segunda-feira, 8 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14715: (Ex)citações (279): Sexo em tempo de guerra... Em Jumbembem, o pessoal da CCAV 488 entranhou a ideia de que as bajudas da tabanca eram da família... Tivemos um relacionamento com a população, baseado na sã convivência e no respeito mútuo, de tal modo que nos despedimos em lágrimas, sinceras (Armor Pires Mota, autor de "Estranha Noiva de Guerra", 2008, ex-alf mil, CCAV 488, 1963/65)



Guiné > Região do Oio > Farim > Jumbembem > CCAV 488 (1963/65) > "Mostra de grande empatia que se estabeleceu entre a população e a tropa. Cp Fernando Tomaz filmando a menina Usita, no fim de uma dança. Criança que, rapariga feita e bonita como era, se enamorou, de verdade, de um alferes. Teria uns belos 18 anos. Casou, foi viver para Bissau, mas não foi feliz. Morreu cedo, vítima de violência doméstica e de saudades do seu alferes."



Guiné > Região do Oio > Farim > Jumbembem > CCAV 488 (1963/65) > "Grupo de bajudas cujas blusas lhes foram ofertadas pelos alferes de CCAV 488. Houve lágrimas sinceros quando a tabanca soube, em 13 de junho de 1965, que íamos ser rendidos" (*)...

Fotos (e legendas): © Armor Pires Mota (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


1. Mensagem de Armor Pires Mota [ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, escritor, autor dos livros, entre outros,  o "Tarrafo", 1965 (com edição facsimilada, com as anotações do "lapis azul" dos censores, em 2013); "Guiné, Sol e Sangue, 1968; "Cabo Donato, Pastor de Raparigas", 1991; "Estranha Noiva de Guerra, 1995: e a "Cubana que dançava flamenco", 2008, podendo ser adquiridos pela interneta, aqui]

O bairradino Armor Pires Mota, c. 1963/65


Data: 8 de junho de 2015 às 12:14

Assunto: RE: Sondagem: "No TO da Guiné confesso que não tive relações sexuais com nenhuma mulher local"


Meu caro Luis Graça:

Vi a vossa iniciativa corajosa, oportuna, e apetece-me deixar aqui uma pequena nota sobre afectividades e relações com as nativas (bajudas).(**)

Vou-me cingir ao acantonamento da companhia de cavalaria 488 (batalhão 490, de intervenção,  na região de Farim, mais concretamente em Jumbembem, que era localidade onde havia um cabo verdeano que explorava uma serração.

Havia casa de habitação e pouco mais. A serração estava já vandalizada. No entanto, passado algum tempo, fomos recolher, a pedido do "homem grande", a gente de uma tabanca que estava a ser muito visitada pelos guerrilheiros, tentando o seu apoio, e queriam estar junto da tropa. Se o desejavam, assim acontecia. Montaram a sua tabanca. Viviam dentro do arame farpado, conviviam com a tropa, trabalhavam as bolanhas, as mulheres, de crianças às costas, enquanto os homens ficavam a conversar no bentabá.

Dentro desta situação, era necessário fomentar a sã convivência e o respeito entre todos, respeitar as tradições religiosas. De algum modo, éramos todos uma família e as crianças, que nos iam esperar aos frágeis portões da arame farpado, que abriam tanto para Farim como para Cuntima, sobretudo para Canjambari, onde havia casas de mato e guerrilheiros instalados, para saber se tudo tinha corrido bem, para nos darem as suas mãos, o seu sorriso ternurento, elas  eram a nossa alegria, tornavam o local menos árido.

Foi falado e definido entre o capitão Arrabaça e os oficiais milicianos e sargentos que a nossa melhor acção psico-social era respeitar as bajudas e as mulheres da tabanca. Todos estivemos de acordo, não poderia ser de outro modo. Para não haver melindres, atritos desnecessários, uma guerra fria dentro de outra guerra bem quente. Esse desejo foi transmitido a todos os soldados, como lema ideal do nosso futuro comportamento.

Como o exemplo vinha de cima e vinha (alferes e furriéis), os soldados abstinham-se de relações sexuais com as raparigas, ainda que por vezes conversassem sobre esteira estendida como jovens que precisam de conversar e de rir na verdura dos anos e dos sonhos. Mas não iam além. A não ser aquela eterna tentação do soldado aproveitar a colocar a mãozinha marota sobre os seios bem firmes ("mama firme") das raparigas, e não se coibiam de tirar assim uma foto para mais tarde recordar.

