domingo, 9 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14988: Libertando-me (Tony Borié) (29): Talvez seja o "nosso aspirante"

Vigésimo nono episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 3 de Agosto de 2015.




Os amigos, companheiros de guerra, estiveram num tempo da nossa vida, onde eram quase a nossa família. Depois da guerra, alguns de nós, começámos uma família, isso mudou um pouco o nosso comportamento, criámos novos grupos, não é que não nos lembrássemos mais daqueles companheiros, mas as novas responsabilidades, dificuldades e a sobrevivência, mudou-nos, mas colocar esses amigos, companheiros de guerra, de novo juntos, pelo menos fisicamente, pois os que por lá ficaram atravessados por estilhaços ou balas inimigas, naquelas savanas, tarrafo e rios de lama, esses seguem juntos, mas no nosso pensamento, mas para colocá-los de volta, agora, quando não há muito tempo nas nossas vidas, quando aparece um, ficamos de algum modo contentes, pelo menos vendo a sua fotografia e, mesmo que qualquer desses companheiros não esteja entre nós, não há nenhuma razão para um momento menos feliz, é um momento sobre o tempo, sobre as nossas relações de quando éramos jovens.

Passando os olhos pelo nosso blogue, no post P14957, o nosso companheiro, João Sacôto, que foi alferes miliciano, fazendo parte da CCAÇ 617/BCAÇ 619, que andou lá por Catió, Ilha do Como e Cachil, precisamente nos mesmos anos que também por lá andámos, mostra umas fotos em que se pode ver uma simpática personagem, cujo nome não nos lembramos, mas deve de ser ele, estou mesmo em dizer que é ele, pois a foto que temos do nosso tempo de convivência, são muito idênticas. Temos alguns amigos, mas “amigos especiais”, daqueles que sempre lembramos, são os da guerra, aqueles que estavam na mesma situação de angústia e aflição, aqueles que estando no interior de África, olhavam o mapa e viam a cidade de Bissau, não como alguma civilização, mas como o caminho da Europa, são esses amigos, daquele tempo de juventude, daquele tempo de aprendizagem, onde a convivência nos fazia copiar os maus e bons costumes.

Nessa altura éramos um normal soldado recruta, vulgo instruendo, que estava no seu dever de cidadão, seguindo os princípios para que foi educado, tanto no seu lar, como na escola primária da vila de Águeda, onde sempre lhe disseram que a sua Pátria, estando em guerra, devia ser defendida, sem quaisquer restrições, mesmo usando o sangue dos seus cidadãos. Neste contexto, o instruendo que nós éramos, veio a sua casa, com licença de fim de semana, retornando ao seu quartel, o tal lugar onde o estavam a preparar para defender a, tal sua Pátria.

Era aquele normal fim de semana para, entre outras coisas, saborear a comida da mãe Joana, todavia, quando saímos da nossa aldeia, o sol ainda não cobria a marca, na base da porta do curral das ovelhas, dizendo-nos que era meio dia, aquilo era fácil, eram vinte e poucos quilómetros, sacola ao ombro, com alguma roupa lavada, assim como o farnel que a mãe Joana nos preparava. Seguíamos quase sempre a corta-mato, ou seja encurtando caminho, percorremos quase todo o trajecto da vila de Águeda à cidade de Aveiro, tirando um pequeno percurso, em que viajámos à boleia no carro do “homem do berbigão”, oriundo de Mourica do Vouga, que encontrámos numa taverna próximo da povoação de Eixo, naquele momento, comia ele, “umas sopas de cavalo cansado”, vulgo “sopas de vinho”, que seguia direito à lota de Aveiro, comprar o berbigão, sardinha e carapau, para vender pela madrugada na nossa zona, cujo carro era puxado por um “macho”, cujo “acelerador” era um valente cajado com que batia no lombo do desgraçado animal, quando este começava a dar sinais de fraqueza, pois não tinha partilhado com o seu dono das tais “sopas de cavalo cansado”.


