sexta-feira, 19 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14766: Notas de leitura (729): “Olhos de Caçador”, de António Brito, Porto Editora, 2014 (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Julho de 2014:

Queridos amigos,
Poderá haver quem nesta prosa excessiva, rotunda, gongórica, encontre argumentos que levem a justificar a inverosimilhança da história de Zé Fraga. Pouco importa, empolgante, tem uma carpintaria poderosa entre o muito quente e o muito frio, há um doseamento soberbo na galeria das figuras, na paleta das sensibilidades, no uso sensorial quem vem da vegetação do Planalto dos Macondes.
Uma obra acabada, dominadora, um Fernão Mendes Pinto que tudo vem contar quando é um homem acabado, escreve-se no bronze a glória do combatente destemido, a saga do português antigo, ferrabrás, dadivoso, doidão, justiceiro. Está aqui tudo que faz a panóplia dos grandes livros de aventuras da viagem dos portugueses.
A seguir vamos falar doutro livro de António Brito.

Um abraço do
Mário


Olhos de Caçador: Livro soberbo, o poliedro das brutalidades da guerra (4)

Beja Santos

Estamos de novo em Magolé, a atmosfera é de cortar à faca, o capitão Vinhais, alcunhado de Galo Doido, foi alvo de uma participação do alferes Perdigoto, a seguir ao desmando das suas estruturas a prisioneiros que não suportaram a monstruosidade das duas sevícias. No decurso de uma emboscada, Galo Doido irá assassinar o alferes Perdigoto, Zé Fraga vê tudo com olhos de ver, e cresce nele o mecanismo da vingança. E denuncia-o. O oficial de justiça está perplexo, havia outros depoimentos corroborando que o alferes morrera com os disparos do inimigo, como é que ele podia afirmar o contrário? E ele explica que o capitão se aproximara sorrateiramente do alferes, fazendo coincidir os seus disparos com a aproximação dos guerrilheiros. “Estou perfeitamente consciente, meu tenente. E digo-lhe mais: antes que enterrem o cadáver do alferes Perdigoto, mande o médico autopsiá-lo e verificar o calibre das balas que lhe provocaram a morte. Vai descobrir que foi crivado chumbo de G3”. Galo Doido ameaça-o de morte e chantageia-o, quer que ele negue tudo o que ele afirmou no inquérito.

Zé Fraga vai a Mueda, assiste ao espetáculo dantesco dos helicópteros a descarregar feridos e mortos, e volta a depor sobre o assassinato do alferes Perdigoto. Aproveita e recebe do enfermeiro Ranholas a encomenda negociada com o Mãozinhas. Aproveita um sarau artístico e dá uma boa cambalhota com uma corista do Parque Mayer. E recomeça a guerra, a coluna lá vai a caminho de Magolé, há uma emboscada enorme, mais à frente uma mina anticarro explode. “Esta é uma mina diferente. É um fornilho feito com uma bomba de avião português. De 500 libras, por deflagrar. Recolhida de um alvo bombardeado por Fiats G91, trazida de padiola dos confins da floresta e enterrada na picada, sob uma mina anticarro. Um dia em cheio para os frelimos. Trocámos as armas por machados e catanas e abrimos uma clareira grande. Chegam os AL-III para carregar os despojos. Batemos o terreno, pau na mão, esgravatando o chão, empurrando para dentro do cobertor pedaços de sargento, resto de soldado polvilhados de terra escura. Neste jogo de perdidos e achados os corpos vão incompletos. Há pedaços que ficam nas árvores ou foram projetados para longe. Sorte das hienas e dos abutres”.

A todo o momento parágrafos de primeiríssima água geram embevecimento, são peças de antologia, rutilantes:
"Por alturas do Natal estávamos cercados. Por mais que o capelão Tomé falasse da gruta de Belém e anunciasse a Boa-Nova, permanecíamos isolados do mundo. O ciclone rugia, por cima do Cabo Delgado. As estradas ficaram intransitáveis. Nada que tivesse rodas era capaz de se aventurar até Magolé, ficámos isolados pelas minas e chuva da monção. Um mar de lama. Um atoleiro, onde qualquer movimento de viaturas servia para se atascarem até aos eixos para desespero dos condutores. A floresta da região pintou-se de verde e água barrenta. O rio, no fundo do vale, encheu-se de brios e transformou-se no Amazonas, arrastando as margens, forrando de castanho quilómetros de vegetação rasteira, alagando bolanhas, inundando tocas, expulsando animais".

