segunda-feira, 21 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13422: Notas de leitura (614): “Pluralismo Político na Guiné-Bissau", coordenação de Fafali Koudawao e Peter Karibe Mendy (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Janeiro de 2014:

Queridos amigos,
A conjuntura sociopolítica da alvorada do multipartidarismo na Guiné-Bissau foi objeto de estudo científico e este livro comprova-o.
Autores conceituados pronunciam-se sobre os porquês do fracasso económico do autoritarismo do PAIGC depois da independência e quais as etapas que precederam a aceitação da democracia multipartidária; a sociedade civil, inicialmente manietada pelo Partido-Estado, não só não estilou como se desenvolveu, como recusa, à volta da poderosa tradição das mandjuandades.
Em suma, não se deverá estudar este período que precedeu as eleições de 1994 sem ler estas peças cuidadas e rigorosas de investigação.

Um abraço do
Mário


Pluralismo Político na Guiné-Bissau: 
Para a história da transição para um multipartidarismo, desde 1992 (1)

Beja Santos

“Pluralismo Político na Guiné-Bissau”, coordenação de Fafali Koudawao e Peter Karibe Mendy, INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Bissau, 1996 é um conjunto de quatro ensaios assinados por autores credenciados, a saber: Peter Karibe Mendy, ao tempo diretor do INEP e autor do livro Colonialismo Português em África: A tradição de Resistência na Guiné-Bissau, 1879-1959; Fafali Koudawao, doutorado em Genebra e investigador; Mamadu Jao, atualmente diretor do INEP e ao tempo coordenador do Centro de Estudos da História e Antropologia do INEP; Carlos Cardoso, doutorado em Filosofia e antigo diretor do INEP. A despeito de a generalidade das análises estar ultrapassada pela vertigem dos acontecimentos, são testemunhos irrefragáveis, da maior importância para o estudo histórico daquela conjuntura em que foram depositadas inúmeras esperanças.

A Guerra Fria fazia parte do passado, esboçava-se uma nova ordem mundial, o socialismo leninista fora repudiado, qualquer forma de atração pelo coletivismo era contestada. Entrara-se num programa de ajustamento estrutural e a democratização do sistema político, se bem que timidamente, ganhava foros de doutrina oficial, emendou-se a Constituição para abolir a referência ao PAIGC como partido-estado, houve eleições multipartidárias em junho de 1994, o PAIGC e João Bernardo Vieira foram reconduzidos no poder. Os debates políticos e académicos mudaram de natureza, voltou-se a estudar o colonialismo, o neocolonialismo e a singularidade política do PAIGC. É neste contexto que devem ser apreciados os quatro ensaios que enformam este livro.

Peter Karibe Mendy debruça-se sobre a emergência do pluralismo político, considera que na sua génese pesam a erosão institucional, a instabilidade política e as expressões internas e externas para instaurar o pluralismo político. A democracia revolucionária de Cabral, lembra Mendy, exigia descentralização, comités de aldeia, tribunais populares e nunca a concentração do poder a partir de Bissau, de onde se expandiu a burocracia, a psicose da segurança do Estado e o afastamento progressivo entre o PAIGC e as massas. Viveu-se a fase de um autoritarismo político em que o PAIGC baniu rapidamente todas as organizações ou atividades políticas que escapavam ao seu controlo, estabeleceu-se a política da unanimidade que se reforçou com autoritarismo implacável de Nino Vieira. A crise económica é produto de uma guerra de libertação que levou à destruição de importantes infraestruturas e êxodo rural, a Guiné possuía uma economia rural com um grau de desenvolvimento incipiente e a estratégia adotada depois da independência não fez grandes tentativas de romper com o passado, apesar da ênfase no desenvolvimento industrial. A estratégia de economia planificada e a crescente intervenção do Estado revelaram-se desastrosas. Como recorda o investigador, em lugar de desenvolver a agricultura, os fundos públicos foram empregues em importar produtos destinados principalmente ao consumo das áreas urbanas. Com o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980 anunciou-se que se voltava à linha de Amílcar Cabral, a modernização da agricultura. A crise económica não abrandou e em 1983 o governo teve de adotar um programa de estabilização financiado pelo FMI e pelo Banco Mundial, a que se seguiu o programa de ajustamento estrutural. Estava dado o mote para a liberalização política. E o autor observa que esse processo de democratização “tem ainda que testemunhar uma verdadeira mudança de poder, do Governo por indivíduos para os poucos relativamente privilegiados, para o Governo por indivíduos para a maioria empobrecida”.