Era domingo, um dia antes, pois no papel da licença estava escrito segunda-feira, o céu já estava colorido com aquelas cores estranhas, pois lá para o lado das praias já se podia observar o começo da noite, a tal noite que se prolongou por África e nos acompanhou nos próximos três anos.

Com ele nos cruzámos em plena Avenida Lourenço Peixinho, já na cidade de Aveiro, fazendo-lhe uma tremenda saudação, mesmo daquelas em que nos colocamos na posição de sentido, só com a diferença, em que ambos trajávamos civilmente. Ele riu-se, com aquele sorriso maroto, sempre mantendo uma certa compostura, eu fiquei a olhá-lo, talvez espantado. Esta simpática personagem era o nosso aspirante, instrutor que nos ensinou algumas normas militares, como marcar passo, manusear a espingarda “Mauser”, desencavilhar uma granada, que nós nunca aprendemos pois ficávamos nervosos, quase a tremer, alguns exercícios físicos, enfim, aquelas coisas que se aprendem na recruta. Na primeira instrução do nosso pelotão, ele, a tal personagem, muito sério, explicou que trajando civilmente não era necessário “bater a pala” a nenhum superior, nunca mencionou o nosso nome, mas claro, olhando para nós com o tal sorriso maroto. Voltamos a falar sozinhos, já em Lisboa, à saída do comboio especial que nos trouxe para a capital, onde fomos distribuídos por diversos quartéis, aí dizendo-nos que mais cedo ou tarde, o nosso destino era a guerra do ultramar.

Tomando a liberdade de mostrar as fotos do companheiro João Sacôto, para ver a comparação, oxalá que esta simpática personagem esteja viva, se estiver que apareça com saúde e alegria em viver, pois se não houver outra razão, a sua atitude para connosco, tornou-nos cúmplices, podemos mesmo dizer que tivemos o nosso “secreto”, o que nos torna de algum modo felizes por o termos conhecido, neste mundo selvagem, onde os oceanos já não têm aquele azul de outrora, os ventos já não trazem a brisa de orvalho, mas sim, varrem destroços da catástrofe que é o modo de vida e procedimento dos “vindouros”, que não têm nenhuma contemplação ou respeito por quem deu a vida pela sua bandeira, pela tal sua Pátria.

Tony Borie, Agosto de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14960: Libertando-me (Tony Borié) (28): Pôr a carta no Correio, na guerra

2 comentários:

J. Gabriel Sacôto M. Fernandes (Ex ALF. MIL. Guiné 64/66) disse...

Caro Tony Borié:
É o alferes Pedro Eduardo do Vale Guimarães Oliveira, da companhia 616. é natural de Aveiro. Filho do antigo Governador Civil de Aveiro. É separado já há muitos anos, tem duas filhas formadas, mas vive muito isolado. Apenas uma vez participou no convívio anual da CC 616. Na fotografia aparece abraçado ao cão que levou para a Guiné que se chamava "Petardo". Esta informação foi-me cedida pelo ex-Alferes Miliciano Joaquim da Silva Jorge que pertenceu ao meu Batalhão 619, CC 616 Guiné Janeiro de 1964 a Fevereiro de 1966.
Um abraço,
João Sacôto

Tony Borie disse...

Olá João Sacôto.
Muito contente por comunicar contigo, bem hajas.
A tua informação é muito importante, vou continuar as buscas, pois deve de estar vivo e andar por aí, não vou desistir e, baseando-me nesta preciosa informação, tenho quase a certeza, que com ele vou comunicar de novo.
Já não somos muitos, felizmente estes poucos que somos, naquele tempo, respeitávamo-nos, tínhamos orgulho em cumprir o dever de cidadão, simplesmente olhando-nos nos olhos, éramos fiéis a qualquer compromisso, tenho algumas saudades desse tempo.
Muito obrigado pelo teu tempo e atenção.
Que continues com saúde, vontade em viver, assim como para os que te são mais chegados.
Recebe um abraço amigo, de um companheiro e combatente do teu tempo.
Tony Borié.