sexta-feira, 24 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14513: Notas de leitura (706): Abdulai Silá, o grande prosador guineense (2): "Eterna Paixão" (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Junho de 2014:

Queridos amigos,
É considerado em vários países como o prosador mais influente da Guiné-Bissau.
Abdulai Silá tem obra publicadas em Cabo Verde, em França e no Brasil. Tem um currículo invejável, este engenheiro eletrotécnico que começou a escrever num inverno gelado em Dresden, onde estudava: dedica-se às tecnologias de informação e comunicação, é empresário, fundou a primeira editora privada guineense e participou na fundação da revista Tcholona e do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa.
Surpreende por manejo hábil com que transgride o português e nele imiscui o crioulo.
Para não deixar o leitor estarrecido, publica glossário para que se saiba que foronta é aflição e kafumban é grande mentira…

Um abraço do
Mário


Abdulai Silá, o grande prosador guineense (2)

Beja Santos

A segunda obra publicada por Abdulai Silá intitula-se “Eterna Paixão” (1994), foi de facto o seu primeiro livro, mas editou em primeiro lugar “A Última Tragédia” (1995). Mais adiante, publicou “Mistida” que conclui em trilogia o olhar do escritor sobre a realidade guineense. Em entrevista à brasileira Érica Cristina Bispo (www.omarrare.uerj.br/numero13/erica.html) Silá pronunciou-se assim sobre “Eterna Paixão”:
“Não posso esconder que quando iniciei a construção do enredo (já lá vão duas décadas), já era previsível o marasmo em que se encontra hoje o meu país. Já havia provas reais de que o “espírito da luta” já não existia mais, que os nossos concidadãos, que ontem abnegadamente participaram na concretização daquilo que para mim foi o maior feito deste povo no século passado – acabar com a colonização, aprofundando o processo de construção daquilo que Amílcar Cabral chamou de “Nação africana forjada na luta” –, estavam incompreensivelmente a enveredar por uma via em todos os sentidos oposta àquela que tinha sido anunciada. Estava acontecendo tanta coisa, tão nociva quanto ininteligível, assistia-se ao desmoronar de tantos sonhos “legítimos”, assistia-se a um desfasamento cada dia maior entre o discurso político e a prática diária, que entendi por bem ir buscar alguém de fora, (nesse caso Dan), carregado de uma boa dose daquilo que hoje se pode chamar de utopia, mas que no contexto da época era absolutamente exequível, para encarnar toda a desilusão e frustração que o cidadão comum sentia. Mas mais do que denunciar essa calamidade e ridicularizar os seus protagonistas, era necessário passar uma mensagem positiva, de fé e de esperança”.

Carlos Lopes, sociólogo, escritor e alto funcionário das Nações Unidas, rasga elogios no prefácio:
“O romance de Silá é a primeira tentativa séria de publicar prosa na Guiné-Bissau. Só por este facto merece destaque e faz História no nosso provinciano debate intelectual. Mas sem mais valor por encarnar que esse difícil momento de incerteza que insisto em chamar de solstício das certezas”.
É uma história de amor a África, o país não está bem esclarecido, a corrupção é larvar e os programas internacionais de ajuda são talhados exclusivamente para que os poderes do dia simulem que fazem boa figura.
Silá, à semelhança do arranque que põe em “A Última Tragédia”, dispara fulminantemente à partida, é um parágrafo de perder o fôlego:  
“Subitamente, sem ter reduzido a velocidade, encetou uma série de movimentos com ambos os braços, torcendo o volante do carro sem piedade. Deixou a estrada principal e meteu-se na estrada secundária que nascia logo ali, sem se anunciar. Segurou firmemente o volante enquanto os pneus gemiam ruidosamente e amaldiçoou, mais uma vez naquele dia, os que haviam decidido alterar o trajeto daquela estrada, desviando-a do circuito a que estava habituado”. Ele é Daniel, ou Dan, é afro-americano, tem uma inequívoca paixão por África. Chega a casa, vai muito interrogativo, o seu casamento caminha para a rotura, prepara-se para conversar com a empregada, Mbubi, toca o telefone, é Ruth, a mulher de Dan, a comunicar que vem mais tarde. Ruth chega e humilha Mbubi. Segue-se uma discussão violenta entre o casal, tudo por causa de um contrato catastrófico, economicamente inútil para o país.

Silá dá-nos depois a vida universitária de Dan, o modo como ele impressionou diplomatas africanos em torno de projetos de desenvolvimento baseados na exploração de recursos hídricos, critica impiedosamente o projetos ditos de desenvolvimento desenhados para afagar o ego de ditadores. Dan sonha com o desenvolvimento do continente africano, como diz entusiasmado há um conjunto de políticos internacionais que o escutam:  
“O objetivo principal que se pretende atingir é desenvolver todo um processo suscetível de atribuir uma nova dinâmica ao sector agrícola, culminando numa autêntica revolução tecnológica e garantindo a todos a necessária autossuficiência e segurança alimentares. Os Estados teriam que se unir para juntar forças. Haveria em cada zona do continente, por exemplo na África Central, Austral, Ocidental, etc., uma estrutura executiva que se encarregaria de coordenar as ações. Então, para disponibilizar mais recursos, haveria um único exército, pequeno, que ficaria sob o comando da OUA”.
Este entusiasmo de Dan cativa os políticos, Dan conhece Ruth e partem para África.

