sexta-feira, 16 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13151: (De) Caras (17): A nudez da pedra, o Vasco da Gama e os seus "tigres do Cumbijã"... Convívio anual da CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74)








Portalegre, 3 de maio de 2014 >  Convívio anual dos "Tigres de Cumbijã", CCAV 8351, Cumbijã (1972/74)


Fotos: © Vasco da Gama   (2014). Todos os direitos reservados


1. A Minha Querida CCav 8351...e....A NUDEZ DA PEDRA

por Vasco da Gama [, ex-cap mil, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74]

O frenesim que de mim se apodera com a chegada do dia da reunião anual da minha Companhia parece que cresce todos os anos, apesar de saber que por cada comemoração que passa, menos uma nos resta para o fim do percurso.

Desta feita foi em Portalegre que se seguiu à reunião de Sever do Vouga e que antecede a de Torres Novas.

Portalegre, “cidade do Alto Alentejo, cercada de serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,”que José Régio imortalizou na sua Toada, viu-nos partir, há quarenta e dois redondos anos, com destino à Guiné.
Aqui permanecemos por três ou quatro semanas, vindos de Estremoz, aguardando embarque para a guerra! A pátria, que por vezes não sabemos bem o que é, chamara por nós e nós ali estávamos prontos a cumprir com a obrigação (que não dever?) já que outra saída não descortinávamos para o nosso futuro! Até de França, Camarada nosso então se apresentou para que sobre ele não caísse o anátema de refractário ou de desertor, anátema que alguns, nos dias que correm, ( como é fácil hoje em dia fazê-lo) transformaram em elogio, vá-se lá saber porquê! Falo nele, no “Francês”, pois desta feita e pela primeira vez veio abraçar os seus Camaradas, que não via há quarenta anos!

O B. C. 1 de onde saímos em 1972 é hoje um Centro de Formação da G.N.R.

Em finais de Março solicitámos autorização ao Comando para que pudéssemos visitar as instalações e colocar uma lápide em honra dos Camaradas mortos na Guiné.

O tempo ia passando e a resposta não vinha! O meu Camarada Parola, o organizador do convívio, alertou-me e eu, sem demora, liguei para o Centro no dia 20 de Abril. Depois de vários “não se encontra” tive de dizer ao meu interlocutor que não desligava enquanto não fosse atendido por quem quer que fosse, pois a minha pergunta não ficaria sem reposta.

Lá veio um senhor sargento, muito simpático e solícito que, admirado, me disse:
- O senhor Comandante já fez o despacho no dia 2 de Abril, a autorizar a vossa visita.

 Prometeu falar com o senhor Capitão para que cópia do despacho nos fosse enviada, ao meu Camarada Parola e a mim mesmo. Tal veio a verificar-se a 23 de Abril.

Porventura esta demora terá a ver com a programação de alguma operação, quiçá a da perseguição ao senhor Manuel Baltazar, um tuga conhecido por Manuel Palito, lá para as bandas de São João da Pesqueira, que ,ao que sei, ainda não teve resultados práticos.

Demorássemos nós, CCav 8351, enquanto na Guiné, todo este tempo a encontrarmos a base de onde o IN nos atacava e, por certo, ainda a esta hora por lá andávamos à procura de Nhacobá, de Lenguel do rio Habi ou de Samenau. Outros tempos....outra gentes..

O nosso encontro estava marcado para 3 de Maio, e no dia primeiro, portador que fui da lápide, lá me apresentei para a colocar no local indicado. O oficial de dia, um jovem alferes, recebeu-nos com simpatia e a meu pedido prometeu-me que a lápide, no dia da visita, estaria coberta pela bandeira nacional para que o seu descerramento tivesse o mínimo de dignidade. Perante a minha insistência mandou-me ir descansado, pois a bandeira de Portugal estaria em seu devido sítio!

A malta começou a chegar logo pela manhãzinha do dia três de Maio. O encontro foi no largo fronteiriço ao do antigo B.C.1. Abraços, gargalhadas, uma ou outra lágrima furtiva, o relembrar da emboscada do dia xis ou os ataques ao arame no Cumbijã, mais o assalto a Nhacobá, fazem sempre parte do primeiro contacto.

Subimos então a rampa de acesso à entrada do Centro e, antes que fosse transporta a porta de armas, avistava-se lá ao fundo a lápide, tal qual eu a deixara dois dias antes. Não avancei mais! O meu Camarada Parola lá foi falar com o oficial de dia, um capitão, que de pronto lhe disse não haver bandeira disponível para a cerimónia e que a fôssemos comprar a uma loja dos “chineses”.

O meu Camarada lá foi comprar a bandeira com que se cobriu a nudez da Pedra.

