segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14095: Notas de leitura (662): Eu e a minha burra, sozinhos, mais a nossa própria sombra... Recordações da infância (Fernando Sousa, natural de Penedono, autor de "Quatro Rios e um destino")


Penedono > Castelo de Penedono >  28/12/2011. Vídeo (0' 35''). Homenagem ao nosso camarada Fernando de Jesus Sousa, natural de Bebeses, Penedono



Penedono > Castelo e Pelourinho de Penedono  > 28/12/2011 >  Visita que fiz às Terras do Demo há três natais atrás... (LG)


(...) Celebrada como uma das mais belas vilas de Portugal, assim como o seu airoso e esbelto castelo pentagonal (ou hexagonal imperfeito ?), erigido em data bem anterior ao dealbar da Nacionalidade, o é entre os seus pares, mantem inalterado o perfil medievo do seu centro histórico, já que as obras de restauro e edificações ulteriores, incluindo as mais recentes, têm, como ponto de honra, respeitar escrupulosamente o traço arquitectónico e o material granítico da região, nele se integrando de forma coerente e harmoniosa.


Penedono, concelho do distrito de Viseu
com cerca de 133 km2 e menos de 3 mil
habitantes (censo de 2011). Um dos mais antigos
de Portugal: o seu foral remonta a 1055.
Fonte: Wikipedia
Para além do seu altivo pelourinho de gaiola, fronteiro ao Castelo, com a qual delineia uma perspectiva estética de rara elegância, Penedono exibe, ainda, um património de atractivos múltiplos, consignado nas suas seculares igrejas e capelas, recheadas de arte sacra nas suas expressões plásticas e de paramentaria, a que se junta o austero e majestoso Solar dos Freixos, há poucos anos recuperado para acolher, condigna e funcionalmente, os Paços do Concelho e outros serviços da administração pública central e local.

Rezam a tradição e as crónicas que, aqui, teve berço Álvaro Gonçalves Coutinho, o insigne "Magriço", passado à imortalidade por Camões no canto VI dos "Lusíadas", quando o vate descreve e enaltece, ao ritmo épico dos decassílabos, o seu protagonismo exemplar de valentia e cavalheirismo na façanha, ímpar, cometida à frente dos denominados "Doze de Inglaterra", em chãos estranhos e longínquos da loira Albion. (...) 

(Excerto de belíssimo texto de Rui Ferreira Bastos > Penedono e o seu concelho, inserido no sítio da Câmara Municipal de Penedono)


Foto e vídeo: © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados.

1. Pequeno excerto do livro "Quatro rios e um destino" (Lisboa, Chiado Editora, 2014) (*), enviado pelo autor, o nosso camarada Fernando Sousa, no passado dia 28. 

O livro, de 302 pp. pode ser adquirido diretamente ao autor, através do email: fernandodjsousa@gmail.com 



Recorde-se  alguns dados biográficos do Fernando Sousa:

(i) nasceu a 24/12/1948, na véspera de Natal (daí chamar-se Fernando de Jesus...);

(ii) terra natal: Bebeses, freguesia de Póvoa de Penela, concelho de Penedono, distrito de Viseu;

(iii) esteve no TO da Guiné, como 1º cabo at inf, na CCAÇ 6 (Bedanda, 1969/71);

(iv) foi gravement6e ferido por uma mina A/P em julho de 1971;

(v) é DFA (Deficiente das Forças Armadas);

(vi) está escrever um segundo livro.


Excerto, do livro "Quatro Rios e um Destino"  (Capítulo 1 - A minha infância),  pp. 28-30. 


(...) Eu tinha apenas dez anos, para ser confrontado com uma escolha que jamais poderia recusar. Era uma ordem para cumprir, tinha que ser levada a sério, no sentido de moldar todo o meu corpo ao trabalho.  De tanto cavar, gastei essa enxada em pouco tempo e depressa foi substituída por outra ainda maior.

Capa do livro do Fernando Sousa
Voltando à minha companheira inseparável, a simpática burra, com ela percorria várias aldeias, umas mais próximas, outras a distâncias de vinte quilómetros, atravessando ribeiras e o rio Torto, subindo montes, descendo a vales bem profundos, indo mesmo até ao limiar das margens do rio Douro. Partia de manhã bem cedo, para regressar quase de noite por autênticas veredas, que essa burra conhecia bem melhor que eu, porque comecei com apenas nove ou dez anos. Era ela que me conduzia a mim,   por aqueles trilhos.

