sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13747: Notas de leitura (642): “Libertação Nacional - Manual Político do P.A.I.G.C.”, com intervenções de Amílcar Cabral, Edições Maria da Fonte, 1974 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2014:

Queridos amigos,
É um manual político altamente esclarecedor.
O pensamento de Amílcar Cabral é omnipresente, não há aqui uma linha de qualquer outro dirigente do PAIGC. Percebe-se como todos os colaboradores guineenses com os portugueses iam ser perseguidos ou destruídos, está taxativamente escrito; a pequena burguesia teria que fazer uma escolha decisiva: pôr-se ao lado do PAIGC e ganhar consciência revolucionária ou suicidar-se como classe; matraqueia-se, a propósito e a despropósito, a unidade da Guiné com Cabo Verde; o pendor socialista não é iludido, pelo contrário, é vangloriado.
Não se pode fazer a história da formação ideológica do PAIGC sem ler este manual, entre outras coisas dá para perceber que fora do pensamento de Amílcar Cabral havia o deserto de ideias.

Um abraço do
Mário


Manual político do PAIGC

Beja Santos

Em julho de 1974, as Edições Maria da Fonte davam à estampa o primeiro volume do manual político do PAIGC, documento do maior relevo nesta estrutura ideológica, já que era apresentado como de grande utilidade para os comissários políticos e para os quadros do Partido no seu trabalho junto das massas. Para que não houvesse margem para equívocos, é também esclarecido que a maior parte do documento se baseava em intervenções de Amílcar Cabral. O manual era apresentado sob a forma de perguntas e respostas, avançava-se com elementos de caráter económico quanto à economia da Guiné e Cabo Verde, explicava-se como funcionava a economia portuguesa e como esta, então, citamos, “está sob o domínio dos monopólios e de baixo da mão de ferro da grande burguesia nacional portuguesa, cujos interesses se identificam com o fascismo e o colonialismo”. A grande consigna para este manual, e aqui cita-se Amílcar Cabral, é a de “exigir aos responsáveis do Partido que se dediquem seriamente ao estudo, que se interessam pelas coisas e problemas da vida e da luta no seu aspeto fundamental, essencial, e não apenas nas suas aparências; devemos obrigar cada responsável a melhorar, dia a dia, os seus conhecimentos, a sua cultura, a sua formação política, convencer cada um de que ninguém pode saber sem aprender e que a pessoa mais ignorante é aquela que sabe sem ter aprendido”.

Este manual político ensinava muita coisa: a natureza da sua direção política; a sorte que estava destinada aos colaboradores dos colonialistas; a opção radical que cabe à burguesia guineense; a essência da luta de libertação nacional; a unidade da Guiné e Cabo Verde; a atitude do PAIGC face à unidade africana; do ponto de vista militar, como encarava o PAIGC a libertação de Cabo Verde, etc., etc.

Primeiro, o PAIGC é o instrumento de transformação da sociedade, para expulsar o colonialismo e para construir o progresso do país. A centralização política é indispensável. “É a direção do Partido que comanda verdadeiramente as coisas e, a cada nível, há uma direção estreitamente ligada ao nível superior”.

Segundo, há um número considerável de chefes, sobretudo da etnia fula, que se colocaram ao lado dos portugueses. Quando Amílcar Cabral afirma que aqueles que passam para o lado do inimigo, colaborando com os colonialistas portugueses, se destroem, quer dizer que eles deixam de ser gente do nosso povo, eles passam também a ser nossos inimigos e que os consideramos como colonialistas. E deixa-se um aviso seríssimo: “O destino dos colonialistas é serem destruídos na nossa terra. O mesmo acontecerá com aqueles que sendo africanos e gente do nosso povo resolveram trair os interesses do nosso povo. Não há qualquer dúvida de que uns e outros serão completamente destruídos”.

