terça-feira, 22 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15139: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (21): De 2 a 25 de Setembro de 1973

1. Em mensagem do dia 19 de Setembro de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 21.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

21 - De 02-09 a 25-09-1973

Das minhas memórias:

2 de Setembro de 1973 – (domingo) – Notas de Nhala; Nova incursão ao Unal; Estou “apanhado”

“Ontem à noite, desde as 22h30 e até hoje às 7 da manhã, ouviram-se ao longe rebentamentos poderosos de que não conseguimos saber a origem”.

Pelo leio agora na História da Unidade do BCAÇ 4513, calculo que esses rebentamentos fossem provenientes dos nossos obuses a partir de Buba ou Cumbijã ou de ambos, a bater a zona da nova operação para o Unal. A História da Unidade não refere batimentos de zona, mas refere o movimento de tropas para Buba no dia 1, à semelhança dos preparativos da operação falhada “Ousadia Satânica”. Esta chamar-se-ia “Lance Pertinente” e tinha o mesmo objectivo: chegar ao Unal, (e dar treino operacional às tropas do BCAÇ 4516). Tal como a operação anterior, envolveu grande número de tropas, quer do BCAÇ 4516, 4513, CART 6250, CCAV 8351, enfim, tal como a anterior fracassou pelos mesmos motivos: tudo inundado, rios intransponíveis, chuvas constantes e intensas, falta de trilhos e de guias, fora a grande distância a percorrer, como refere a H. da U.

Desta vez não fui chamado a participar e, ainda que fosse, certamente não estaria em condições. A verdade é que o aconchego do “lar” só por si não resolve tudo e, ainda não refeito de toda a actividade anterior ao regresso a Nhala, e eis que nos defrontámos com patrulhamentos, contra penetrações, protecção a uma infinidade de colunas auto – com as cansativas picagens – e, ainda, desfalcados de um grupo de combate da nossa Companhia envolvido na referida operação.

*** 

Estava a ficar “apanhado”. Numa nota de 05-09-73, dou conta de situações anormais no meu comportamento, fruto de grande abatimento e tensão nervosa que, parece, não afectava só a mim: deu-me para matar macacos-cães. A primeira vez, no regresso apeado de um patrulhamento na picada de Mampatá-Nhala imitei os macacos, chamando um grande grupo que se ouvia à distância, até os ter na mira. Depois matei um casal de adultos. Como se não bastasse, serviram para, como se fossem vivos, fazer de manequins com armas, rádios, etc., para depois fotografar. Todos acharam muita graça e participaram. De outra vez, em andamento e de pé no Unimog da frente como era meu hábito, disparei uma rajada para uma família inteira que apareceu ao longe numa recta. Felizmente não matei nenhum. Só mais tarde me dei conta da estupidez e, hoje, à luz da razão e da cultura que tanto prezo de preservação das espécies e da natureza em geral, acho quase inacreditável que tenha sido eu a fazer aquilo. Eu, que até sou contra as touradas...

Contudo, acho que o fazia para descarregar tensões que, no limite, podiam propiciar consequências piores. Foi por isso também que, por duas vezes pelo menos, pedi autorização ao Comandante de Companhia para rebentar uns petardos de trotil, de maneira a aliviar essa tensão. Habituado que estava a rebentamentos, desde o curso de minas e armadilhas, passando pelo aperfeiçoamento em Bolama (onde abundava o material que nos faltou no curso em Tancos e em que, no final, tivemos de rebentar grande quantidade de material sobrante), e passando pelos episódios dos últimos meses nas regiões de Cumbijã e Nhacobá, sempre que faltavam rebentamentos começava a acumular tensão, como os drogados privados de droga: ninguém me aturava. Então, autorizado, ia ao paiol e colhia a dose conforme o estado de ansiedade. Ia à tardinha para o lado da fonte de Nhala, já deserta, e colocava um petardo de trotil atrás de uma grande árvore. Lançava fogo ao rastilho do detonador, passava para o outro lado da árvore e, de frente para ela e de costas para o aquartelamento, começava a recuar enquanto aguardava a explosão. Uma vez a pancada de ar no peito foi tão violenta que recuei, talvez três metros, sem pôr os pés no chão. Depois regressava como se não fosse nada. Era de malucos..., mas também já ninguém ligava. O que podia significar estarem tão malucos como eu.