Foram muitas as viagens, porque a minha mãe, Ilda da Soledade Moutinho, era uma excelente tecedeira, excelente mestra que deu formação a algumas raparigas daquela região. Primava nos trabalhos de tecelagem e, como tal, por aqueles arredores tinha sempre muito trabalho. Era este o seu ganha-pão, era eu o seu mensageiro, o seu encarregado de negócios, o seu transportador eficaz que, de forma abnegada, levava a obra feita e, no regresso, trazia os materiais para novos trabalhos e indicações de como as clientes queriam o novo trabalho feito.

Quantas vezes, faltei à escola para executar estas tarefas! Quantas vezes, ao serão, à luz da velha candeia a azeite, e mais tarde, a petróleo, ajudei a minha mãe a urdir a lã, a desfiar o linho ou a estopa e fazer os novelos na dobadoura, preparar o tear para ao outro dia começar nova obra. Era assim naquela casa. Tudo vinha do trabalho árduo, que executávamos com alegria!

Com esta companheira, autêntico burro de carga, passei noites inteiras a transportar molhos de centeio, do local onde era cultivado, a que chamávamos Cales. Meu pai carregava a burra, que, depois, eu conduzia até à eira, local próximo da povoação, onde seria malhado. A minha mãe descarregava. Neste trajecto, um ponto distante do outro quatro a cinco quilómetros.

Este era um trabalho que tinha de ser executado de noite, porque, se fosse de dia, com o calor, o grão saltava da espiga, tornando inútil todo o trabalho.

Cabia-me a mim, sozinho com a pobre burra, naquelas noites de lua cheia, noites em que o luar tinha mais esplendor, iluminando o céu e a terra, luar que construía segredos debaixo da ramagem de cada árvore, que parecia mexer-se à medida que me aproximava ou uma aragem suavemente e muito ao de leve lhe tocava, como que reflectindo movimento a coisas estáticas, saltando-me aos olhos apenas as imagens quase todas assombrosas, deixando transparecer imagens fantasmagóricas, aterradoras, imagens de todas as formas e feitios, consoante a minha imaginação e os medos deste grande homem com sete, oito e nove anos as interpretavam. Sombras essas que deixavam em mim a sensação de que me seguiam os passos e, no regresso, ali se mantinham quietas e firmes, esperando a minha passagem, para me aterrorizarem.

Panorâmica de Bebeses. Cortesia da
 junta de freguesia de Póvoa de Penela,
Penedono
Nesses trajectos, durante toda a noite, era frequente cruzar-me com aves nocturnas que por ali abundavam, tais como noitibós, mochos, as grandes corujas e morcegos. Nestas idas e vindas, o silêncio da noite era apenas interrompido pelo latir de raposas, pelo ladrar de cães nos povoados, que, pela distância, mal se conseguiam vislumbrar, e pelo barulho destas frágeis sombras em andamento constante e contínuo, levantando o pó do chão, fazendo a terra gemer sempre que estas duas sombras o pisavam.

As idas e vindas sucediam-se à medida e do tamanho da noite, daquelas noites quentes do mês de Julho, atravessando pinhais, soutos de castanheiros e tantas outras árvores mais. Eu e a burra, sozinhos, mais a nossa própria sombra, subindo o monte e descendo ao vale profundo, atravessando a ribeira despida de água, apenas com o reflexo das suas próprias sombras nas correntes da minha imaginação, sempre caminhando até o dia nascer.

Com o nascer do sol chegava a hora de ir dormir, dar descanso ao corpo deste menino homem e sossegar o meu frágil cérebro. Tentar compreender e interiorizar que, naquela noite, não houve nada mais que umas inofensivas sombras, às quais a minha imaginação dava demasiada importância.
Tinha que crescer desta forma e interiorizar, porque era assim e foi desta forma, ao longo de séculos, que os meus antepassados por aquelas paragens se fizeram homens valentes, sem medos para enfrentarem aqueles e outros fantasmas criados apenas na imaginação, em que todos os seres são férteis.

Guardo estas e outras recordações dessa infância, dessas passagens que nesse tempo eram tidas como normais, porque era assim que os homens por lá nascidos e criados se formavam, enfrentando os seus próprios medos, superando-os, ou aprendendo a viver com eles. (...)

______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 21 de novembro de  2014 > Guiné 63/74 - P13923: Notas de leitura (652): “Quatro Rios e um Destino”, por Fernando Sousa, Chiado Editora, 2014 (Mário Beja Santos)

(...) É um livro, a vários tipos, raro. Raro pela confidência, raro pelo filtro que o autor se impõe quanto ao sujeito da memória: a infância, a recruta, a especialidade que culmina, praticamente, com a convocatória para a guerra.Não se sabe porquê, desembarca em Luanda e é direcionado, de supetão, para a Guiné, viaja até Bedanda.

