sábado, 16 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14621: Notas de leitura (713): "Neste mar é sempre inverno", romance de Tibério Paradela (edição de autor, 2014) (Parte III): toldaram-se-te os olhos, marinheiro... (Luís Graça)


Lisboa > Gare Maríitima de Alcântara (arq. Pardal Momnteiro, 1943) > Panéis de Almada  Negreiros (1947) > Tema "A Nau Catrineta"... Almada Negreiros  (1893-1970) é um dos nossos grandes artistas, polifacetados, do séc. XX.  Os seus painéis do Porto de Lisboa (Gare Marítima de Alcântara  e do Cais da Rocha Conde Óbidos) merecem ser melhor conhecidos e divulgados,,,



Lisboa > Gare Marítima de Alcântara (arq. Pardal Monteiro, 1943) > Panéis de Almada  Negreiros (1947) > Tema  "Quem nunca viu Lisboa não viu coisa boa” (1).


Lisboa > Gare Marítima de Alcântara (arq. Pardal Monteiro, 1943) > Panéis de Almada  Negreiros (1947) > Tema  "Quem nunca viu Lisboa não viu coisa boa” (2).



Lisboa > Gare Marítima de Alcântara (arq. Pardal Monteiro, 1943) > 10 de maio de 2015 > O cais, visto do navio-escola "Sagres".



Lisboa > Navio Escola Sagres (construído em Hamburgo em 1937) > Cais de Alcântara > 10 de maio de 2015 > Foto panorâmica.

Fotos (e legendas): ©  Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados


Toldaram-se-te os olhos, marinheiro,
Quando pra trás olhaste e já não viste
A terra, que deixaste em adeus triste,
Chorado no convés do teu veleiro.

Se és tu do mar o grande caminheiro
Em busca de destinos que cumpriste;
Se o fado teu, ao qual nunca fugistes,
Já fez de ti, no mundo, o Ser primeiro,

Então, enxuga as faces, meu guerreiro,
E volta para a frente o teu olhar.
Não vá esse inimigo traiçoeiro


A quem, por toda a parte, chamam mar,
Revoltar-se e engolir-te por inteiro
Numa onda vilã que vai passar!



In: PARADELA; Tibério - Neste mar é sempre inverno. Edição de autor, Aveiro, 2014, p. 12. Soneto, da autoria do romancista.  Formalmente perfeito,duas estrofes de quatro versos (quartetos) mais  duas de três versos (tercetos)... Cada verso com dez sílabas poéticas... (LG)




Capa do livro, da autoria do meu amigo,
o arquiteto JoséAntónio Paradela,
irmão do autor, ambos naturais de Ílhavo.
conterrâmeos e amigos
do nosso grã-tabanqueiro Jorge Picado.
O livro pode ser pedido através
do mail:
1. Mais algumas notas da minha leitura do livro do Tibério Paradela, "Neste mar é sempre inverno" (edição de autor, Aveiro, 2014) (*)...

Já aqui referimos algumas (dis)semelhanças entre a vida a bordo nos bacalhoeiros e a nossa situação como militares na guerra colonial,   que vem propósito por a ação do romance se passar em 1965, na safra do bacalhau na Terra Noba e na Groenlândia (longe de casa, longe da pátria), no espaço confinado de um navio (que era também na época o meio de transporte habitual das tropas que iam para a África) (**):

(i) Os pescadores, em geral recrutados pelo capitão do navio (ou por recrutadores a seu cargo, e por conta do armador), eram divididos em duas categorias em função da antiguidade (que, tal como na tropa, era um "posto" ou dava "estatuto"): os maduros (com uma ou mais campanha na pesca do bacalhau, em geral de seis meses); e osverdes, diríamos nós os "periquitos"... Competia aos maduros praxar os verdes, mas ao mesmo tempo apadrinhá-los, enquadrá-los, apoiá-los...

 (ii) As alcunhas, tal como na vida militar...

Todos ou quase todos têm alcunhas, em geral ligadas à sua proveniência geográfica ou terra natal, 
ou a alguma particularidade biográfica;

 (iii) O navio era a "grande casa", a caserna, o quartel, onde também havia segregação socioespacial...

Por exemplo, não era habitual, os oficiais (capitão e imediato) entrarem, a não ser em situações excecionais, na área reservada ao pessoal (pescadores e moços de convés).

(iv) O mar é o mato... 

E só ao fim de quarenta dias depois de partirem de Lisboa, é que os homens do "Nova Esperança", agora a caminho da Groenlândia, voltam a pisar terra, neste caso o mítico porto de St. John's...

(v) Mas o mar (e a pesca à linha do bacalhau) também é a solidão e a violência (dos conflitos, da fúria do mar, da dureza da vida a bordo, do risco de acidente e de naufrágio)...

Haveremos de falar disso noutro poste, com mais tempo e vagar...

(vi) Enfim, não esquecer a  importância do correio...

2. Poderíamos acrescentar outras situações que eram comuns às partidas (e chegadas) por mar... quer da frota bacalhoeira quer das "tropas expedicionárias":

(vii) A "pompa e a circunstância" que os senhores do regime da época, o Estado Novo, punham nas cerimónias de "depedida", tendo como pano fundo neste caso a a Praça do Império, a fachada do Mosteiro dos Jerónimos, e frente ao Tejo, o Padrão dos Descobrimentos... Ironicamente, o autor descreve o fim da festa:

"Junto à berma do passeio, um senhor pomposo de farda azulo e botões amarelos que participara na decoração da cerimónuia insistia em fazer entrar no automóvel do Ministério a teimosa espada que pendia à cinta" (p. 9).