Tenho a noção do ridículo e acho que não devia contar isto. Mas passou-se assim e, se não contasse, pareceriam sempre exageradas as alusões aos estados de espírito depressivos, de ansiedade e tensão.

Seguem-se duas fotografias comigo e com os meus camaradas de Nhala.

Foto 1: Nhala, fins de 1973 ou 74 - Alferes Tibério Barros (com a minha bengala); Alferes Carlos Lopes; Capitão Braga da Cruz e eu. 

Foto 2: Nhala, 23 de Abril de 1974, dia da visita do General Bettencourt Rodrigues a Nhala. Eu com a minha bengala; Capitão Braga da Cruz e Alferes Campos Pereira. (Atente-se na data).


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

(...)

SET73/07 – Forças da 2.ª CCAÇ/4513 durante a acção “OGIVAL” entraram em contacto com um GR IN ESTM em 20/50 elementos. O IN reagiu com RPG e armas automáticas retirando-se de seguida. No reconhecimento efectuado capturou-se uma granada de RPG-2 e verificou-se a existência de extensas manchas de sangue. As NT sofreram um ferido ligeiro. Forças da 3.ª CCAÇ/4513 e CCAÇ 18 patrulharam a região do R. BALANA.

SET73/08 – Forças da 1.ª CCAÇ/4513 detectaram em região XITOLE 2 F 0-30 passagem de um GR IN estimado em 40/50 elementos no sentido N/S na madrugada deste dia.

(...)

SET73/11 – Morreu em BISSAU o CHERNO RACHID, homem de uma influência enorme sobre todo o povo FULA. Religioso e poeta gozando de enorme prestígio, mesmo para além fronteiras. (dos Factos e Feitos do BCAÇ 4513). [Sublinhado meu a negrito]

[CHERNO RACHID: Fez há dias 42 anos que morreu essa figura eminente do Povo Fula. HOMEM GRANDE entre os maiores, era uma sumidade e uma autoridade em várias áreas do conhecimento e da sensibilidade humana. Tudo acolhido na sua grande humildade. Não preciso de mais laudatórios porque, com mais conhecimento de causa, o fizeram já aqui no nosso Blogue, camaradas como o Vasco da Gama, Arménio Estorninho, Luís Graça, o saudoso Pepito e o Beja Santos, entre outros por certo. São quase uma dezena de “postes”. Mas não quis deixar passar em claro esta data, talvez pela mágoa de nunca ter tido oportunidade de o conhecer pessoalmente. Ao menos, mesmo sem ser crente, direi hoje: Alláhu Akbar - 18 de Setembro de 2015].

SET73/13 – Forças da 2.ª CCAÇ/4513 executam patrulhamento conjugado com C/PEN (contra penetração) na região de PONTE R. CORUBAL sem contacto.

- Forças da 3.ª CCAÇ/4513 executam patrulhamento conjugado com C/PEN na região do R. BALANA sem contacto.

- Forças da CART 6250 executam C/PEN na região de MISSIRÁ sem contacto.

(...)

SET73/22 – O Comandante do Batalhão acompanhou uma patrulha à região de CHICAMBILO. - Forças da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 durante a acção “ORTIGA” excutam patrulhamento conjugado com C/PEN na região da confluências do R. CORUBAL-R. UUGUIUOL sem contacto.

 - Forças da CART 6250 durante a acção “OÁSIS” executam patrulhamento conjugado com C/PEN na região de BOLOLA sem contacto.

(...)

SET73/25 – Forças da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 durante a acção “OUSADIA” executam patrulhamento e C/PEN no R. UUGUIUOL sem contacto.

 - Forças da CART 6250 durante a acção “ORIENTE” executam patrulhamento e C/PEN em MISSIRÃ sem contacto.

(...)

Das minhas memórias: 

25 de Setembro de 1973 – (terça-feira) 

Histórias marginais (2) – A acústica da mata. 

A acústica da mata, e não os sons da floresta que nos encantavam mas faziam estremecer e ficar de alerta quando, subitamente, se suspendiam.

