quarta-feira, 22 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14501: Os nossos seres, saberes e lazeres (88): Bruxelles, mon village (Parte 2) (Mário Beja Santos)

1. Relembremos a mensagem de 7 de Abril de 2015 do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):

Queridos amigos,
Ao longo de décadas, e ao princípio por razões meramente profissionais, fui estabelecendo uma relação muito afetuosa com uma cidade de quem os eurocratas não têm uma opinião lisonjeira, alegando que ali chove a cântaros, o tempo sempre escuro, muita friagem, um centro histórico que à noite fica entregue aos turistas.
A verdade é bem diferente, Bruxelas tem lindos parques, guarda monumentos que nos lembram que a Bélgica, em 1900, era a quinta potência mundial, e a sua arquitetura ainda hoje espelha essa opulência de outrora e a vida farta do presente. Bruxelas oferece por metro quadrado mais vida cultural que Nova Iorque em museus, exposições, eventos étnicos espantosos, pois alberga gentes de mais de 120 países.
Esta é a Bruxelas com que ganhei intimidade e onde tenho a dita de guardar amigos indefetíveis.

Um abraço do
Mário


Bruxelles, mon village (2)

Beja Santos


A manhã está soturna, o chumbado do céu não desarma, atravessámos meia Bruxelas para chegar a esta igreja barroca chamada Igreja dos Mínimos, bem perto do bairro popular de Marolles. Aqui ouvimos duas cantatas, uma de Dietrich Buxtehude e outra de Johann Sebastian Bach, apropriadas para a Quaresma. E começa a aventura no centro de Bruxelas, as saudades são muitas e o espírito tem um pouco a ver com a profecia de Saramago: o que se vê de manhã não é o que se vê à tarde; o que se vê no Inverno não é o que se vê no Verão, a luz influi, a companhia também. Não espero grandes surpresas mas anseio por renovadas alegrias.


Ganhei familiaridade com esta fachada, basta dizer que quando aqui aterrei em 1977 fiquei num hotelzinho com um nome pomposo de George V, nas imediações. Habituei-me ao espaço e ao preço, era tanta a curiosidade que um dia bati à porta para saber o que ali funcionava. A vida dá muitas voltas, este garboso edifício tem conhecido altos e baixos, agora funciona lá uma escola. Aprecio a entrada, Bruxelas está pejada da melhor Arte Nova e Arte Deco, havia o dinheiro do Congo, a industrialização foi florescente, os desaires da II Guerra Mundial passaram depressa, a arquitetura de Bruxelas mostrou o seu poderio. Entre as guerras fizeram-se belíssimos espécimenes como este.


Infletimos para o centro histórico, mas vale a pena determo-nos nestes pormenores que são as pinturas que se espalham por certas ruas de Bruxelas. A Bélgica é uma potencial mundial da banda desenhada, aqui nasceu o Tintin e o Blake e Mortimer, do genial E. Jacobs. Percebe-se como os belgas se ufanam destas portentosas artes do desenho. Aqui está um exemplo, vou a caminho da Grand-Place, aquela que um Marechal de Luís XIV praticamente destruiu quando o Rei Sol quis ser dono e senhor deste território.


Vendem-se panorâmicas da Grand-Place, é um harmonioso quadrilátero de casas das corporações intervaladas por duas construções de prestígio, emblemáticas da cidade: o Hotel de Ville e a Maison du Roi, a primeira é famosa pelo rendilhado da sua fachada e a sua agulha que se avista a longa distância, a Maison de Roi tem um esplendoroso recheio, quem aprecia o período áureo da pintura flamenga tem que a visitar. Nunca me canso de deambular pela praça, nos cafés e restaurante do tempo estiveram notabilidades como Karl Marx ou Rimbaud. É um dos pontos fortes do turismo, porque aqui se vendem rendas, chocolates, miudezas que os turistas gostam de levar para casa.



A manhã recompôs-se, está ensolarada, faz tudo o sentido saltar do centro histórico para um dos pólos das minhas paixões: a Feira da Ladra de Bruxelas, na Place du Jeu de Balle, no passado era conhecida por Velho Mercado, depois mostramos imagem do tempo. A feira realiza-se há mais de 140 anos. Posso estar horas a falar sobre alguns dos momentos que aqui vivi, aqui comprei traquitana de toda a espécie, quadros, cerâmicas, porcelanas, roupas, livros, muitos livros. O que se vai passar fica na intimidade, vou andar em delírio entre toneladas de pano antigo, vou dar comigo a negociar com um árabe um lençol, vários lenços em seda de meados do século passado, uma tolha de chá e algo mais, nunca perdi de vista que vim num voo low cost, a contenção de peso é obrigatória. Ainda comprei alguns livros, remexi e ali deixei, pesaroso, números da revista de arte FMR, que custam um balúrdio e que ali se podiam comprar a um euro, que dor de alma!