Terceiro, a pequena burguesia aceita impregnar-se do sentido revolucionário ou suicidar-se-á. Em Havana, Cabral procurara reformular a tese da classe revolucionária atendendo aos países que não dispunham de classe operária: “Os factos demonstraram que o único setor capaz de ter consciência da realidade da dominação imperialista e de dirigir o aparelho de Estado herdado dessa dominação é a pequena burguesia do país. A situação colonial, que não admite o desenvolvimento de uma burguesia autóctone e na qual as massas populares não atingem, em geral, o grau necessário de consciência política, antes do desencadeamento do fenómeno da libertação nacional, oferece à pequena burguesia a oportunidade histórica de dirigir a luta contra a dominação estrangeira. Para manter o poder que a libertação nacional põe nas suas mãos, a pequena burguesia só tem um caminho: deixar agir livremente as suas tendências naturais de emburguesamento e ligar-se necessariamente ao capital imperialista. Ora, tudo isto corresponde à situação neocolonial, isto é, à traição dos objetivos da libertação nacional. Para não trair estes objetivos, a pequena burguesia só tem um caminho: reforçar a sua consciência revolucionária. A pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de se suicidar como classe para ressuscitar como trabalhador revolucionário”.

Quarto, por que razão nos devemos preparar para uma luta popular de longa duração? O manual respondia que a luta podia terminar depois de amanhã, talvez no próximo ano, daqui a 4 ou 5 anos. E Cabral responde: “O que nós garantimos é que vamos dar golpes mais duros, mais mortais aos portugueses. Temos homens para o fazer, temos e teremos material para o fazer”.

Quinto, a essencialidade de se conhecer a realidade histórica do povo guineense e cabo-verdiano. O manual trata estes dois povos indistintamente como um país e o nosso povo. O sucesso da luta decorria do profundo conhecimento da realidade histórica (política, sociocultural e económica) do nosso povo na Guiné e em Cabo Verde. Para Cabral Guiné e Cabo Verde era a união histórica incontornável. O PAIGC tinha uma única direção para a Guiné e Cabo Verde. Mas a luta do PAIGC aposta também na destruição das outras colónias portuguesas e na colaboração com os povos africanos, asiáticos e latino-americanos que lutam contra o colonialismo.

Sexto, do ponto de vista militar, como encara o PAIGC a libertação do conjunto das ilhas de Cabo Verde? Cabral insistia em que a luta em Cabo Verde e na Guiné estava intimamente ligada, dizendo que as ilhas de Cabo Verde tinham sido povoadas por escravos levados até lá pelos portugueses. E alertava: “Desde há muito que estamos ligados pela história e pelo sangue. É imperioso evitar que os portugueses explorem a separação que há entre a Guiné e Cabo Verde”.

Sétimo, em que princípio se baseia a aceitação da ajuda daqueles que se dispõem a ajudar-nos? Cabral responde: “A nossa ética de ajuda é a seguinte: recebemos a ajuda de qualquer um que deseje dá-la. Esperamos que cada qual que deseje ajudar-nos dê aquilo que puder dar. Não admitimos condições à ajuda que recebemos. A contrapartida à ajuda que nos dão é a garantia que damos de utilizar essa ajuda o melhor possível, com a maior eficácia, para a libertação do nosso povo”.

Oitavo, por que é que os países socialistas são os aliados naturais do PAIGC? Cabral, por tática ou convicção refere a revolução socialista e os acontecimentos da II Guerra Mundial, considerando que o mundo tinha definitivamente mudado de face porque surgira o campo socialista. É um texto apologético destacando a União Soviética. Cabral observa que não há nenhum país socialista no mundo que mantenha qualquer espécie de sistema colonial. É por isso que estes países socialistas são os aliados seguros dos povos em luta pela sua total liberdade.

Nono, questionam-se as possibilidades de desenvolvimento económico da Guiné e Cabo Verde. Mais uma vez e sempre Cabral responde falando das grandes possibilidades económicas da Guiné: mancarra, óleo de palma, curtumes, madeiras, borracha, pecuária, arroz, frutas, pesca, caça e turismo; quanto a Cabo Verde, refere a indústria da pesca, as culturas agrícolas como o milho, o feijão e a mandioca, as potencialidades em lacticínios, etc.