Por diversas vezes fiquei surpreendido e confuso, quando no interior da mata ouvi tiros ou outros sons não naturais, que eu sabia – ou vinha a saber -, haviam sido produzidos exactamente na direcção oposta. Mas havia outros, para os quais não encontrava explicação. Se o fenómeno não fosse testemunhado por todos os que me acompanhavam, caso andasse sozinho à caça, por exemplo, ficaria com dúvidas sobre a minha sanidade mental. Ou se não teria problemas de orientação e percepção. Acontece que, os dois casos mais flagrantes e problemáticos, ocorreram quando saímos para o mato em bigrupo, portanto, com cerca de quarenta homens a reconhecer o mesmo fenómeno.

Nesta data, num patrulhamento conjunto do meu grupo com o 1.º GComb do Alf. Campos Pereira para a região do Rio Uuguiuol, fomos surpreendidos por uma situação insólita: em plena mata começámos a ouvir bater chapa. Sons muito fortes e nítidos, que nos indicavam um sítio a não mais de cem metros à nossa frente. A primeira reacção foi mandar parar todo o pessoal e depois dialogarmos, eu e o outro alferes, tentando encontrar uma explicação lógica para a origem dos sons, face à nossa posição no terreno. Mas não encontrámos explicação nenhuma: estávamos de frente para o Rio Corubal mas a muitos, muitos quilómetros dele e tínhamos caminhado, de certo modo, paralelamente ao Rio Uuguiuol, mas também muito afastados. À nossa frente não havia nada a não ser mata. Então, admitimos que ao fundo da rampa que a mata ali fazia, coisa rara na região, estivessem elementos da guerrilha a montar - ou desmontar -, qualquer coisa em chapa. Decidimos fazer uma batida.

Rapidamente dispusemos os dois grupos, que até ali tinham caminhado em fila indiana, numa frente linear com mais de quarenta homens. Ocupámos os nossos lugares nos grupos e avançámos como para um golpe de mão, com as cautelas que a situação impunha. A mata era propícia, quase limpa como num eucaliptal, e as árvores intervaladas mas com bom porte para nos proteger. Como disse, o terreno tinha uma inclinação acentuada e a visibilidade era para vinte ou trinta metros.

Quando julgámos ter já ultrapassado em muito a distância que apontávamos como o local dos batimentos, parámos para avaliar a situação. É que, à medida que avançávamos, parecia sempre que era já ali adiante, sempre mais adiante. Por vezes cessavam os sons, mas logo recomeçavam com uma nitidez incrível. Vozes não se ouviam, mas jurávamos que estava ali gente. Como não havia sequer uma aragem, excluímos a hipótese de sons trazidos de longe, algures. Mas se fossem, de onde poderia ser? Resolvemos flectir para um dos lados a descida da mata e continuámos, sempre em linha, por mais umas centenas de metros. Parámos de novo e mandámos uma mensagem para Nhala para que chamassem o capitão ao rádio. Expusemos a situação e demos as coordenadas da nossa localização aproximada. Queríamos indicações do que estava à nossa frente, já que a carta que levávamos era curta. “Pelas vossas indicações, podem ser os sons da oficina auto do Xitole”, “Qual Xitole?! O Xitole é quase do outro lado do Mundo!”, “Não há mais nada na vossa frente”. Ponto final.

Ainda meio incrédulos, desistimos da batida e encetámos o regresso a Nhala. Mas com a certeza de estarmos muito longe do Corubal. Não havia o risco de cairmos ao rio inadvertidamente. E os sons ficaram lá.