Este lavar de mãos do cavalheiro e oficial senti-o como se de ofensa se tratasse à memória dos meus Camaradas mortos em combate e, logo ali, no discurso que fiz, tive de expressar, para que dúvidas não restassem, o meu repúdio perante tamanha indiferença.

Porventura se tivesse ido ao beija-mão talvez me tivessem dado fanfarra e me prestassem tributo, mas eu não vou por aí e cito outra vez Régio :

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

["Cântigo Negro", de José Régio, "Poemas de Deus e do Diabo", 1925]


Cerimónia finda, ala que se faz tarde e lá foram os cinquenta e um Combatentes acompanhados pelos familiares para a missa da praxe, celebrada na sé de Portalegre por um padre simpatiquíssimo. Foram lidos os nomes dos vinte e dois mortos que são do nosso conhecimento e à medida que cada nome era referido ecoava na vastidão dos claustros um arrepiante PRESENTE a provocar um estremeção de emoção.

Os arredores de Castelo de Vide acolheram-nos num local perfeito para o almoço e lanche!

Esquecidos os contratempos, em vivência íntima e familiar,  de novo o recordar dos momentos mais difíceis nos vinte e dois meses que passámos juntos.

Vinte e dois meses que nos marcaram de tal forma, que ninguém, mas mesmo ninguém, será capaz de destruir.

Esta imensa solidariedade dos Combatentes da minha Companhia parece vir a cimentar-se com o passar dos anos e eu apenas peço que para o próximo ano estejamos os mesmos deste ano e mais uns quantos a quem a saúde e a crise impediram de ir a Portalegre, “cidade do Alto Alentejo, cercada de serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros” [, "Toada de Portalegre", de  José Régio,  do livro de poesia "Fado", publicado em 1941].

Vasco Augusto Rodrigues da Gama

_____________

Nota do editor:

Último poste da série > 25 de março de  2014 > Guiné 63/74 - P12897: (De) Caras (16): Quem tramou o alf mil capelão Mário de Oliveira, do BCAÇ 1912 (Mansoa, 1967/69) ?... Não foi o BCAÇ 1912 que expulsou o Mário de Oliveira, a PIDE tinha escritório aberto em Mansoa (Aires Ferreira, ex-alf mil inf, minas e armadilhas, CCAÇ 1698, Mansoa, 1967/69)

9 comentários:

Luís Graça disse...

Grande comandante:

Eis o que escrevi, noutro lugarm, mais apropriado porque é o poste dos teus anos:

Continuas em grande forma!...

Adorei ler este teu escrito sobre a tua querida CCAV 8351, reunida em Portalegre, e a nudez da pedra que, memso sendo pedra, não tem a lata, nem a falta de sensibilidade e de pudor que exibem alguns tristes representantes fardados da Pátria-das-nove-às-cinco, que por aí andam, e que deveriam ter conhecido o Cumbijã há 40 e tal atrás...

Reforço o te disse há um bocado: quero-te desejar muitos anos de vida e muitos quilos de saúde, o necessário para não deixares extinguir essa espécie rara de homens que são os "tigres do Cumbijã"...

Gostei da tua postura: comandante uma vez, comandante para sempre!

Levo-te o abraço de parabéns para te dar, ao vivo, em carne e osso, no nosso IX Encontro da Tabanca Grande, em Monte Real, em 14 de junho próximo!... Luís

José Botelho Colaço disse...

Caro comandante é lamentável a recepção que vos proporcionaram.
A minha companhia em 2010 quando descerramos a placa o ex RI-16 fomos recebidos com todas as honras desde o acompanhamento do 2º comandante e secção militar, desde a Igreja até ao ex-RI-16 recebidos pela fanfarra, descerrar a placa e visita a todo o ex-RI-16 como estava em 2010.
Do exército sempre que por qualquer motivo os tenho contactado sempre tenho sido recebido com toda atenção e disponibilidade para tratar do assunto em causa.
Ainda há poucos dias 06-05-2014 quando fui agraciado eu mais 17 camaradas com a medalha das campanhas de África no Regimento de Transportes em Lisboa ex-RALIS nos prepararam uma recepção digna do acto fomos recebidos pelo Sr. General comandante do Regimento dos transportes e do Sr coronel comandante do ex-RALIS a seguir almoço com entradas, bolo comemorativo e discursos que a quem são dirigidos nos enaltecem. Uma pequena festa a que se juntaram todos os os militares da unidade.
Como podes ver nem tudo é mau.
Um abraço extensivo a todos os "tigres do Cumbijâ.

Colaço.

Luís Graça disse...

(...) "O meu Camarada Parola lá foi falar com o oficial de dia, um capitão, que de pronto lhe disse não haver bandeira disponível para a cerimónia e que a fôssemos comprar a uma loja dos “chineses”.