Nos alvores da industrialização, Bruxelas saltou para fora das muralhas e destruiu-as. Ficaram escassos vestígios, um deles é a Porta de Hal, bem pertinho da Feira da Ladra. O estômago já está a dar horas, apetece-me comida típica. Ao passarmos por um restaurante vimos anunciado um prato flamengo, Waterzooi, uma apetitosa sopa com nacos de galinha, come-se que é um regalo, com cerveja, depois um gelado com chocolate quente e remata-se com um café expresso. Sinto-me em glória, Bruxelas está a receber-me de braços abertos, não há chuva, não frio nem há vento, vamos então mostrar o ambiente onde se manjou a deliciosa Waterzooi.


Pedi licença ao patrão para mostrar este interior da taberna (linguagem belga), e é a mexer-me por ali que encontrei imagens antigas da Porta de Hal e da Feira da Ladra, não resisto a mostrar-vos.



Saímos para passear em Marolles, o bairro é conhecido como o mais antigo de Bruxelas, na sua igreja, Notre Dame de la Chapelle, está sepultado um dos maiores génios da pintura europeia que aqui viveu, Pieter Brueghel, o Velho, vamos já à procura da sua residência, bem conservada por sinal.


Este gigante da pintura deixou a escola. Aqui há uns anos, tive a dita de ver uma exposição espantosa, intitulava-se A Firma Brueghel, nela podíamos ver as repetições dos temas de acordo com as encomendas, o nome Brueghel era prestigiado entre príncipes e mercadores. Mas Marolles está a refinar-se, afinal faz parte do centro da cidade, uma burguesia próspera resolveu instalar-se aqui, as casas renovam-se, o ar decrépito das ruas desaparece, o antigo remoça-se, conforme a imagem junta.


Estamos na Rue Haute, a coluna vertebral de Marolles, a rua está cheia de comércio, desde restaurantes a lojas de antiguidades. E é então que uma surpresa com ligações à Guiné se avista numa montra de artigos africanos, o viandante, primeiro incrédulo, depois certificado que está mesmo a ver um soberbo exemplar da Arte Baga, que tanto influenciou a escultura do Sul da Guiné, todos nós vimos peças como esta, ora prestem atenção.


Outrora, quando houve museu da Guiné, ali vi belos exemplares desta Arte Baga, os artesãos continuam a fazer cópias, mas nunca mais encontrei este espírito animista em proporções escultóricas tão adequadas, tão ao alcance do humano.


E terminamos com uma homenagem a Hergé, que criou o Tintin mas também esta dupla conhecida em português por Quim e Filipe, é indubitável que estes murais prestam grande serviço à banda desenhada, não sei se isto é arte pública ou arte urbana, sei que é uma delícia para os olhos, espaços escombrados preenchidos por traços tão harmoniosos. E chega, os velhotes regressam a casa. Amanhã há mais, ao amanhecer vamos começar por exposições prometedoras no Museu de Ixelles, um museu comunal cheio de história de arte, basta dizer que a melhor coleção de cartazes de Toulouse-Lautrec fora de França está aqui. Até à próxima.

(Continua)
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Notas do editor

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1 comentário:

Hélder Valério disse...

Já estive em Bruxelas.

No final de Agosto de 1968. De 26 a 29.
E gostei.

Na altura estava em Paris e com um amigo fomos, à boleia, até Bruxelas, já que eu tinha a intenção de encontrar um amigo, que mais tarde se transformou também num "camarada da Guiné", levando-lhe de viva voz as indicações que foram necessárias.
A viagem foi muito interessante, cheia de peripécias curiosas, mas o mais notável é que a última parte da boleia, já apanhada na Bélgica, nos arredores de Roubaix, foi numa carrinha de ciganos que nos deixou na periferia de Bruxelas e depois foi fazer 'à pata' o resto do caminho até ao albergue que tínhamos como referência.
Qualquer coisa como se tivéssemos ficado no Bairro da Encarnação e fossemos até ao Rossio!
Naquela época não havia "euros" e não tivemos o cuidado de arranjar 'francos belgas', só tínhamos 'escudos', 'francos franceses' e 'libras', já era noite avançada e nos eléctricos não faziam câmbios. Foi andar a pé, comer nozes que nos tinham dado à saída de França, bem assim como cerveja de fabrico caseiro.

Gostei dessa Grand-Place, do "menino a mijar", do "attomium", etc. Fui até à Universidade. Comi bem, dormi melhor.
Como disse, gostei de Bruxelas.

Hélder S.