Fafali Koudawao debruça-se sobre a sociedade civil e a transição pluralista na Guiné-Bissau. Recorda como o PAIGC, após a independência ocupou todo o espaço social, refletindo assim: “Passou-se de um regime colonial para um regime de Partido-Estado, extremamente centralizador e repressivo, que aspirava controlar todos os aspetos da vida nacional, não só política e económica, mas também e sobretudo social. A concretização do novo projeto foi procurada através de uma estratégia de omnipresença quer do Estado quer de organizações de massas vocacionadas para representar, canalizar e remodelar as aspirações do povo”. Tratou-se de um enquadramento que procurou impor-se à sociedade que colaborara com o antigo colonizador, tornou indiscutível o Estado binacional (Guiné-Cabo Verde) e quis garantir a segurança nacional contra quaisquer opositores à lógica do Estado. Mas importantes franjas sociais passaram ao lado desta lógica, caso dos grupos de mandjuandade, que constituíram refúgio para a população que procurava manter um espaço de atuação autónoma.

A ideia do partido de Estado esfarelou-se com processo de democratização, mas as reações de contestação já vinham de longe e tornaram-se mais imperiosas com a liberalização económica, a partir de 1986. As ONG cresceram em número exponencial: eram 20 nos anos de 1970, 50 nos anos de 1980 e mais de 70 em 1976. Emergiu o sindicalismo independente que alterou em profundidade a estratégia da UNTG. Multiplicaram-se as associações socioprofissionais, as associações provinciais, regionais e até de aldeias. Houve ONG que se mostraram ativas no período eleitoral, caso da Liga Guineense dos Direitos Humanos, outras mostraram neutralidade sem perda de atenção, caso dos sindicatos e houve um grupo de organizações que adotou um baixo perfil ao longo de período eleitoral, caso da Associação de Jornalistas da Guiné-Bissau. Assistiu-se ao desenvolvimento e a uma complexidade crescente do xadrez de interesses públicos, e o autor observa que é uma questão importante a evolução em curso na rede das mandjuandades, as quais se tem vindo a transformar progressivamente num substituto das antigas organizações de massas, agora em declínio, e escreve: “Na sequência da liberalização política e da implosão das organizações de massas, o potencial ainda inexplorado das mandjuandades tornou-se um evidente objeto de cobiça para os partidos políticos. A nova estratégia para a sua recuperação manifestou-se com a criação da Associação de Mandjuandades do Setor Autónomo de Bissau, em outubro de 1993 (a iniciativa tinha por detrás Isabel Romano Vieira, mulher de Nino). Dado o comportamento anterior das mandjuandades como uma forma endógena, informal e adaptada de expressão da sociedade civil, a evolução a médio prazo da sua rede é uma das tendências mais interessantes de observar”. Mas foi clara a posição de distanciamento de muitos grupos da sociedade civil durante as eleições. Fafali Koudawao enuncia uma pertinente leitura das atividades das ONG, com realce para aquelas que se dedicam ao desenvolvimento económico, à defesa de direitos e à promoção da opinião e da proteção da natureza, procura encontrar justificação para o novo impulso sentido no sindicalismo depois da democratização e quais as suas manifestações reivindicativas. Ao tempo, o investigador considerava como altamente provável a consolidação deste processo de enraizamento da sociedade civil. Como se sabe, as coisas não se vieram a passar assim.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13411: Notas de leitura (613): “Wellington, Spínola e Petraeus, o Comando Holístico da Guerra”, por Nuno Lemos Pires (Mário Beja Santos)

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