quinta-feira, 15 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13143: Memórias de Mansabá (32): Conversas filosóficas com o Alferes Médico (Francisco Baptista)

1. Em mensagem do dia 11 de Maio de 2014, o nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), trouxe até nós uma memória de Mansabá.


MEMÓRIAS DE MANSABÁ

32 - CONVERSAS FILOSÓFICAS

O alferes médico de Mansabá era um camarada pouco expansivo, sempre com ar calmo e meditativo que lia muito sobretudo livros de yoga, mais velho alguns anos do que a generalidade dos militares da Cart 2732, era educado e prestável mas parecia-me por vezes que olhava para os operacionais como os rapazes que andavam a brincar às guerras. Guerra que ele detestava e temia também.
Como ele conheci alguns camaradas de vários serviços que não tendo que sair para fora do quartel viviam um pouco aterrorizados pois imaginavam o inimigo logo ali à volta do arame farpado. Os operacionais que pela sua actividade tinham que conhecer toda a área exterior do quartel alguns quilómetros em redor, tinham outros medos mas não esse medo permanente do desconhecido pois eles conheciam esses terrenos como os terrenos das suas aldeias ou como as ruas das suas cidades.o que lhes dava outra segurança psicológica.

A propósito das suas leituras e prática de yoga nunca esqueci uma conversa que um dia tive com ele. Um dia falando eu da minha educação religiosa tradicional e habitual na maior parte das famílias de Portugal sobretudo a Norte, confessei que já tinha abandonado a religião pois por alguns motivos, que terei desenvolvido, tinha deixado de acreditar.

Ele disse que ao contrário de mim tinha sido criado numa família que não praticava qualquer religião e não lhe tinham sido inculcados quaisquer princípios religiosos. Com o passar dos anos, disse ele: comecei a sentir um vazio espiritual que me obrigou a dedicar-me ao yoga para o preencher. A ti como muitos como tu, - dizia ele, - a educação religiosa, deu-vos esse alimento espiritual e mesmo quando negais os seus dogmas preenche o espírito nessa discussão e nunca sentis esse vazio na alma que eu sentia.

Este diálogo foi para mim dos mais filosóficos ou metafísicos, como lhes queirais chamar que eu tive na Guiné, eu que tinha desistido praticamente da leitura e da reflexão intelectual quando embarquei para lá e andava um pouco narcotizado pelo cheiro da terra africana, e pelo seu calor tropical e que procurava gozar tudo isso e os prazeres mais imediatos dos sentidos como qualquer animal instintivo.
Foi das conversas que mais abanou comigo e me despertou do marasmo em que vivia, voltei a ficar desperto e inquieto como quando lia na solidão da "casa velha" de Brunhoso, os livros de Dostoiévsky, esse grande romancista e filósofo. Lembrei-me de Rodion Românovitch Raskólnikov, o protagonista de "Crime e Castigo" quando ele, sentindo-se só no mundo e só no cosmos, pois tinha deixado de ser crente, com a alma vazia, acaba por concluir que "se Deus não existe tudo é permitido" e que com essa justificação acaba por matar a velha usurária mas que vai continuar só e vazio pois o niilismo não lhe vai preencher a existência.

O diálogo sobre esta premissa irá continuar nas discussões intermináveis, existenciais e filosóficos dos três "Irmãos Karamazov". Esse diálogo continua nas sociedades porque as bases filosóficas e metafisicas que sustentam a moral vigente são baseadas em dogmas e ensinamentos dos profetas das várias religiões, cristãs, islâmicas, judaicas, hindus, budistas, animistas ou outras. Fora das religiões os filósofos ainda não conseguiram criar um sistema filosófico universal e acessível às multidões que possa substitui-las nas suas certezas e ilusões e garantir paz e riqueza espiritual aos homens. Os filhos e netos dos ateus e descrentes do nosso tempo, hoje andam, muitos, à deriva à procura dalgum alimento para lhes saciar a fome que lhes vai na alma e lhes reponha a alegria de viver.

Alguns tornam-se praticantes de yoga e doutras filosofias orientais, outros tornam-se trabalhadores ou estudiosos compulsivos, outros tornam-se consumidores de todos os produtos melhores ou piores que a sociedade capitalista oferece.
Um assunto tão vasto e polémico carece da opinião de especialistas de várias áreas do conhecimento para um debate sério, falo nele contudo porque foi uma conversa que tive na Guiné e que periodicamente me vem à memória.

Gravei na memória também conversas à mesa nas horas das refeições na messe de oficiais em Mansabá, em que o principal protagonista era o capitão Abreu, comandante do COP 6. Além dele estávamos 4 alferes da CART 2732, o respectivo capitão, o alferes de transmissões, o alferes médico e durante um mês (ou dois?) a sua esposa que lhe foi fazer companhia. Havia uma Companhia de Comandos no quartel, com uma cultura militar mais democrática e outros meios financeiros também, pois os seus oficiais comiam com os restantes militares da Companhia, sargentos e soldados.