"O meu Camarada lá foi comprar a bandeira com que se cobriu a nudez da Pedra.

"Este lavar de mãos do cavalheiro e oficial senti-o como se de ofensa se tratasse à memória dos meus Camaradas mortos em combate e, logo ali, no discurso que fiz, tive de expressar, para que dúvidas não restassem, o meu repúdio perante tamanha indiferença." (...)

Camaradas, Tigres de Cumbijã, já estamos fartos, nós antigos combatentes, de sermos "humilhados & ofendidos"... Este capitão, da GNR, que estava de oficial de dia não merece a farda que veste.

Estamos fartos de ver a culpa morrer solteira neste país!... Na minha opinião, os organizadores do convívio deviam fazer chegar ao responsável deste centro de formação da GNR em Portalegre uma carta de protesto. Não para efeitos disciplinares, mas para fins pedagógicos: estas atitudes menos dignas e menos felizes de jovens militares portugueses não devem passar em branco!...

Joaquim Luís Fernandes disse...

Camarada Vasco da Gama

O vosso vibrante PRESENTE na Sé Catedral de Portalegre, propagou-se nesta publicação e atingiu-me, ao ponto de também sentir o estremeção da emoção.
Coisas de um coração sensível ao sofrimento e à solidariedade dos HOMENS.

Parabéns e obrigado pela partilha.

Abraços
JLFernandes

jpscandeias disse...

Passaram-se 40 anos mas a postura mantem-se. O mesmo tipo de respostas, a mesma atitude e a mesma cultura. Só um decreto-lei, que o lixava, os uniu para fazer o 25. A mim não me surpreendeu a resposta, vá comprar aos chineses, mas que irritou até ao tutano irritou. Se tivessem mudado teria de tirar o meu chapéu o que o faria com todo o gosto.
Termino como era habito dizer-mos " Estou farto deles"

joao silva

Anónimo disse...

Sempre a mesma coragem e frontalidade na pessoa do Vasco da Gama. Só ele merece aqui destaque, a outra parte é muito pobre, é desprezível.

Um abraço
Carvalho de Mamptá

JD disse...

Camaradas,
Este relato do Vasco realça duas manifestações contraditórias:
Por um lado, o regozijo do reencontro entre camaradas que deram coiro e cabelo nas circunstâncias impossíveis de transmitir àqueles que,
por outro lado, aderiram à vida militar, enquanto abrigo de salário certo e vida fácil, arrogantes, e sem paciência para aturar os velhos de que o governo também deseja livrar-se. Até parece imperdoável, que o pessoal da C.Cav.8351 tenha arribado a Portalegre para perturbar a quietude regimental.
Parabéns ao Vasco por lhes ter cantado na cara o repúdio que causaram.
Porém, não é sempre assim, e recordo com grande satisfação o encontro promovido por duas companhias do ex-BII-19, no Funchal, cujo comando deu o apoio requerido e ofereceu o almoço no refeitório, numa manifestação espontânea de interesse e solidariedade.
O problema não é das instituições, mas dos homens que as caracterizam, ou descaracterizam, quando, desconsideram o exercício da cidadania enquanto valor superior.
Esse Regimento fica muito mal avaliado pelos nossos padrões de cidadãos (para Cavaco, "cidadões") que deram à Pátria, sem que dela esperassem contrapartidas. Acho que vale a pena essa manifestação escrita de desagrado, e, dependendo da resposta, levar a diligência ao Comando-Geral da GNR.
Para todos os camaradas que palmilharam pelo Cumbidjã envio um abraço fraterno
JD

Juvenal Amado disse...

Que bem que sabe ler o que escreves Vasco pois é sempre com o coração.
O resto é este Portugal no seu melhor.
Mesmo assim o nosso amor por ele é intenso e incondicional, vamos perdoando-lhe o mal, o esquecimento e a consciência de somos talvez encarados como um estorvo, que eles esperam pacientemente que desapareça.
E vamos desaparecendo é bem verdade e em breve seremos uma raridade .

Um abraço

Luís Graça disse...

È verdade, camaradas e amigos... Somos uma espécie em vias de extinção... E não é segredo que a gente leve para o caixão...

Não podemos medir todos os oficiais desta nova geração das Forças Armadas e Militarizadas pela mesma bitola... Há gente, jovem, jovens oficiais saídos da Academia, ou já integrados na carreiar militar, e que acompanha o nosso blogue, que mostra interesse e respeito pela geração dos últimos combatentes do império...

Quero crer que esta atitude do sr capitão da GBR de Portalegre não passou de uma expressão grosseira, de mau gosto, individualziada... Mandar compar a bandeira da Pátria aos... chineses, é em todo o caso um insulto para homens e camaradas nossos como o Vasco da Gama e os seus "tigres de Cumbijã"...