sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13474: Notas de leitura (620): “Direitos Civil e Penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau”, por Artur Augusto da Silva (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Fevereiro de 2014:

Queridos amigos,
Era timbre de todos os trabalhos de Artur Augusto da Silva explicar o homem no meio, a sua identidade, a sua consciência cultural. Sempre pedindo aos curiosos e estudiosos que procurassem ver o africano sem o olhar redutor do europeu, a modos do “civilizado” que busca interpretar o pobre aborígene, de tanga e descalço, um troglodita que precisa de ser trazido para o asfalto.
Desta feita, o objeto de estudo são os Mandingas e os Felupes.
O autor possuía uma curiosidade insaciável, a Guiné foi a suprema doação do seu trabalho.
Homem sensível, escreve na dedicatória deste livro: “À Clara, a melhor das companheiras, lembrando-lhe que tudo quanto faço a ela o devo”.
Trata-se de Clara Schwarz, aqui tão saudada no blogue.

Um abraço do
Mário


Direitos civil e penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau (1)

Beja Santos

Artur Augusto da Silva foi um conceituado jurista que deixou vasta bibliografia nos campos jurídico, literário, artístico, etnológico e etnográfico, nomeadamente os seus trabalhos sobre etnias da Guiné-Bissau continuam a ser um ponto de partida para curiosos e estudiosos. É o caso de “Direitos Civil e Penal dos Mandingas e dos Felupes da Guiné-Bissau”, 4.ª edição, DEDILD, Bissau, 1983.

Comecemos pelos Mandingas, um povo sempre viveu em regiões de savana, abertas ao ataque dos inimigos, cujos reis possuíram riqueza porque exploravam minas de ouro, chegando a possuir na corte um numeroso exército. O autor dá-nos um esquisso sobre a história dos Mandingas e a sua interceção com os diferentes grandes impérios africanos. Por exemplo, o reino dos Mandingas era tributário do Império Ganês, e no tempo de Sundiata Queita, aproveitando-se da fraqueza do suserano, atacou Gana, destruindo-a em 1240. Observa também o autor: “A capital do reino do Mali, dos Mandingas ou dos Malinqués, porque por estes três nomes é designado, parece ter sido a atual povoação de Cangaba, junto à nascente Baoulé, afluente do Senegal. Não longe desta povoação, existe a de Niani, na margem do Sankarani, afluente do Níger, e que também é apontada como a primeira capital do Império Mandinga”. Enfim, os Mandingas aparecem como portadores de uma civilização brilhante, dominaram os Estados vizinhos até ao Atlântico, o seu declínio começa em 1473 e no século XVI as invasões árabes dos Beni-Hassan, de Marrocos, levaram ao desmembramento do império. Praticamente os grandes escritores dos Descobrimentos falam dos Mandingas, caso de Duarte Pacheco, Valentim Fernandes, João de Barros e Álvares de Almada.

A progressão dos Fulas levou ao declínio dos Mandingas. No século XIX os Mandingas ocupavam as regiões de Farim e Gabu, em 19 de maio de 1867 os Fulas atacaram os Mandingas em Gan-Salá (também conhecida por Kansala), vencendo-os na batalha conhecida por Tura-bã. Passou o Gabu a ser uma dependência do reino Fula de Labé e os Mandingas aceitaram os novos senhores.

A expansão islâmica teve consequências de grande peso: a conquista de regiões que se muçulmanizaram e a fuga, para as costas oceânicas, das populações que não se queriam submeter. No Futa-Djalon, os Fulas desalojaram os Sossos, empurrando-os para a costa; estes, por sua vez, entraram em luta com os Nalus, obrigando-os a procurar refúgio na região costeira. Em confronto com o cristianismo, percebe-se porque é que os africanos aceitaram com maior facilidade o islamismo: permitia-lhes o casamento com mais de uma mulher e não hostilizava frontalmente as crenças ancestrais.