 Se o respeito já acontecia, com a chegada do alferes Bretão, açoreano, que tivera problemas com a PIDE e fora para ali mobilizado, esse clima de bom entendimento acentuou-se. O Bretão comprou-lhes pano para as blusas, vestimos as "nossa" raparigas. Outra acção de carácter psico-social, foi a construção de uma nova tabanca, com a ajuda dos soldados que empreenderam fazer adobes de terra preta e ajudar a erguer depois as paredes. A colocação do telhado já era com os homens e rapazes. Alinhadas, até foram dados nomes de ruas.

Queremos dizer que o Bretão era abertamente contra a guerra, mas nunca se recusou a fazer qualquer operação. Só dizia: "não matem ninguém, mas, se nos atacarem, não nos deixemos morrer". Era a sua filosofia. De certo que os soldados, na força da virilidade, não tivessem as tentações da carne, mas souberam sempre separar fronteiras. Eram da família as raparigas. Nunca me constou que algum levasse bajuda para o mato e muito menos que deixasse por ali geração. Não consta. Mas sei que algumas raparigas se apaixonavam por este ou aquele, era normal.

Havia uma miúda, a Usa, aí de uns dez anos ou pouco mais, a quem fora ensinado a ler. Era uma miúda muito querida, que chegou a gostar de um furriel e, passados anos, de um alferes de companhia que estacionara também em Jumbembem, e mais tarde, rapariga feita e muito bela de rosto, busto perfeito, se havia de apaixonar por um alferes, querendo vir com ele para Lisboa. Um amor forte. Cheguei a ver a fotografia em toda a sua beleza. Não viera para Lisboa e havia de casar e ir viver para Bissau, onde foi vitima de violência doméstica e ali veio a falecer nova, com saudades do seu alferes.


Esta notícia que me chegou com a fotografia, deixou-me triste, fiz um filme de Jumbembem e da gente negra, lembrei o grupo de crianças que varriam a parada e entre elas lá estava sorridente a Usa.

Isto é o que podemos testemunhar das nossas boas relações humanas com a gente negra da tabanca de Jumbembem, porque as outras relações, se não estavam proibidas, os soldados entranharam a ideia de família e foi isso que concorreu para ninguém fazer filhos em tempo de guerra.

Armor Pires Mota [, foto atual,  à  esquerda]


3 comentários:

Luís Graça disse...

A história dessa miúda, a Usita, merece um desenvolvimento maior...

Vou desafiar o camaradada Armor Pires Mota a escrever algum mais sobre esta jovem mulher cuja história, trágica, deve merecer o talento de um grande escritor como ele... Um grande escritor e um ser humano e um português de eleição, com valores.

Este texto do Armor Pires Mota, que publicamos, honra-nos a todos.

antonio graça de abreu disse...

Muito bem, Armor Pires Mota.
A história da Usita dava um romance, trágico por certo,
mas retrato das nossas vidas e das vidas dos nossos irmãos Guinéus.
Abraço,

António Graça de Abreu

Luís Graça disse...

Pires Mota:

A foto das bajudas, todas vestidinhas com blusinhas brancas oferecidas pelos alferes da companhia, é um espanto...

Fui recuperá-la, no arquivo, e reeditei-a... Dava para um tremendo, riquisssímo, apaixonado e apaixonante debate sobre a socioantropologia do corpo, da mulher, do erotismo, da adolescência, do exotismo, das relações dominador-dominado, do colonialismo europeu, e sei lá que mais... Dava para montar um curso de mestrado!... Se calhar vamos já ter aí à perna as nossas queridas amigas feministas, prontas para nos dar no toutiço...

Mas, deixa-me dizer-te, "off record", que, pese embora as vossas boas, higiénicas, profiláticas, didáticas, sábias intenções...., as miúdas tinham outro encanto de maminha ao léu, conforme os usos e costumes das suas gentes... Era cultural, mas também natural... E como diz o aforismo hipocrático, "naturalia non turpia", o que é natural não envergonha...

Nós, que lidámos durante quase dois anos com a população africana das tabancas, no interior profundo da Guiné, os islamizad e os animistas, fulas, mandingas, balantas..., aprendemos também rapidamente a "entranhar" o aforismo da grande escola médica, grega: o que é natural nos deve envergonhar...