sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15224: Notas de leitura (765): “Les Luso-Africains de Sénégambie”, de Jean Boulègue, Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, 1989 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Dezembro de 2014:

Queridos amigos,
Se há tema que mantenho intacto o seu halo de fascínio e exotismo, quando se estuda a história remota da nossa presença na Guiné são os lançados ou tangomaus, quem está interessado em conhecer mais pode navegar com sucesso no Google.
Este livro de Jean Boulègue é um importante contributo para se perceber o papel dos lançados na constituição das comunidades luso-africanas que floresceram a partir do século XVI. Este autor repertoria os locais da presença luso-africana, a sua atividade comercial, os reinos e as sociedades da Senegâmbia, o papel económico dos lançados, a originalidade da presença destes grupos luso-africanos e como se aculturaram. E, um dia, entraram em declínio quando a França e a Grã-Bretanha estabeleceram companhias majestáticas.
É uma leitura estimulante para conhecer esses aventureiros, fugitivos e presidiários que lançaram as bases das trocas comerciais nesta região da África Ocidental.

Um abraço do
Mário


Os luso-africanos da Senegâmbia

Beja Santos

Centrados na presença portuguesa do que é hoje a Guiné, esquecemos que esta presença se disseminou por uma área extensa denominada por Senegâmbia, termo ainda corrente no século XIX (veja-se a “Memória da Senegâmbia”, de Honório Pereira Barreto, texto fundamental para se compreender a Guiné do século XIX, que antecede a Convenção Luso-Francesa). Neste amplo espaço que vai das fronteiras do atual Senegal até à Serra Leoa formou-se uma população luso-africana, inicialmente constituída por fugitivos ou aventureiros portugueses, os lançados, os tangomaus, pois lançavam-se à aventura, iam até ao confim dos matos, faziam comércio, constituíam prole ou eram escravizados, tudo dependia das circunstâncias. Vinham das ilhas de Cabo Verde, podiam ser europeus não-portugueses, houve mesmo judeus entre os lançados. O livro “Les Luso-Africains de Sénégambie”, de Jean Boulègue, Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, 1989, é uma surpreendente viagem a estes luso-africanos que floresceram na Senegâmbia, fundamentalmente nos séculos XVI e XVII, e que entraram em declínio irreversível no século XVIII, restando escassas presenças a partir daí. Jean Boulègue dá-nos um relato impressivo sobre estes lançados à luz da documentação portuguesa e internacional, como se formou este meio luso-africano, refere os lugares de comércio, nomeadamente nas regiões mais meridionais, vemos igualmente cabo-verdianos misturados nesta imigração. Noutro capítulo, o autor dá-nos o contexto da Senegâmbia, os seus povos, lá estão os Malinke da Gâmbia, os Mandingas e os Wolof, os primeiros negros com quem os portugueses se encontraram.

Para quem pretenda conhecer os estados e as sociedades desta Senegâmbia, o livro dá resposta. A Senegâmbia era partilhada entre duas hegemonias: ao Norte da Gâmbia estava os Jolof, e a Sul o império Mali cujo centro se situava no vale do Niger. Nos Estados aqui existentes e que correspondiam a sociedades muito hierarquizadas, a composição era muito versátil: clãs reais, uma aristocracia de segunda linha, homens-livres, castas artesanais, escravos e os cativos da coroa. O poder régio era absoluto. Isto para dizer que os luso-africanos se inseriam na Senegâmbia na presença de poderes fortes; de uma hierarquia social bastante pronunciada; podiam manobrar facilmente graças à fraqueza do setor mercantil e tinham marginalidade cultural devido ao contexto religioso islâmico.

Vamos encontrar estes luso-africanos na Petite Côte em Rufisque, Portudal et Joal. Havia os resgastes secundários fora destas três localidades principais caso de Punto Sereno (atualmente Pointe Sarène). Mas havia outros lugares, por exemplo André Álvares de Almada menciona Palmeirinha no rio Sina. Encontramos também luso-africanos na Gâmbia, são mencionados por André Donelha na Descrição da Serra Leoa e dos rios de Guiné e de Cabo Verde. É o caso da aldeia de Cação, o porto principal do rio Gâmbia no século XVI.