Não se perde em considerandos nem faz crónica da guerra, regista estimas e chega depois a hora do sinistro que o transfigurou, até hoje. Impressiona quando escreve sobre os guineenses, captou-lhes a ternura, o gosto pela música, a afabilidade.

Temos aqui um livro que é também um grito de revolta, é alguém que superou o pesadelo e não o esconde. É um livro raro, encontrou um caminho inesperado depois da agonia de se ver sem duas pernas, venceu o destino. (...)

(**) Último poste da série > 29 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14093: Notas de leitura (661): “Guiné 1966, reportagens da época”, edição de autor de Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887 (1) (Mário Beja Santos)

5 comentários:

Anónimo disse...

Fernando Sousa

Gostei muito deste texto.
Somos vizinhos pelo nascimento, pois Foz Côa tem "fronteira", a sudoeste, com Penedono.
Um abraço
Alberto Branquinho

Luís Graça disse...

Em boa verdade, antes de irmos para a Guiné, pertenciamos a outros lugares... Cada um de nós veio do seu sítio... Temos falado pouco (ou quae nda) sobre as nossas origens, desde a terra á família, a infância, a adolescência... Não é obrigatório, e não é fácil...

Anónimo disse...

Caro Fernando:
Belíssima narração de uma cena da vida campestre onde nos inteiramos de como se vivia, até para além da primeira metade do Séc.XX. Era assim Portugal do interior pobre, um Portugal que teve que procurar o pão por outras paragens (Françã, Suiça,Alemanha E.U. etc. Um Portugal de muito sofrimento.
Carvalho de Mampatá.

Anónimo disse...



Amigo Fernando Sousa:

Sou da tua geração e como tu um filho de terras altas e pobres que produziam mais urze, tojo, estevas e giestas do que pão ou batatas. A miséria era grande, mas a vontade de viver era maior.
Como eu te entendo meu irmão!
Mas confesso que na minha aldeia transmontana nunca conheci um jovem tão jovem como tu a percorrer montes e vales, por tão longas distãncias.
Durante três anos,depois de fazer oito anos, eu andava seis kms a pé para ir a uma aldeia vizinha antes das nove horas quando começava a escola. Seria fastidioso estar a contar agora quais os motivos.
Confesso também que noutras circunstâncias, tive que lutar para vencer os medos, com que a imaginação nos ensombra quando a noite cai. Tal como tu senti a chuva forte nos invernos frios a cair do céu e a escorrer com força nos caminhos, pelos meus pés descalços ( muitas vezes com os sapatos ao ombro). Tal como tu, senti os trovões fortes e raios que rasgavam os horizontes e como tu decidi mentalmente que eles não matavam ninguém,para não ter medo.
Tu terás sido dos mais sacrificados. Mas nas nossas terras e no passado, foram tantos e tantos os milhares de sobreviventes. Em levas sucessivas e periódicas muitos abalaram para os quatro cantos do mundo, como diz o Carvalho. Portugal é um país imenso que se espalhou pela Terra inteira.
Gostei muito desta tua prosa bucolica que tem a nostalgia de um conto de Eça de Queiroz e me faz lembrar tanto estórias desse grande escritor português da Beira Alta, Aquilino Ribeiro.
Ao ler-te senti saudades dessas grandes amigas, que foram para os netos da minha mãe, a avó e a burra da avó. Tantas vezes a burrinha transportou a avozinha no caminho da horta de Lamas e como os netos e netas gostavam tanto desse transporte tão doce, tão suave.
Obrigado camarada!

Bom Ano e um grande abraço

Francisco Baptista

Antº Rosinha disse...

Este retrato de Fernando Sousa, sobre o mundo rural, no tempo das super habitadas aldeias e vilas de Portugal, era o mundo que já estava em vias de desertificação acelerada nos anos 40.

Ainda em 2000 havia ovelhas a ser expulsas no Tagus Park em Oeiras.

Afinal era muito fácil e rápido acabar com aquele mundo rural sem luz, água, saneamento básico (casa de banho) e sem amigos dos animais, antes pelo contrário até os carregavam com molhos de trigo.

Para que é que estivemos 1048 anos para acabar com problemas que se resolveram em pouco tempo?

E ainda nos anos 40 havia teimosos a fazer escolas primárias naquelas aldeias rurais, já era mesmo dar "murro em ponta de faca".

Fernando Sousa exemplifica como foram criados a maioria os soldados e mesmo alguns oficiais e sargentos portugueses que nasceram em 30 e 40 do século anterior a este.