquisas, a cor amarela é a cor mais frequentemente associada com diversão, optimismo, bondade, espontaneidade, mas também com uma duplicidade, a inveja, o ciúme, a avareza, ou mesmo com covardia e, na cultura asiática, particularmente na China, desempenha um papel importante onde é vista como a cor da felicidade, glória, sabedoria, harmonia e cultura.
Se um casal, muito honrado e trabalhador, conhecido como “os Silvas”, construir uma casa e lhe der a pintura final na cor “amarela”, essa casa, nesse momento deixa de ser a casa dos “Silvas”, para ser a “Casa Amarela”.

Ufa..., chega de exemplos da cor “amarela”, vamos falar de nós, do nosso uniforme militar, com que fomos combater para África, que era “amarelo”, portanto, o nosso moral era triste, alegre, assim-assim, mas a certeza era que íamos “amarelos”, dentro daquela vestimenta padronizada e regulamentada, usada por alguns de nós, membros das forças armadas, contribuindo para a elevação e auto-estima, potencializada pela manifestação de força com que nos educaram no treino específico de recruta, convencidos de que éramos a força de combate mais letal do mundo, onde, além de lutar e matar o inimigo em combate, íamos transmitir a tal manifestação de força, mas talvez sem os responsáveis pelo governo de então, lá em Portugal saberem, era potencializada por um ideal de igualdade, com que fomos quase todos nós, independentemente de origem ou condição, educados no nosso lar, em nossas casas, transmitidos por nossa família.





Não sabemos quem foi o “designer” de moda popular, que projectou tanto a “farda cinzenta”, feita de pano grosso, tal qual um cobertor ou tapete, que se usava no então Continente, lá na Europa, ou a “farda amarela”, demasiado quente para climas tropicais, que na altura era usada por militares de alguns países, principalmente os envolvidos em conflitos, mas francamente, combater em África, uma região quente e húmida entre outras anomalias climatéricas, naquela “ganga amarela”, onde a princípio, antes de ser lavada, uma, duas, três, talvez só à quarta vez, largava aquela “goma”, parecia “cola” e, quando isso acontecia, pouco mais durava, começando o tecido a desfazer-se, principalmente na zona onde a transpiração mais se fazia notar.


Não sabemos ao certo, mas cremos que talvez pelos anos de 1965/66, o Exército trocou de uniforme, começou a usar um tecido de cor verde azeitona, creio que tanto na Europa como no então Ultramar, mais leve, mais aconselhado ao clima, ao combate tropical, começaram a aparecer lá por Mansoa, um tipo de uniforme, onde o militar se sentia mais confortável, onde os padrões básicos do uniforme se adaptavam melhor ao combate, com bolsos de abas largas, mais resistentes, nalgumas áreas com botões cobertos a pano, para não se agarrarem ao terreno daquelas savanas africanas, onde o Curvas, alto e refilão, do tempo da “farda amarela”, junto de seus companheiros, percorria quase todos os dias, com um uniforme roto, umas botas de lona, também rotas, sem meias, com os dedos a verem-se, atadas por um fio qualquer, só nos últimos dois buracos.

Quando esses novos uniformes chegaram, éramos, pelo menos no aquartelamento de Mansoa, uns militares com uniformes multicolores, havia a “farda amarela” e a “farda verde azeitona”, que podia ser usada com calções verdes e camisa amarela, ou camisa verde e calções amarelos, com o inconveniente de a nossa lavadeira trocar as camisas ou os calções do Curvas, alto refilão, que há muito não tinham forro nos bolsos, pelos calções dum qualquer “periquito”, que era um militar da companhia nova, que tinha chegado a Mansoa há pouco mais de um mês.

Só mais um pormenor, temos orgulho, os nossos companheiros continuam a sacrificar-se, continuam a erguer estátuas e monumentos, lembrando a maldita guerra que lá vivemos, podia, talvez, lembrando quem nos trazia mais ou menos “limpos”, quem nos tratava da “farda amarela”, tal como a “farda verde azeitona”, a um canto, em baixo, mesmo num local quase invisível, uma simples e eterna dedicatória “à nossa lavadeira”.

Tony Borie, Setembro de 2015.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15199: Libertando-me (Tony Borié) (37): Tirar férias na guerra

2 comentários:

Antº Rosinha disse...

Tony, como emigrante a tua memória vai a pormenores que passam desapercebidos a outros.

Nesse caso das fardas, amarelas, como dizes, quando apareceram no início da guerra !961) em Angola, faziam-me lembrar a desfilar os batalhões à saída do barco, aquelas tropas inglesas dos filmes da guerra da Índia, e na II Grande Guerra com os filmes de Montgomery no norte de África contra Rommel.

Era a farda Caqui que os ingleses criaram moda, e nós como em tudo, copiamos com uns anos de atraso assim como acontece com tudo, até com a moda da mini saia.

Mas com tanta tropa branca a desembarcar e a desfilar com grande aprumo e bem fardados, a malta colona que muitos já estavam(os) a "dar corda aos sapatos", para dar o fora, fomos acreditando que estavamos salvos, e até uma certa altura funcionou.

Mas a farda não faz o monge, digo eu que entre outras coisas também fui emigrante como tu.

cumprimentos

Hélder Valério disse...

Sim senhor, amigo Tony, vieste recordar 'as nossas lavadeiras' e assim prestar-lhes uma justa homenagem.
Quem sabe se o nosso "comandante-chefe" Luís não nos incentiva a escrever sobre as nossas lavadeiras? E o 'pontapé de saída foi teu!

Falando de fardas, pois, tal como o experiente e autodenominado 'colón' Rosinha refere, a evolução do 'cinzento' para o 'amarelo' depois para o verde e o camuflado teve que ter o seu tempo de amadurecimento.... Olha, eu já fui de camuflado!

Gostei da tua exposição sobre o 'amarelo'. Acho que te esqueceste dum 'amarelo' importante, o da Carris, que tal como dizia uma canção "o amarelo da Carris / já teve um avô outrora que era o 'Chora' / teve um pai 'americano' / foi inglês por muito ano / só é português agora"... mas isso também já foi faz tempo, pois agora com as 'reprivatizações e as vendas a estrangeiros' já não sei muito bem o que é.
Depois, como sabes, esse exemplo que deste da "casa amarela" é 'perigoso'. Lá para os lados de Barcelos (Barcelinhos, mais propriamente) a 'casa amarela' é (era, não sei se ainda é) onde se colocavam os 'alienados'....
Depois ainda bem que deste o exemplo dos "Silvas" na 'casa amarela', pois se fosse na 'casa cor-de-rosa' ainda podia haver más interpretações.

Mas, o que conta mesmo é o que fizeste: farda amarela, farda verde, limpinha, limpinha, só por acção da lavadeira (mesmo que um 'bocadinho' estragada, a roupa, entenda-se).

Hélder S.