Jean Boulègue destaca a importância dos luso-africanos na economia da Senegâmbia a par do comércio holandês, espanhol, francês e inglês. O monopólio português muito cedo se esbarrondou, as autoridades da região aceitaram o regime da liberdade comercial e os portugueses não tinham meios para intimidar a concorrência. Predominava o tráfico de escravos, mas os luso-africanos passaram a ter um peso económico expressivo e a interessar aos barcos que aqui aportavam, pois negociavam couros, peles de animais selvagens, cera, marfim e até plumas de avestruz. Os luso-africanos comerciavam na Alta Gâmbia, iam até Bambuk comerciar ouro, as fontes que referem estas expedições têm revelado perante a historiografia como controversas e são muitas vezes classificadas como meras hipóteses.

Como se aculturavam os luso-africanos? A língua veicular era o crioulo, em muitos casos mantiveram-se católicos e aceitavam a presença de missionários, havia também judeus. Em termos de aculturação, não era raro praticar a poligamia, o que dava trelas com os missionários. Parte importante do trabalho de Jean Boulègue tem a ver com a inserção dos luso-africanos nas sociedades da Senegâmbia. É bem claro que a sua presença em qualquer um dos Estados e a prosperidade das suas atividades pretendiam antes de mais do soberano local, havia soberanos amistosos e outros não tanto que praticavam inequivocamente a sujeição económica, impondo pesadas tributações, explorando a origem familiar do luso-africano, quando o defunto era mestiço o rei herdava tudo. O autor descreve os aldeamentos e conta uma história de ascensão social, a de Ganagoga, descrito por André Álvares de Almada como alguém que se lançou no reino do Grande Fulo e negociava marfim no rio Senegal, era um lançado de nome João Ferreira, natural do Crato a quem os naturais chamavam Ganagoga que significa na língua dos Beafares o homem que fala todas as línguas. Este reino do Grande Fulo era o Futa-Toro. Richard Rainolds que se encontrava em 1591 na Petite Côte escreveu que no rio Senegal nenhum espanhol ou português pode comerciar com a exceção do português Ganagoga que casou com a filha do rei. Resta dizer que nestes reinos fortemente estruturados da Senegâmbia as ascensões sociais como a de Ganagoga só eram possíveis no quadro dos poderes estabelecidos.

Por volta de 1700 já é reduzida a presença de portugueses nesta região, as lutas entre reinos eram muito acesas e os luso-africanos abandonaram Rufisque e Portudal, com a sua partida o comércio do couro arruinou-se completamente. Por seu lado, a Royal African Company impôs o seu monopólio no tráfico do rio Gâmbia, na segunda metade do século XVII, ainda se mantiveram intermediários luso-africanos e há referências à sua presença em toda a primeira parte do século XVIII. Jean Boulègue observa que Joal se manteve com habitantes luso-africanos até meados do século XIX.

Estes grupos de luso-africanos da Senegâmbia falam das trocas atlânticas na região, primeiramente do monopólio português, a seguir da imposição do monopólio francês e depois da preponderância do comércio esclavagista. Os lançados recebiam apoio dos reis enquanto Portugal sonhava com a sua eliminação, eram concorrência indesejável. Depois tudo mudou com as companhias majestáticas, estes empreendedores foram progressivamente desaparecendo com a clarificação da presença francesa no Senegal, da britânica na Gâmbia e da portuguesa na Guiné das praças e presídios. Os lançados ou tangomaus continuam a fascinar a historiografia das presenças coloniais nestes pontos da África Ocidental. Compreende-se porquê.
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15219: Notas de leitura (764): "O Quarteto de Alexandria", escrito por Lawrence Durrell, edição D. Quixote 2012 (Francisco Baptista)

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