O manual é ainda mais extenso, fala do Biafra, das razões que impediam Portugal de fazer neocolonialismo, da unidade nos movimentos de libertação das colónias portuguesas, etc., etc.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13727: Notas de leitura (641): “Para um conhecimento do teatro africano”, por Carlos Vaz, Ulmeiro, 1978 (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Antº Rosinha disse...

Beja Santos, esta é das mais características do caracter de Amílcar, e podemos analizar o resultado final das 9 (NOVE) ideias do Manual de Amílcar para a libertação e que parcialmente algumas e totalmente outras foram conseguidas.

(A minha análise vai entre parêntises).

1ª ideia-...“É a direção do Partido que comanda verdadeiramente as coisas e, a cada nível, há uma direção estreitamente ligada ao nível superior”. (conseguido totalmente até 1993 e parcialmente até hoje)

2ª ideia-...E deixa-se um aviso seríssimo: “O destino dos colonialistas é serem destruídos na nossa terra. O mesmo acontecerá com aqueles que sendo africanos e gente do nosso povo resolveram trair os interesses do nosso povo. Não há qualquer dúvida de que uns e outros serão completamente destruídos".
(Parcialmente tudo foi atingido, Régulos e fulas, alguns foram fuzilados, e os colonialistas foram substituidos todos por cooperantes, e ONG acabaram os patrões)

3ª ideia... A pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de se suicidar como classe para ressuscitar como trabalhador revolucionário”.(Esta foi fácil, até em Portugal aquilo que eramos funcionários públicos também passamos a ser "trabalhadores" da função pública)

4ª ideia-...“O que nós garantimos é que vamos dar golpes mais duros, mais mortais aos portugueses. Temos homens para o fazer, temos e teremos material para o fazer”. (Conseguido totalmente, até os Suecos desistirem e o Muro ser derrubado...não há bem que sempre dure...)

5º ideia-..."O PAIGC tinha uma única direção para a Guiné e Cabo Verde". (Quase se mantinha a mesma Bandeira, mas em 1980 acabou tudo mas esta ideia era a concretização daquilo que um dia se chamava o luso-tropicalismo).

6ª ideia-..."É imperioso evitar que os portugueses explorem a separação que há entre a Guiné e Cabo Verde”. (Aqui ele queria-se enganar a ele próprio...foi pena ter exagerado e ficado cego)

7ª ideia-..."A nossa ética de ajuda é a seguinte: recebemos a ajuda de qualquer um que deseje dá-la". (De facto o PAIGC aceitou tudo e não foi pouco, em nome do povo, mas este não contou para o efeito)

8ª ideia... "Cabral observa que não há nenhum país socialista no mundo que mantenha qualquer espécie de sistema colonial". (aqui Amílcar não se queria enganar, apenas queria enganar os outros companheiros).

9ª ideia-..."Cabral responde falando das grandes possibilidades económicas da Guiné: mancarra, óleo de palma, curtumes, madeiras, borracha, pecuária, arroz, frutas, pesca, caça e turismo". (Aqui, Cabral , como muitos dirigentes não adicionou a maior riqueza, que podem ser as pessoas).

Conclusão, a bandeira do PAIGC continua a flutuar em Bissau, mas na Praia já foi substituida por uma de Caboverde.

Joaquim Luís Fernandes disse...


Considero que esta cartilha de instruções políticas do regime de pensamento único, é em grande parte responsável pelo estado a que chegou a Guiné-Bissau, quatro décadas após a proclamação da independência.

Os crimes, fuzilamentos, perseguições, guerra civil, etc, têm aqui o seu fundamento. Já para não referir a castração intelectual de muitos dos quadros guineenses, incapacitados para desenvolverem um pensamento crítico próprio, com implicações na criatividade e na livre iniciativa. Tudo tem que vir da cúpula do partido e ai de quem ousar ter iniciativa própria.

Infelizmente constato que muitos quadros guineenses a residirem em Portugal, ainda estão marcados por este pendor ideológico e levam-no à prática.

