sexta-feira, 13 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14359: Notas de leitura (691): “As Mulheres e a Guerra Colonial”, por Sofia Branco, A Esfera dos Livros, 2015 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Março de 2015:

Queridos amigos,
Os elogios são merecidos, é uma reportagem em grande ecrã, relevam-se os principais tipos de protagonistas, nada nem ninguém fica descriminado nestas mulheres que têm pano de fundo histórico, valores, princípios e afetos.
Há casos visados que conhecemos bem, outros não tanto. Mulheres marcadas pela educação, pelo quadro ideológico, pela extrema dedicação, do princípio ao fim, e muitas delas ainda hoje vivem em estado de guerra, assediadas pelo fantasma do stresse pós-traumático.
E, obviamente, vistos no espelho, estamos todos lá, em todas as fases da guerra. Não sei o que são livros indispensáveis, mas este é verdadeiramente indispensável na marcha dos corações e dos agradecimentos pela ternura recebida ou vivida.

Um abraço do
Mário


As Mulheres e a Guerra Colonial, por Sofia Branco

Beja Santos

Tanto quanto me é dado saber, é a mais longa e detalhada viagem ao comportamento das mulheres durante a guerra, degrau a degrau, e numa rotação prismática onde vemos apoiantes entusiásticas, mães, mulheres e namoradas resignadas que esperam vestidas de preto os seu entes queridos, mulheres de oposição, mulheres que acompanham militares, enfermeiras paraquedistas, em “As Mulheres e a Guerra Colonial”, por Sofia Branco, A Esfera dos Livros, 2015, estão inúmeras formas de representar, de pontuar, valores, sentimentos, até o próprio termómetro com que se media o entusiasmo e depois o desfalecimento, na hora do regresso com a descolonização.

Veja-se o Traje do Ultramar em Glória do Ribatejo: “Quando os homens partem para a tropa, mães, mulheres ou namoradas passam a vestir roupa mais escura, enquanto pagam promessas a Nossa Senhora da Glória, que segue para as províncias ultramarinas em formato de postal para guardar na algibeira da farda militar. Isenta de serviço militar até à segunda metade do século XIX, Glória do Ribatejo adota um conjunto de rituais relacionados com a guerra. Os rapazes estreiam fato na inspeção militar, levam lenços oferecidos pelas namoradas, seguem cantando e tocando concertina, na camioneta, até Salvaterra de Magos. As glorianas preparam os comes com que vão recebê-los na volta”.

Temos aqui o MNF – Movimento Nacional Feminino em corpo inteiro, com ideologia e também sentida dádiva, exemplos de abnegação não faltavam.

Há as mulheres que abraçaram a clandestinidade e que protestam contra a guerra colonial e as que partem para o exílio com os seus companheiros, permanecerão em Paris, Londres, Lovaina, Lund, entre tantos outros destinos. E há as mulheres que ficam em franca oposição, manifestando-se no catolicismo de vanguarda, como Conceição Moita. As mulheres dos militares sempre com o credo na boca, os maridos partem para missão e às vezes não haverá regresso. Há até aquelas, como Dulcinea que acompanham o marido em Bissorã, experimentou uma flagelação brutal. Em Junho de 74 ela regressa a Lisboa, Henrique regressa a Bissorã mais um mês, despedida dolorosa: “Despede-se à pressa, com tristeza, de Inhatna Biofa, o rapaz órfão da guerra, de origem Balanta, que o acompanhara sempre, para todo o lado. Começara por trabalhar para a tropa em troca de comida, mas era tão especial que Henrique tomara-o por seu mainato. Acompanhava-o para todo o lado e era tratado como membro de família.
Henrique deixa-lhe o relógio Citizen, com cronómetro e de ponteiros brilhantes que se iluminam de noite”.

Há a história de Deonilde e Manuel Joaquim, dois anos de separação, ele regressa em 1967 e traz um órfão de guerra: “Quando o paquete Uíge chega ao Cais da Rocha do Conde de Óbidos, o menino vem fardado, segurando uma bandeira nacional”. A mãe de Manuel Joaquim embevece-se com a criança e apresenta às vizinhas a prenda que o seu Manel lhe trouxera da Guiné. Manuel e Deonilde casam e o menino será educado por a família, terá duas irmãs brancas. O menino, de nome Adilan, voltou à Guiné em 1978. Ficou desiludido, era já um “africano com educação europeia”. E há Natércia e Fernando Salgueiro Maia. Em Maio de 1973, quando Salgueiro Maia está pronto para regressar à metrópole, tem que partir numa emergência, Guidage está cercada: “Natércia fica 18 dias sem notícias de Fernando. Há chegada, Fernando repara como Natércia envelhecera”.

Há as filhas dos militares de carreira, acompanhando a guerra do princípio ao fim. Há as mulheres que pressentem o desastre, caso da Manuela, mulher de Fernando José, aviador. O General Fernando Neto bate à porta da casa de Manuela em 7 de Março de 1974, ela está a ajudar a filha mais velha nos trabalhos da escola. O sexto sentido feminino dá-lhe para perceber tudo, o General abraça-a e comunica que Fernando José fora abatido por um tiro direto, durante uma operação em Tenente Valadim, na província do Niassa.

