sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14276: Notas de leitura (683): “De Passo Trocado ASP”, por Carlos Vale Ferraz, Bertrand Editora, Fevereiro de 1985 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Maio de 2014:

Queridos amigos,
Temos já uma literatura que se espraia entre a recruta e a especialidade mas cujo núcleo é a guerra e os seus fantasmas, essa literatura parece deter-se propositadamente no regresso, a partir daí faz-se um silêncio púdico. Talvez porque esses regressos tenham sido em larga medida dolorosos, ziguezagueantes, confusos, tudo mudara em nós e as pessoas do nosso ambiente incomodavam-se com as histórias que trazíamos de longe.
ASP veio da Guiné e apanhou o 25 de abril em cheio, foi alterando os seus esquemas mentais e optou por uma situação extrema. É a história de um de nós, que andou sempre de passo trocado.
Um convite à literatura dos regressos, praticamente inexistente.

Um abraço do
Mário


ASP, uma história de quem regressa da guerra e vive de passo trocado

Beja Santos

O romance chama-se “De Passo Trocado ASP”, quem o escreveu foi Carlos Vale Ferraz, autor de “Nó Cego” e “Soldadó”, aqui largamente versados. Ao que se sabe, dado à estampa pela Bertrand Editora, em fevereiro de 1985, não obteve a notoriedade dos títulos atrás citados.

O autor fala-nos concisamente da trama, com malícia e ironia: “ASP é António Silva Pereira um homem que regressa duma guerra que mal acaba em África e mal recomeça ao pé da porta. Um homem que, sempre forçado pelas circunstâncias, rebenta as amarras que o ligam à segurança do cais e parte sempre para mais longe quando gostaria de permanecer onde está. Dentro e fora. Longe e perto. Receoso e esperançado. Um homem que gostaria de ser outro e viaja num barco fustigado pela tempestade e do qual se julga terem já saído os ratos e alguns passageiros clandestinos.
A história que aqui se conta é a de ASP, de mais ninguém! Não é a do barco, nem dos ratos, nem dos pilotos, nem mesmo dos passageiros clandestinos. É simplesmente a história de quem foi a guerras que não declarou, viveu como pôde os dias em que são férteis as revolução e se cruzou com os acontecimentos de passo trocado”.

É sabido que a literatura de guerra anda preferencialmente centrada na comissão militar propriamente dita, na experiência do relator e no registo do ambiente que o cerca; em muitos casos, há descrições preambulares, conta-se a recruta e a especialidade e o tempo que precede a mobilização e os eventos associados à partida, num barco ou num avião. O que é raro neste ramo literário é contar o que se passou depois, mal se regressou. Não é difícil perceber porquê, foram tempos de desconforto, ninguém percebia muito bem a nossa história bélica africana, aquelas colunas e emboscadas, aquele viver em aquartelamentos com gerador ou petromax, aquelas flagelações e aqueles golpes de mão, quem nos ouvia não podia compreender, tratava-se de um universo desconhecido, era uma guerra que não lhe entrava pelas portas adentro, vinha filtrada pelos meios de comunicação social, em suma era um desassossego todo aquele relato, toda aquela exaltação que trazíamos ainda nos poros, no coração e na boca.

Em termos arquiteturais da escrita, ASP é um cidadão que bastante protestou na sua jornada universitária, a tal ponto que engenheiro foi malhar na infantaria. No regresso, é prontamente acomodado pela ordem vigente, passa a circular no meio de comendadores da indústria. Trouxe uma grande amizade da guerra, o Picolo, “Herdeiro de família com origens perdidas no tempo”. Cai no meio de uma festa tipo bacanal em Cascais, Picolo brada pela conversão: “Irmão, estamos aqui como passageiros da classe de luxo do Titanic, enquanto ele se afunda. É o nosso último baile, o adeus ao mundo em que nascemos e fomos criados. Quando soarem as campanhas de alarme e o comandante anunciar que o navio está a ir a pique, então cada um de nós descerá aos decks inferiores em busca das baleiras de salvamento”.

