sábado, 21 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14394: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (10) - Reportagens da Época (1967): Operação Cernelha

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 17 de Março de 2015:

Braga, 15/03/2015Prezado Luís Graça:
Envio mais alguns dados, de vivências da Guiné, após sobre os mesmos terem passado 47 anos.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves



MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)   
REPORTAGENS DA ÉPOCA

10 - Operação Cernelha

Binta, 17/03/1967

São 15 horas. O Sol queima. A estrada até Guidage vai desfazer-se em pó.
Sinto medo.
A operação é arriscada.
Mesmo assim vou.
Todos vamos.

Em mim o temor e a esperança quase se confundem. Mas vou. Melhor, vamos.

Pouco depois das quatro horas da tarde a coluna partiu rumo a Guidage. O destino final chama-se Sambuiá.
 
Às dezoito horas chegou-se ao destacamento de Guidage.

Às 24, iniciou-se a marcha para o objectivo, seguindo pela estrada que vai por Facã, rumo à base turra de Sambuiá.
 
É a operação “Cernelha” que está em marcha.

Isto, de facto, não passa de uma tourada. De uma tourada que se repete muitas vezes, mas onde não se percebe muito bem quem são os touros, e quem são os toureiros. É que, às vezes, fica-me a sensação de que desempenhamos aqui um duplo papel: conforme as circunstâncias, tanto toureamos, como até somos toureados.


Dia 18

Pelas três da madrugada, entre Facã e a estrada de Bigene, fizemos uma pequena paragem para descansar.

A essa hora a artilharia de Bigene começou de novo a bombardear a zona onde ao amanhecer deveríamos actuar.

Mete impressão, durante o silêncio da madrugada, só quebrado pela voz da fauna selvagem, o ruído causado pelo detonar das granadas, que deixa, por breves momentos, um silêncio soturno e breve instalar-se em todo este mundo naturalmente belo, e bom.

Até os habitantes da selva sofrem com a guerra, que não respeita os seus habitats naturais, e o sossego de que deveriam beneficiar.

Após o rebentamento de cada granada, que as peças de artilharia disparam, cai sobre a selva um silêncio soturno, enorme, como que de protesto contra esta agressão, de que a própria natureza é vítima.

Pelas três e meia prosseguimos a marcha. Pelas quatro, atravessámos a estrada de Bigene.
Pelas cinco horas passou-se a ocidente da antiga tabanca de Sambuiá. Às seis horas atacou-se o objectivo.

Posições relativas de Binta / Guidage / Sambuiá

O fogo foi intenso, e prolongado. Durante cerca de meia hora as nossas armas, e as deles, dispararam um pouco ao acaso, orientadas mais pelo ruído dos tiros do adversário, do que pela localização de um objectivo concreto. Foi uma tempestade de tiros de armas ligeiras, de granadas de morteiro, de bazookadas e roketadas.

E não se conseguiu entrar na base do inimigo. Os gajos têm, ao que parece, abrigos subterrâneos, o que lhes permite uma boa defesa. Para além disso, ninguém conhece muito bem a localização da base.
Por certo que o local onde nos barraram a passagem com fogo bem conduzido e certeiro, está ainda a uma considerável distância do local onde pretendíamos chegar.

Só uma coluna de blindados teria condições para avançar no terreno, e conseguir alguns resultados, sem ficar sujeita a sofrer muitas baixas humanas. Porém, aqui, os únicos blindados que temos são feitos de carne e osso. Um material tão precioso quanto vulnerável.

As nossas forças sofreram dois mortos, pertencentes à milícia de Binta, e vários feridos, um dos quais com bastante gravidade. Os feridos pertenciam aos “roncos” de Farim.

Durante a retirada, quando fazíamos com paus, e folhas de palmeira, macas para melhor transportar os feridos e os mortos, detectámos uma emboscada dos gajos. Conseguimos abrir fogo primeiro do que eles, e não tivemos qualquer azar.