(viii)  As referências icónicas de Lisboa, "capital do império", e que vão desaparecendo, à medida que o barco se afasta de terra: 

Ainda estava em construção, em 1965, a ponte sobre o Tejo (inaugurada em 6 de agosto de 1966), mas a montante e a jusante, não escapavam aos olhos de quem partia, o Terreiro do Paço, o Cristo-Rei, os Jerónimos, o Padrão dos Descobrimentos, a Torre de Belém, o forte de São Julião da Barra, o ilhéu do Bugio "cuja linha de união, dizem, é o onde o mar começa" (p. 11).

(ix) A visão derradeira do continente: a serra de Sintra!...

"É este o momento em que o marinheirop  diz o último adeus, assumindo a p0erda da sua identidade (...). Mede a altura das vagas e avalia a força do vento. Contemplka as estrelas e o anscer e o p^ªor do sol. (...) Conta os dias para voltar e sente o peso da solidão.Arrasta os pensamenmtos e engeole ems eco a SAUDADE!" (p. 111)...

(x) E, claro, os inevitáveis enjoos... 

No caso dos T/T Niassa, Uíge e outros levavam 5 dias a chegar a Bissau... No caso do bacalhoeiro "Nova Esperança", navegando 200 milhas por dia, chegará à Terra Nova em 10 dias.

Como diz uma das personagens, "o enjôo é este estado estúpido que anula valentões!(...). Depois somos grandes por igual (...) (p. 20).

(xi) As praxes... a que não escapam os "verdes" (ou sejam, os "piras", no nosso caso)... e o temor face à autoridade, personificada no capitão d navio...

Francisco, "moço de convés", da Beira Alta, é logo praxado, a bordo.

"Ó moço" Vai ao porão, enche um balde de sal e leva-o à ponte, ao capitão!"... "No Francisco notou-se um certo tremor e logo a preocupaçãoi de ter que obedecer cegamente àquela ordem" (p. 23)...

Quando chegou diante do capitão, "saltou, num estremeção", sentindo-se  "o rato mais pequenino do celeiro da sua casa, lá na aldeia", ao ver-se se viu confrontado com com "aquela figura avantajada no corpo e na autoridade" (p. 26)... "O sal?! Para que raio quero eu o sal? Põe-te a andar!", respondeu-lhe, ríspido e cúmplice, o comandante..

(xii) O "calão" da pesca (por analogia com o nosso, da tropa fandanga da Guiné)...

O livro traz um glossário no fim (pp. 261/262) para que o leitor possa saber algo mais do linguajar destes valentes portugueses de antanho, tais como: 

(i) "fazer capa" (aproar o navio às vagas em marcha reduzida" (vd, p. 19); 

(ii) "foquim" (pequeno baú de madeira com asa, em forma de tronco de cone) (vd. p. 49);

 (iii) "moiros" (referência pejorativa aos pescadores) (vd. p. 36);  

ou (iv) "rabada" (parte interior do navio,, na popa) (vd. p. 14)...

(Continua)

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Notas do editor:

(*) Vd, postes anteriores:

3 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Luís

Esse paralelismo, essa 'comparação' com as nossas 'comissões' não é assim tão estranha.

Na súmula que fazes referes muitas semelhanças e não me parece que possa haver contestação a isso.

Além do mais, tanto quanto me lembro, para alguns, as campanhas da pesca do bacalhau 'substituíam' o serviço militar.
Eu próprio me lembro de ter estado quase a ir para a Escola Náutica para o curso de "maquinista naval" e o serviço militar era substituído por vários anos de serviço obrigatório nos cargueiros ou petroleiros. Não fui, pois esse tempo de serviço foi aumentando substancialmente....

Hélder S.

Luís Graça disse...

Helder, sim, refiro isso mum dos postes anteriores... De facto, e dada a importância que o bacalhau tinha na nossa economia, havia legislação de 1927 que dispensava do serviço militar os mancebos com "seis campanhas ou temporadas na pesca do bacalhau", desde que matriculados em navios nacionais...

O romance tem como persomagem principal o "Nova Esperança" e gira à volta de 4 ou cinco figuras da tripulação: o capitão Valério, comandante do navio,o seu velho imediato (que foi o único sobrevivente do naufrágio do "São Cristóvão", em finais dos anos 20), o Tio Quico (velho pescador que tem um filho a fazer a guerra em Angola), o Atílio (um homem revoltado contra a sua dura condição proletária) e o "Serranito" (moço de convés, beirão, que se alistou para fugir à guerra de África),,,

É verdadem, a pesca do bacalhau na Terra Nova e na Groenlândia era, então, uma alternativa à guerra colonial...

No romance, o "Serranito" (, alcunha de quem vem da Serra da Estrela), a conselho do abade da aldeia, e da sua madrinha, professora, está convencido de que se fizer 7 (sete) campanhas da pesca do bacalhau está safo da tropa e da guerra...

A legislação nesse sentido remetia aos tempos da Ditadura Militar (vd. Diário do Governo, 1.ª série, Decreto n.º 13441, de 8 de Abril de 1927), e era claramenmte uma forma de responder às dificuldades de recrutamento de pessoal e às duras condições de trabalho.

Haverá em 1937 a revolta dos bacalhoeiros, em protesto contra a "corporatização" do setor... A resposta do Governo foi dura... Os homens foram incorporadps à força...

Luís Graça disse...


Sobre a revolta dos bacalhoeiros, vd. aqui artigo da "Análise Social", em pdf;

Álvaro Garrido* Análise Social, vol. XXXVII (165), 2003, 1191-1211
Os bacalhoeiros em revolta: a «greve» de 1937

http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1218736617K1nDC1cf3Br88HK4.pdf