Dan mergulha na desilusão, vê crimes, prepotências, nepotismos, o ditador do país está rodeado de mandantes que liquidam todo e qualquer suspeito que ponha em causa as suas decisões. E Silá parece que se está a olhar ao espelho e a pensar na sua pátria:  
“Como é que iria falar da barbaridade de toda aquela máquina repressiva, daqueles batalhões de especialistas da tortura? Como é que iria convencer Mark, aquele seu amigo tão sincero, que naquela África que ele tão apaixonadamente pregava e cujas virtudes tanto enaltecia, que naquela mesma África se investia mais na repressão que na educação? Com que argumentos iria demonstrar que a pertença fidelidade ao Pai da Nação mantinha amordaçada a capacidade criativa de toda uma geração e fomentava a prostituição intelectual?”.

Reencontra-se com Mbubi, é pela sua voz que ele se apercebe definitivamente que o povo vive num intenso sofrimento e numa miséria sem esperança. No ministério onde coopera, Dan apercebe-se que é malquisto, ele tem andado a pedir clemência para um ministro que foi preso sem culpa formada. Dan toma consciência de que não pode combater aquela corrupção. O seu casamento chega ao fim. Dan é preso, torturado, enxovalhado, e depois liberto. Dan lança-se no interior daquele país, transforma-se em professor, chegou entretanto o multipartidarismo. Dan é convidado a colaborar. Aceita voltar ao ministério onde cooperara. Mas a saudade pelo projeto de desenvolvimento em que tem estado envolvido é mais forte. Silá não trava os ímpetos metafóricos, simbólicos, falando da democracia, da esperança pelo renascimento africano, fala na dignidade, do renascimento do orgulho, Dan repetia vigorosamente para que todos à sua volta ouvissem: a minha paixão é eterna!

É o fervor no novo Homem, como observa Carlos Lopes. Eterna paixão pelo país e pelas gentes, a confiança na pureza do ser humano, nos que resistem aos males da sociedade, quais tentáculos de um povo enraivecido. Também ele, Carlos Lopes, não quer iludir o seu profundo desapontamento:
“Perguntamo-nos como foi possível isto e aquilo. Como é que o fulano tal que fez a escola comigo, andou comigo na militância, partilhou esta e aquela ideia e ação, pode agora ser símbolo da corrupção que Pepetela tão bem descreveu na sua Geração da Utopia".

“Eterna Paixão” é libelo utópico, Dan realiza-se quando vai para a tabanca de Woyowayan, algures. Vem agora a seguir “Mistida”, porventura o seu melhor romance, onde a sua crítica é mais violenta, estão ali os novos políticos arranjistas, aparecem silenciados ou esquecidos os heróis anónimos que deram a vida pela libertação da pátria. Preparem-se para um grande romance.

Recorde-se que Abdulai Silá não tem edições em Portugal, a trilogia Mistida foi publica pelo Centro Cultural Português Praia – Mindelo em 2002.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14492: Notas de leitura (705): Abdulai Silá, o grande prosador guineense (1): "A Última Tragédia" (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Hélder Valério disse...

Como vai sendo hábito o Beja Santos vai-nos trazendo as suas opiniões sobre obras que vai encontrando e que nos dão uma primeira impressão (a sua, naturalmente) sobre os respectivos conteúdos.

Claro que um juízo próprio, nosso, fará sempre falta para quando nos tivermos que pronunciar sobre a(s) obra(s) em causa, mas a partir do que o Beja Santos refere assim podemos ter maior ou menor apetência para aprofundar o conhecimento.

Neste caso, reconheço que nunca tinha visto nada de Abdulai nem tinha visto qualquer referência. Não ter editado nada aqui em Portugal explica isso, certamente.

Não sei se vou ler o livro, agora que o que foi transcrito da entrevista à brasileira Érica são palavras de um profundo sentido crítico sobre a realidade guineense, que nós (eu) também sentimos, lá isso é verdade. Parece ser um olhar lúcido, colocando 'o dedo na ferida', mas com mensagem de esperança. Foi o que senti e por isso, se puder, tentarei ler.

Hélder S.

Antº Rosinha disse...

Obrigado Beja Santos, por mais esta.

Não perco uma das tuas à espera de novidades.

Como agora estão a aparecer este género de «afro-pessimistas» é bom que pessoas de famílias tradicionais guineenses como Carlos Lopes, que provavelmente já ninguem reside em Bissau, contem e analisem a realidade africana de milhões de jovens sem qualquer prespectiva de vida.

E é bom que os guineenses «afro-pessimistas» contem que de todas as capitais africanas, Bissau será uma das poucas cidades onde os jovens gozam de alguma paz.

Embora também haja jovens a tentar sair daquela vida sem vida.

Também é bom que os «afro-pessimistas», não atribuam apenas aos africanos a razão do "desastre".

Cumprimentos