Para muitas mulheres, a guerra não acabou com a descolonização, ficam os feridos, os deficientes e há o stresse pós-traumático, Sofia Branco é bem-sucedida a percorrer todas as tonalidades da palheta, ao sintetizar contextos históricos, usou de extrema correção não descriminando quaisquer protagonistas, as madrinhas de guerra, as que trataram deles quando voltaram, mutilados e traumatizados. E a autora tem razão quando nos diz: “Cada uma à sua maneira, as protagonistas deste livro foram pioneiras, desbravando caminhos outrora vedados às mulheres. Mães, irmãs, filhas, amantes, companheiras, amigas, muitas mulheres viveram a guerra colonial como se também elas tivessem sido mobilizadas. Depois da guerra, também para elas nada foi como dantes”.
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14343: Notas de leitura (690): "Neste mar é sempre inverno", romance de Tibério Paradela (edição de autor, 2014) (Parte I): a epopeia da pesca do bacalhau à linha, em plena guerra colonial (Luís Graça)

3 comentários:

Bispo1419 disse...

Meus caros camaradas e amigos:

"Quando o paquete Uíge chega ao cais da Rocha do Conde de Óbidos o menino vem fardado, segurando uma bandeira nacional.", transcreve do livro o meu muito estimado camarada Beja Santos.

Se "fardado" quer dizer "vestido à militar", isto não é verdade. Sofia Branco interpretou mal as palavras de minha esposa ou esta passou mal a informação.

Oficialmente com seis anos de idade, o menino veio à minha responsabilidade. Paguei a sua passagem para viajar comigo mas acedi a que fizesse a viagem com os soldados, a veemente pedido destes.
Sim, é verdade, quando desembarcou segurava ao ombro o pau com uma pequena bandeira nacional, mas vinha vestido "à civil": calças e sapatos pretos, camisola branca de malha fina e blusãozinho de cabedal preto, roupas que lhe comprei em Bissau. Na pág. 247 do livro há fotos dele com essas roupas, fotos tiradas pouco tempo depois da sua chegada a casa de meus pais.


Nunca por nunca (e então naquela altura!) eu permitiria que se vestisse o menino com miniaturas de farda militar. Eu sei que para muita gente era (é) até muito "giro" mas comigo tal coisa não funciona. Repugna-me eticamente e por isso me sinto levado a comentar aqui a frase acima transcrita.

Este erro factual não tem qualquer importância no contexto do livro "As Mulheres e a Guerra Colonial". No entanto, preciso de fazer esta correcção já que a ideia de "menino fardado", do "militarzito mascote", sempre me incomodou (e incomoda).

Um dos motivos que me "ajudaram" a decidir trazer comigo o menino Sarrico (nome por que era então conhecido o meu Zé Manel) foi o meu incómodo em o imaginar como uma possível futura mascote da tropa portuguesa. O que seria o mais provável se o tivéssemos deixado em Mansabá, terra estranha para ele, e perdidos todos os laços afectivos que o ligavam à nossa CCaç.1419.

Menino fardado, não!

Saudações amigas
Manuel Joaquim

Luís Graça disse...

"Menino fradado, não"!... Como eu entendo o teu embaraço, mais do que isso, incómodo e sobretudo contida indignação...

De repente, veio-me à lembrança a "mascote" (sic) de Bambadinca, um miúdo como o Adilan, perdido e encontrado nos acasos da guerra, a quem chamavam o Tchombé... Fardado a rigor, ao cuidado de um qualquer sargento da CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Vivia connosco na messe de sargentos... Perdi-lhe o rastro...

Fica aqui o teu reparo. Por certo que a Sofia cometeu um lapso. Em 49 histórias, tão ricas de detalhes e tão densas de emoções, é um lapso desculpável, mas que ela deve corrigir numa próxima edição.

Antº Rosinha disse...

Uma coisa que incomodava os "brancos antigos" quando a tropa foi em 1961 "para Angola e em força" era um tipo de paternalismo da parte de muitos militares, quer soldados, quer oficiais e furrieis.

Desde crianças "mascote" "pretinho ao colo"e pior ainda, e que perdura hoje, que "estamos aqui, porque o branco trata mal o preto", todo esse paternalismo, que em dois anos de arame farpado e sofrimento deturpou bastante historicamente e até intencionalmente, uma certa imagem do que foram aqueles anos de guerra de defesa do nosso Ultramar, para evitar todas as consequências que se previam nefastas para África e Europa.

É esse paternalismo caricato ingénuo e até ignorante, que não pode ser colado a Manuel Joaquim, que assumiu pessoalmente e familiarmente uma grande responsabilidade na vida dele.

Aquele paternalismo de que falo "do pretinho ao colo", que os africanos dispensam, mas tal como os "brancos antigos" também, os africanos não sabem como combater.

Esse paternalismo do "pretinho ao colo" ficou mais refinado após as independências, pelas "cooperações" desde a ONU até os Europeus do Norte, e até de certos ingénuos guevaristas portugueses e muitos terceiro-mundistas.

Casos do Manuel Joaquim não são para a fotografia, e houve muitos milhares de casos anónimos, quer de civis, quer de militares, principalmente na hora da "ponte Aérea" dos Retornados.