Combateram na Guiné, na Companhia de Caçadores Número Mil Oitocentos e Tal, foi aí que se afeiçoou a Picolo Nunes de Almeida, eterno brincalhão, menino-bem, finalista de Direito e repetente vezes sem conta. Quando desembarca, deu-se o 25 de Abril, tem a família à espera, vai de Mercedes para casa. O sogro é o comendador Mattos, veio de trolha, fez-se a pulso. O compadre Alcides, também comendador, dá-lhe lugar como engenheiro-chefe da Metalomecânica Alcides. Depois de umas férias no Algarve, pagas pelo sogro, apresenta-se no trabalho e é apresentado aos quadros, a agitação já reina na fábrica. ASP vai falar aos trabalhadores: “Tinham o aspeto que se imagina, mãos pretas de óleo, barbas crescidas e fato-macaco como segunda pele. ASP foi reparando nos seus braços tatuados a tinta azul: Angola – 1961/63; Guiné – 1963/65; Moçambique – 1965/67, o ferro a marcar o ano e o local da comissão na guerra. Por vezes, acrescentavam pormenores, coração atravessado por uma seta e amor de mãe, em legenda; um mapa, o nome da sua tropa, as mascotes, gatos do Niassa, cágados de Buruntuma, cobras de Mueda, escorpiões daqui e dali, desejos de ir e voltar. ASP havia passado por alguns desses buracos da manta rota do império e não pode evitar sentir por eles uma certa irmandade”.

O comendador Alcides está fulo com o despautério de tanta petição, querem saber de dinheiro, querem reuniões regulares, há ameaças geladas de greve. ASP encontra uma saída no meio da alta tensão, sugere que se constitua uma comissão de representantes dos trabalhadores e dos quadros, e que se apresente um relatório, a CEAR – Comissão Encarregada de Apresentar o Relatório. Alcides está de cabeça perdida quando lhe anunciam que vem à fábrica pessoal do sindicato para uma sessão de esclarecimento, não foi fácil acalmá-lo nem ao operário a quem ele arrancou um autocolante estampado no peito. Picolo funciona como uma consciência de ASP, as recordações da Guiné vêm sempre ao de cima. E acabamos por ser introduzidos no ambiente da fábrica, é-nos criada uma certa familiaridade com os quadros, a secretária de ASP, os representantes dos trabalhadores. Vem o 28 de setembro, a dinâmica revolucionária acelera. As discussões com o sogro sobem de tom. Alcides abandona a fábrica, ASP fica ao leme, vivem-se tempos exaltantes, ninguém conhece a verdade do amanhã, Fred Mascarenhas entra em cena, é o protótipo do adaptativo, o molúsculo que tem sempre a cor da ocasião.

Chegou o tempo da reconversão, ASP procura levar a fábrica a bom porto, os militares vão chegar, chegou a hora da intervenção, ASP está convicto de que age bem, adere à revolução, passou a acreditar nela. Conversa com Picolo, este graceja, desengana-o, vem para aí um refluxo devastador. A sua vida familiar é quase neutra, entretanto nasceu-lhe um filho. A mulher vai ser fulminada por um cancro, felizmente que existe o trabalho, os operários acreditam nele, no seu esforço por manter a fábrica de pé. E veio depois o descarrilamento, ASP, no termo da revolução, é sujeito a inquéritos, suspenso e depois readmitido, se bem que marginalizado. Gradualmente, ASP entra na clandestinidade, processo que Carlos Vale Ferraz manuseia com o extremo cuidado, dando-nos os claros-escuros da nova personalidade desse ASP que não acredita nos novos triunfadores e aceita fazer a revolução com bombas e tudo. A clandestinidade é absoluta, ASP desapareceu num bairro da lata, mudou de identidade, trabalha numa oficina clandestina, deixa mesmo de ter acesso ao filho, educado pelos sogros. Com todas as cautelas, visita o cemitério onde vai “conversar” com a defunta mulher, sente-se já muito esquecido da antiga personalidade e dúvida que consiga adaptar-se à vida à face da lei (…) ASP abandona-se a esse tempo de águas paradas no rio, fumos serenos de fábricas a fechar, sons de ecos infinitos. Afinal, toda a sua vida tem sido uma progressão contínua de passo trocado. Sem nenhuma dor na consciência, constata que fora assim, deste estudante inconformista, passando por resignado gestor de fábrica, até revolucionário. Em “De Passo Trocado ASP”, Carlos Vale Ferraz deu-nos um poderoso fresco social e humano mesclado de densidade dramática, da atmosfera cínica e cruel em que se movem os alcatruzes da nora, entre as escolhas políticas e as do coração.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14264: Notas de leitura (682): "Guerra Colonial - Fotobiografia", por Renato Monteiro e Luís Farinha, Publicações D. Quixote (Mário Beja Santos)

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