Pouco depois das nove horas fomos sobrevoados por uma avioneta. Era o comandante que, como de costume nestas ocasiões, vinha dirigir lá de cima os acontecimentos. Pelas dez horas apareceram os bombardeiros, a escoltar os helicópteros que vinham evacuar os feridos e os mortos.

Chegaram depois de estarmos à volta de quatro horas à espera deles. Se por acaso tivéssemos necessitado de apoio aéreo para sair do local onde se iniciou o ataque, bem tramados estávamos. O apoio aéreo é eficaz e moralizador para as tropas terrestres. Porém, raras vezes aparece a tempo e horas, nos locais onde faz falta.

O regresso a Binta fez-se pela estrada que segue de Bigene para Farim. Atravessou-se, a pé, o rio Sambuiá, dado que a ponte que era de madeira foi queimada, já lá vai muito tempo.
Junto à ponte de Boborim estavam as viaturas à nossa espera.

Esta operação, em que participaram as companhias 1546, 1547, 1585 e os “Roncos” de Farim, apenas deu porrada para a nossa Companhia, e para os “Roncos” que seguiam integrados na nossa unidade.

Logo que cheguei a Binta, apesar de fatigado, ainda fui sobrevoar Sambuiá, de avioneta, em missão de reconhecimento.

Mais uma vez fui e regressei.

Enquanto isto acontecer, todos os sacrifícios, e todos os riscos, serão sempre pequenos.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14361: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (9): Golpe de mão à casa de mato de Mampatás

1 comentário:

Anónimo disse...



Camarada Domingos Gonçalves:

Gostei muito do teu texto, uma escrita serena, duma operação de cernelha.
Não sei se te intrepreto bem, mas parece-me que por todo ele perpassa a amarga ironia dos comandantes operacionais umas vezes alferes, outras vezes furrieis, raramente, os nossos capitães, a procurar fazer uma guerra por encomenda, de muita gente bem instalada nos gabinetes de ar condicionado de Bissau e de Lisboa.
Anoto o teu respeito pela ecologia da Guiné, pela sua flora e fauna. Não encontro resposta, desculpa, tu não ma dás, para os feridos e para os mortos dessa operação.
Há pouco mais de um ano encontrei um alferes que esteve destacado só com o seu pelotão num destacamento, contiguo a uma zona controlada pelo inimigo. Ele disse-me que face às circunstâncias teve que fazer um acordo tácito, de não agressão com o inimigo.Disse-me ainda que a sua maior preocupação foi voltar com todos os camaradas sob o seu comando, no regresso a Portugal. Infelizmente morreu-lhe um soldado, penso que num acidente, e esse camarada ficou pirado, não aguentou o choque e teve que ser evacuado por psiquiatria.
Nunca falei contigo, não te quero classificar ou julgar, mas talvez tenhas sofrido um pouco das minhas dúvidas e incertezas e da dor deste camarada, sobre a utilidade ou inutilidade dessa guerra. Talvez no teu intimo tenhas sangrado, quando viste um camarada, sob o teu comando, branco ou africano morto ou ferido. Somos sensíveis aos males dos nossos companheiros, sentimos responsabilidade pelos que estão sob o nosso comando, transportamos ainda essa dor que nos atingiu a todos. Nós os operacianais não fizemos a guerra dos mapas com soldados sem cara e sem nome, os nossos soldados tinham nome, tinham família, tinham passado, tinham personalidade, tinham emoções. tinham medo, coragem, pediam-nos contas pelos nossos erros e fragilidades.
Nós todos, alferes, furriéis, cabos, soldados, de corpo e alma, eramos carne para canhâo. Os estrategas, os majores, os coroneis, os generais, como em todas as guerras, ficavam nos seus gabinetes, a mover as peças, dessa guerra que os divertia, desculpem, os ocupava, sem os magoar.
Amigo Domingos envio-te um grande abraço, ao camarada alferes evacuado por psiquiatria, e um grande abraço a todos os operacionais que tanto sofreram e alguns ainda têm no coração o mapa da Guiné manchado de mágoas.

A todos um grande abraço

Francisco Baptista