E o povo, lá, sofre as consequências do sub-desenvolvimento. Tudo ao contrário do que fora prometido com a independência.

Entretanto, alguns guineenses da diáspora, vão-se safando muito bem, decerto com algum sacrifício. Alguns, são brilhantes quadros, com elevadas competências académicas e profissionais, além de boas pessoas , que é o mais importante.

Apesar dos pesares, eu acredito num futuro melhor para a Guiné-Bissau e para o seu martirizado povo. Irei tentar ajudar para que isso aconteça.

Joaquim Luís Fernandes disse...

Considero que esta cartilha de instruções políticas do regime de pensamento único, é em grande parte responsável pelo estado a que chegou a Guiné-Bissau, quatro décadas após a proclamação da independência.

Os crimes, fuzilamentos, perseguições, guerra civil, etc, têm aqui o seu fundamento. Já para não referir a castração intelectual de muitos dos quadros guineenses, incapacitados para desenvolverem um pensamento crítico próprio, com implicações na criatividade e na livre iniciativa. Tudo tem que vir da cúpula do partido e ai de quem ousar ter iniciativa própria.

Infelizmente constato que muitos quadros guineenses a residirem em Portugal, ainda estão marcados por este pendor ideológico e levam-no à prática.

E o povo, lá, sofre as consequências do sub-desenvolvimento. Tudo ao contrário do que fora prometido com a independência.

Entretanto, alguns guineenses da diáspora, vão-se safando muito bem, decerto com algum sacrifício. Alguns, são brilhantes quadros, com elevadas competências académicas e profissionais, além de boas pessoas , que é o mais importante.

Apesar dos pesares, eu acredito num futuro melhor para a Guiné-Bissau e para o seu martirizado povo. Irei tentar ajudar para que isso aconteça.

Luís Graça disse...

Mário:

Foi o Carlos Vinhal, teu dedicado editor nestes últimos anos, quem me chamou a atenção... Com esta recensão, acabas de atingir as mil (1000!!!) referências no nosso blogue...

Ora, mil referências ou marcadores são mil postes!... Ou até mais... O que num blogue, com 10 anos, e 13700 postes, é obra!...É mais de 7% do total da produção bloguística (não contando com comentários onde a tua participação é esporádica, senão mesmo meramente ocasional)!...

Tu és, reconhecidamente, um leitor compulsivo, uma trabalhador incansável, e um camarada indefectível... O teu contributo para este projeto de partilha de memórias e de afetos (que é o nosso blogue) é reconhecido pela larga maioria dos nossos leitores, bem como dos amigos e camaradas da Guiné.

Eles podem nem sempre concordar com esta ou com aquela nota de leitura das muitas centenas de livros e outros publicações que tens trazido aqui, relevantes para a documentação da presença histórica dos portugueses em África, em geral, e na Guiné, em particular. Mas ninguém te nega, mesmos os mais críticos, que és um homem de invulgar talento e cultura, e que continuas a dar provas de uma grande paixão por aquelça terra e aquela gente, onde e com quem passaste dois dos teus verdes anos. E onde casaste!... E aonde já voltaste!... E sobre a qual tens já vários livros publicados, da tua lavra, incluindo as tuas memórias de guerra, as memórias do "Tigre de Missirá"...

Julgo poder interpretar os sentimentos de muitos camaradas que te leem (e que não te conhecem pessoalmente, a maior parte deles, porque não és "homem de tabanca!...): estou-te (e a maior parte deles tmabém) grato pela tua já longa, leal e profícua colaboração no nosso blogue...

È o que me ocorre dizer-te, ao correr do teclado, neste ínício de tarde de domingo. Sendo tu um homem crente, tolerante e ecuménico, deixa-me evocar aqui Deus, Alá e os bons irãs, para que eles te acompanhem sempre, te inspirem e te protejam neste duro e derradeiro trajeto da nossa picada da vida... Muita saúde e longa vida, porque tu mereces tudo!

Luís Graça (mas também Carlos Vinhal e demais editores e colaboradoes deste blogue).