domingo, 30 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15056: Agenda cultural (421): Exposição de Fantin Latour e Manuel Botelho - Meeting Point - De 26 de Junho a 26 de Outubro de 2015, no Museu Calouste Gulbenkian - Lisboa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2015, a propósito da exposição de Fantin-Latour e Manuel Botelho, no Museu Gulbenkian:

Queridos Amigos,
Encontro mais insólito é difícil de prever.
Um categorizado pintor do Segundo Império, Fantin-Latour, é confrontado com os temas da guerra colonial, pelos olhos de Manuel Botelho, o artista que mais se tem dedicado a fotografar, a aguarelar e pintar armas, viaturas despedaçadas, citações de aerogramas, guiões das unidades, fazendo instalações com base em material que adquire na Feira da Ladra, correspondência que o inspira. A Guiné é o seu veio seminal, sem ambiguidades.
Recomendo esta visita ao Museu Gulbenkian, entre a esplendorosa arte oriental e os marfins medievais, duas realidades distintíssimas da natureza-mortas dialogam, e com um êxito assombroso.

Um abraço do
Mário


Desfrute e agonia na provocação de naturezas mortas: 
Fantin-Latour e Manuel Botelho em confronto no Museu Gulbenkian

Beja Santos

Helena de Freitas é uma estudiosa da arte que tem o franco pendor para explorar aproximações e analogias entre épocas, movimentos artísticos e motivações nas diferentes obras que são expostas, gosta de provocar um falso conflito estético e explorar todas as hipóteses de leitura, aposta nos achados curiosos que essas tensões suscitam (ou podem suscitar).

Está patente, de 26 de Junho a 26 de Outubro, no Museu Gulbenkian uma exposição que inclui uma pintura de Fantin-Latour e três fotografias de Manuel Botelho, o artista plástico português que mais intensamente se tem debruçado sobre a guerra colonial que travámos em África. À partida, um zero de semelhanças entre o pintor do Segundo Império, um artista avesso a roturas radicais e que trabalhou para uma clientela de aristocratas e grandes burgueses que apreciavam obras convencionais como esta natureza-morta, como observa a crítica de arte Raquel de Henriques da Silva, salientando o contraste entre o fundo escuro e o branco esquinado e inteiro da toalha, sobre o qual se dispõem, com naturalidade ritualizada, as cores perfumadas das cores e dos frutos. Talvez o único contraste é uma faca que avança para nós, mas é bem possível que ela esteja ali para introduzir uma breve perturbação da ordem que estimula e agrada. Esta harmonia parece chocar com o que há de bélico, manifestamente excessivo nos sinais da agressividade, naqueles despojos arremessados na mesa, a exalar os odores da caserna: dinheiro, sabe-se lá se referentes a quantos e quais jogos da batota, garrafas de vinho, facas e baioneta, beatas de cigarros, moedas, tudo num vendaval de desolação e de fim de festa, a simular um compasso na guerra, onde desconhecemos os protagonistas. Como dialogar a amenidade da pintura de Fantin-Latour com a violenta caserna de Manuel Botelho, ademais aparece exposta uma obra alusiva aos guiões militares portugueses, e um guião é um símbolo da coesão de unidade, à sua sombra partilha-se o heroísmo, a bravura ou os historiais da morte em combate?

A crítica Raquel Henriques da Silva diz que se passa com facilidade de Fantin-Latour para Manuel Botelho e esgrime com a argumentação de Roland Barthes: “A essência da imagem é a de estar toda de fora, sem intimidade, e, contudo, mais inacessível e misteriosa que o pensamento do foro interior. Sem significação, mas apelando para a profundidade de todo o sentido possível; e revelada e, todavia, manifesta, possuindo essa presença-ausência que faz a atração e o fascínio das sereias” (A Câmara Clara, Lisboa, Edições 70). Não partilho deste ponto de vista quanto à facilidade, o confronto das obras reside principalmente em que o pintor francês é um académico exímio, harmónico, exibe com desenvoltura os dotes que o requisitaram no público endinheirado como um pintor de bom gosto e não conflituoso. Manuel Botelho é um experimentalista, procura de há muito explorar um caleidoscópio de possibilidades: em aerogramas, em simulações de tensão militar extrema, mostrando a frio diferentes espingardas e metralhadoras, numa tal encenação que é praticamente instantâneo o chamamento da destruição. As suas aguarelas com viaturas destruídas são a melhor acusação muda que até hoje vi sobre a guerra colonial. Aqui, as fotografias são apresentadas como ração de combate, pode este título aturdir o visitante menos preparado, mas é mesmo uma ração de combate este somatório de jogos visuais. Mas corroboro que a crítica tem razão que Latour e Botelho se visitam ao espelho da beleza, onde Latour revela mestria na polpa e na textura dos frutos, tudo está ali com ar de consumição, e a iluminação é prodigiosa, em Botelho temos a mesma iluminação prodigiosa e toda a inquietação ausente em Latour, o pintor francês é um mensageiro da boa atmosfera burguesa, Botelho é um denunciador de que houve uma guerra sobre a qual continua a não se ousar explicar a sua génese e as profundas razões do seu desfecho, por vezes tão trágico.

A comissária da exposição venceu um estranho desafio, e é muito possível que quem se depara com estas ostensivas dissemelhanças entre os dois artistas acabe por refletir com mais argumentos sobre a natureza da paz e da guerra – os estados em que assentam as aparentemente contraditórias naturezas mortas da exposição.



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Nota do editor

Último poste da série de 28 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14941: Agenda cultural (420): Sessão de motim organizado, e com consequências preocupantes, imprevisíveis, em 29 de Julho, pelas 18h30, na FNAC Colombo, a propósito do livro "De Freguês a Consumidor - 70 anos de Sociedade de Consumo, História da Defesa do Consumidor em Portugal" (Mário Beja Santos)

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