É imperativo um abastecimento aéreo. As coisas correm mal:
“Da porta aberta, por baixo de asa, sem um saco claro, volumoso, seguindo de imediato por outro, despenhando-se ambos sobre as nossas cabeças. Bateram no chão e ricochetearam como duas bolas de futebol. O primeiro ressaltou meia dúzia de vezes até se imobilizar; o segundo, ao terceiro ressalto, rompeu-se e os pães saíram disparados em todas as direções como estilhaços de bomba.
Corremos a apanhar as carcaças de trigo, antes que os ratos dessem as primeiras dentadas. Numa frente de 50 metros, havia papos-secos espalhados, pincelados com terra molhada. Alguns ficaram tão encharcados que apenas serviriam para migas e sopa alentejana. - Vá lá, porra, larga os frangos! O vento colaborou, soprando as nuvens durante um bocado. Foi o suficiente para o DO-27 se colocar em posição. O piloto calculou a direção do vento e largou o primeiro saco. Não era uma descida na vertical, era como se escorregasse por uma rampa inclinada desde o avião até ao aquartelamento. Os homens precipitaram-se para trazer o saco para dentro.
A segunda largada foi cópia da primeira. Com uma diferença dramática. O para-quedas abriu parcialmente e o saco precipitou-se em direção ao solo, com os restos do para-quedas rodando no ar, sem controlo. Estarrecidos, como se se tratasse de vida humana, os homens viam os frangos despenharem-se sobre a floresta do outro lado do vale”.

A sorte foi no dia de Natal ter aparecido um javali abatido com um tiro da sentinela. O disfuncional Rosca Moída aproveitou para lançar um punhado de balas para dentro da fogueira, a cozinha incendiou-se, destruiu a refeição, houve feridos. Aproveitou-se a evacuação para empurrar o Rosca Moída para dentro do helicóptero antes que fosse estrangulado.

“Quando o levaram para o héli, perguntaram-lhe: - Porquê, Rosca? Porquê? Meu grande cabrão. Tu não gostavas da comida que estava a ser cozinhada? - Da comida gostava. Mas a fogueira não estava grande coisa – respondeu o tonto, com ar inocente”.

E vai começar o grande duelo entre o Galo Doido e Zé Fraga, fatalmente vão os dois na coluna para Nangololo. Galo Doido recorre a um executor, Mamude Salé, os dois travarão um combate que custará a vida a Salé. A guerra intensifica-se, Galo Doido não há meio de ser recambiado para Nampula. Numa operação apanham máquinas de costura e logo Galo Doido pensou em fazer negócio. São descrições espantosas, Zé Fraga vai perdendo mais camaradas, morreram o Miudinho e o Fajolas. E a roda da fortuna desengonça-se nas picadas do Delgado, é preciso ir buscar mais Berliets, vão levantando minas, anticarro e antipessoais. O destino foi padrasto: uma mina rebenta debaixo dos pés de Zé Fraga, exatamente no tempo em que Galo Doido foi preso.

Zé Fraga é operado no hospital de Nampula onde conhece a enfermeira Filomena. É condecorado com a medalha de valor militar, Zé Fraga fica indiferente. O pelotão era a sua família. A companhia é transferida de Magolé para a região do lago Niassa, a distância e a nostalgia aumentam. Irá começar um longo período de fisioterapia. Zé Fraga recebe a sua nova perna de plástico em Hamburgo, reencontra-se com Filomena. Criam uma clínica de bem-estar, a ideia de Zé Fraga é recuperar os mutilados de guerra fazendo-os descobrir as boas sensações com um pouco de sexo à medida. E trava-se o duelo final com Galo Doido, um pouco à imagem dos bons filmes norte-americanos do género.

E assim chegamos ao epílogo em que Zé Fraga vai a um cemitério alentejano despedir-se do alferes Perdigoto escrevendo numa árvore com marcador azul: assassinado por um filho-da-puta conhecido por Galo Doido.

Indiscutivelmente um livro que vai ficar na galeria das obras mais representativas da literatura da guerra colonial.
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Nota do editor

Vd. postes anteriores de:

8 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14713: Notas de leitura (724): “Olhos de Caçador”, de António Brito, Porto Editora, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

12 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14737: Notas de leitura (727): “Olhos de Caçador”, de António Brito, Porto Editora, 2014 (2) (Mário Beja Santos)
e
15 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14747: Notas de leitura (728): “Olhos de Caçador”, de António Brito, Porto Editora, 2014 (3) (Mário Beja Santos)

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