*** 

Um outro caso, mais sério, e que podia ter acabado em tragédia

Destacados ainda em Cumbijã, saímos um dia com o grupo do Alf. Campos Pereira - por mero acaso outra vez com ele -, para os lados de Lenguel (ou Sabasó?). Fizemos um longo patrulhamento para a região que nos fora indicada, sem nenhuma anormalidade. Isto teria ocorrido antes de se iniciarem as chuvas, já que, no regresso e muito exaustos, resolvemos descansar ao longo do leito de um rio seco, por onde esticámos os dois grupos. A tarde já caminhava para o fim e preparávamo-nos para abandonar o local, de regresso a Cumbijã quando, inesperadamente, se deu um potente rebentamento numa das extremidades do longo cordão de homens. Surgiram dois ou três a correr em pânico, sem arma nem equipamentos, direitos a mim e ao outro alferes e, quase sem fala, apontavam para lá tentando explicar que fora quase em cima deles. Tudo se passou num ápice: como nos tinha parecido o rebentamento de uma granada de obus 14, mesmo se, a escassos quilómetros de Cumbijã não tivéssemos ouvido a “saída”, logo contactámos via rádio o Comando, não fosse a próxima cair em cima de nós. Se ainda fôssemos a tempo. Dissemos para suspenderem imediatamente os tiros de obus para a zona e demos a nossa posição. Para nossa estupefacção disseram-nos que se estavam a defender de um ataque turra com canhão S/R que, estava precisamente nas nossas costas...

Virámo-nos para trás, ainda no leito do rio e, sem querer acreditar, percebemos que eles estavam mesmo ali a disparar o canhão a não mais de duzentos ou trezentos metros, numa zona mais aberta e com uma estreita faixa de mata a separar-nos. Há quanto tempo estariam ali sem que nos ouvíssemos mutuamente? Como foi possível não ouvir os disparos do canhão mesmo ali? Parece inverosímil mas foi assim. Felizmente que éramos muitos a testemunhar, caso contrário pensaríamos que estávamos malucos. Felizmente também o obus 14 parou para evitar uma tragédia. Por pouquíssimo tempo, diga-se, pois assim que lhes demos a posição correcta do canhão S/R, com uns poucos disparos calaram-no definitivamente, enquanto nós, em passo de corrida, já fazíamos o caminho para o Cumbijã.

Penso agora, e todos podem pensar: então, estando ali, não aproveitaram para atacar o grupo dos guerrilheiros? Não. Decerto porque ignorávamos quantos eram, que armas tinham para além do canhão e também porque começava a fazer-se noite e ainda tínhamos muito para andar e, se até ali tínhamos passado despercebidos, não era a melhor altura para nos denunciarmos.

*** 

Seguem-se duas fotografias com as minhas queridas lavadeiras.

Foto 3: Nhala, 1973 – Rosa, a minha primeira lavadeira. Gostava dela porque era uma mulher serena e simpática. Excepto a lavar roupa: despedi-a com justa causa quando percebi que quase já não tinha botões na roupa.

Foto 4: Nhala, 1973 – Fátima com a sua bajudinha. Foi a lavadeira seguinte e até ao fim da minha comissão. Era uma doçura de mulher, sempre com um sorriso, afável e delicada. O seu marido era o meu guia preferido nas saídas mais complicadas: soldado milícia, guia competente, homem de muito aprumo e poucas falas, talvez porque não falasse quase nada de português. Na foto, sentado no chão, está o Brás, soldado do meu pelotão.

(continua)

Texto, fotos e legendas: © António Murta
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Nota do editor

Últimos dez postes da série de:

14 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14877: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (11): 23 e 24 de Maio de 1973

21 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14910: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (12): 26 de Maio a 8 de Junho de 1973

28 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14940: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (13): 9 a 14 de Junho de 1973, com baptismo de fogo a 13

4 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14971: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (14): 15 a 18 de Junho de 1973

11 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14993: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (15): 19 a 22 de Junho de 1973

18 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15016: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (16): De 23 de Junho a 6 de Julho de 1973

28 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15050: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (17): De 8 a 21 de Julho de 1973

1 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15062: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (18): De 8 a 21 de Julho de 1973

8 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15087: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (19): De 26 de Julho a 4 de Agosto de 1973
e
15 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15116: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (20): De 5 a 21 de Agosto de 1973

1 comentário:

Anónimo disse...

23 de Abril de 1974! Quem diria que essa visita de Bettencourt Rodrigues a Nhala que ocorreu também em Mampatá, seria um dos últimos actos oficiais do Governador da Guiné, antes de sua destituição que aconteceria, no dia 25. As confissões do Murta são tão preciosas como corajosas. Aquelas atitudes "amalucadas" eram próprias de muitos de nós e reflectiam os efeitos do clima que nos envolvia, para além da nossa juventude. Espero que o Murta nos continue a contar como viveu a guerra, na Guiné.
Um abração

Carvalho de Mampatá