O Mandinga nos bilhetes-postais da Guiné portuguesa

Escreve o autor: “O comportamento islâmico não conhece qualquer separação entre aquilo que para um cristão é moral civil, direito e religião. Na estrutura teocrática desta religião, todos os elementos estão incindivelmente ligados enquanto nas sociedades ocidentais os princípios do bem e do mal foram definidos pelos teólogos, a responsabilidade e as sanções das obrigações laicas são objeto reservado aos juristas. Entre os muçulmanos, todo o comportamento humano é julgado, punido ou premiado unicamente pela religião (…) os povos animistas baseiam todo o comportamento humano no exemplo legado pelos antepassados. O direito nasce na comunidade e tem como fundamento a vontade daqueles que já morreram (…) Para os Mandingas islamizados, porque vivem numa simbiose das duas crenças, a lei é a vontade de Alá e aquilo que os nossos pais sempre fizeram, enquanto para os animistas a lei é somente aquilo que os nossos pais sempre fizeram".

Tece o autor considerações sobre classes sociais e castas e lança-se na organização familiar Mandinga. A família elementar é composta pelo marido, sua mulher e os filhos que desta tivera; a família composta compreende o marido, as suas diversas mulheres e os filhos destas e finalmente a família extensa que comporta todos os que estão ligados por laços de sangue e os que estão sujeitos ao mesmo chefe. Uma família Mandinga reconhece-se pelo uso de apelidos: Mané, Camará, Tchamo, Cassamá, Turé, Fati, entre outros. Quando o Mandinga fala na família tem em mente todas as pessoas que portadoras do mesmo sangue vivem sob a autoridade do chefe da morança (…) Os graus de parentesco não coincidem com os do direito Ocidental pois que todos os familiares da mesma geração se consideram irmãos, embora existam gradações diferentes entre os do mesmo pai, os dos mesmos pais e os de pais diferentes. Analisa sucessivamente o casamento e a sua dissolução, as interdições, obrigações, questões relacionadas com a compra e venda, o assalariamento, prova das obrigações, direitos reais, as diferentes formas de aquisição da propriedade, sucessões e Direito Criminal. Neste campo do Direito, passa em revista o homicídio, a resistência e revolta, a desobediência, elenca os crimes contra as pessoas (parricídio, infanticídio, homicídio, envenenamentos, assalto, violação e rapto…) e crimes contra a propriedade. Ao longo do estudo, Artur Augusto da Silva examina sucessivamente no campo das obrigações o que é permitido e interdito, a natureza dos contratos, os mecanismos da sucessão, os direitos reais.

Na apreciação que faz à propriedade, o autor recorda que quando uma família Mandinga abandona uma região para se ir fixar noutra e se apropria de um solo livre, procede-se a uma invocação dos espíritos do antepassados e só depois é que se iniciam as construções. A tal respeito, Artur Augusto da Silva deixa uma curiosa nota de rodapé: “Quando uma família Mandinga pretende fixar-se num local, procede à cerimónia denominada baco-mutó, que significa agarrar a terra, há que consultar a vontade dos donos do chão, o chefe da família ou da povoação pede licença ao dono do chão para se ficar ali, semeia a vagem de uma planta semelhante ao feijão que é regada todos os dias, durante sete dias. Se o feijão germinar, é sinal que o dono do chão não se opõe à ocupação". A propriedade foi sempre coletiva entre os Mandingas, mas observa o autor que hoje não há nenhum agregado Mandinga que respeite na sua pureza o conceito tradicional de propriedade.

Como sempre nos habituou nos seus trabalhos, Artur Augusto da Silva começa por tecer o pano de fundo, mostrar os homens no espaço e no lugar, confronta-o com a religião, as hierarquias, as estruturas sociais e as atividades produtivas e só depois desta contextualização socioeconómica e cultural é que se trava de razões com o direito, sempre numa perspetiva de que o europeu muitas vezes ilude as características primaciais do africano, daí o pano de fundo e daí a leitura se tornar tão atrativa e luminosa. Não terá sido por acaso que o livro abre com um provérbio Mandinga: “Quanto mais souberes, melhor compreenderás que nada é inútil”.

(Continua)

Um dos primeiros grandes trabalhos de António Carreira, historiador maior da Guiné
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13461: Notas de leitura (619): Revista África - Literatura e Cultura - “Três provérbios em crioulo, uma aproximação à universalidade dos ditos” da autoria de Teresa Montenegro e Carlos Morais (Mário Beja Santos)

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