Pela impressão que causava em todos nós, não quero deixar de falar da mulher do médico, por sinal também médica, uma senhora elegante e bela, que sendo a única europeia e a única mulher no meio de tantos homens, naturalmente era alvo da atenção (discreta e educada) de todos. A senhora porém não se sentia bem no quartel, notava-se mesmo que vivia um pouco aterrorizada naquele ambiente de guerra. Para acicatar ainda mais esses temores, havia dois alferes que por vezes, talvez por um certo marialvismo consciente ou inconsciente se punham a falar dos perigos da actividade operacional. Um dia tivemos uma flagelação de armas pesadas ao quartel, em que felizmente não houve feridos, embora tivessem caído algumas granadas dentro do quartel. Passados dois dias o quartel e a messe ficaram com menos graça e beleza porque a esposa do médico regressou a Portugal.

O capitão Abreu tinha sido adjunto do tenente-coronel Correia de Campos, já muito falado neste blogue e considerado por muitos como um grande estratega e dos combatentes mais corajosos que passaram pela Guiné. Da forma mais direta, no estado mais puro, eu ouvi e os outros presentes na messe de oficiais de Mansabá, com dois anos de antecedência, pela voz do capitão Abreu. as razões subjectivas e objectivas que conduziram ao desencadear da revoltas dos capitães em 25 de Abril de 1974.

Para mim foi música nova que não esperava ouvir da boca dum destacado capitão da academia militar. Falava dessas razões pessoais, familiares e políticas com a mesma coragem com que lutou ao lado do comandante Correia de Campos, que tanto admirava. Era um homem honesto, um militar competente mas já cansado da guerra, desiludido e descrente pelo rumo da politica em relação aos territórios africanos.

Arruda dos Vinhos, 18JAN2009 - Convívio de pessoal da CART 2732. 
Da esquerda para a direita: Cor Carlos Marques Abreu, que comandou o COP 6 com o posto de Capitão; ex-Alf Mil TRMS Brito Ribeiro do COP 6; ex-Alf Mil Nunes Bento, CMDT do 3.º Pelotão da CART 2732; ex-Fur Mil Carlos Vinhal do 3.º Pelotão da CART 2732 e ex-Soldado de TRMS Malhão Gonçalves da CART 2732, um dos organizadores do convívio, no uso da palavra.

Foto: Blogue A Madeirense CART 2732
Legenda: Carlos Vinhal

Desses dias de sol africano, calor tropical, trovoadas, chuvas diluvianas, porque os ecos dos rebentamentos das granadas ainda soam por vezes nos nossos ouvidos ou na nossa memória,  e a discórdia sobre o fim da descolonização ainda divide muitos camaradas, eu propunha que esquecêssemos esse aspecto da política nacional e internacional, e que voltássemos aos tempos da Guiné, quando éramos todos amigos e estávamos dispostos a dar a vida uns pelos outros. Sem querer entrar em polémicas desnecessárias já que todos temos uma idade respeitável, e ninguém está disposto a abdicar das suas certezas, para atenuar divisões e azedumes exacerbados, vamos pensar que somos todos bons portugueses apesar de vestirmos camisolas de cores diferentes.

Descobri recentemente um fado, "Velhas Sombras", muito bem cantado pela Celeste Rodrigues, algo nostálgico e melancólico, bem musicado e com um poema muito lindo. Recomendo-o a quem gostar da canção nacional que nos identifica em todo o mundo.

Um grande abraço a todos os camaradas
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P13027: Memórias de Mansabá (31): Com o tempo interiorizámos três ou quatro coisas: (i) que tínhamos sempre medo; (ii) que de dentro do mato era muito difícil disparar um LGFog ou até um morteiro; e (iii) depois do primeiro tiro tínhamos a ideia que conseguíamos controlar as coisas (Ernesto Duarte, ex-fur mil, CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67)

9 comentários:

Luís Graça disse...

Gostrei muito do teor filosófico do teu texto...

Em retribuião, aqui tens a letra do fado "Veklhas Sombras", interpretação de Celeste Rodrigues, música de autoria de Nóbrega e Sousa, e versos de António Sousa Freitas...

Um alfabravo. Luis

Por toda a vida as sombras passam
Num rumo igual a outro rumo
As sombras vão e não se abraçam
E as vidas são nuvens e fumo

Assim eu passo também
Meus dias, meus anos
Num sonho antigo que tem
Tristezas, enganos

E só dou por mim agora
Meu amor, a cantar aquele dia
Estranho dia estranha hora
Das velhas sombras tão sombrias

Amar-te é como o amor responde
Ao seu apelo ao seu cantar
E traz as sombras em que esconde
A tua sombra, o teu olha


Vd. Portal do Fado

http://www.portaldofado.net/component/option,com_jmovies/Itemid,336/task,detail/id,3665/

Luís Graça disse...

Já agora, como se chamava o alf médico a quem te referes ? Não penso que seja uma informação confidencial...Tens o contacto dele ? Não o queres convidar para integrar a nossa Tabanca Grande ?

É bom lembrar que precisamos de, no mínimo, 5 a 6 novos membros por mês, 60 a 70 por ano... Se não o blogue extingue-se...

É o risco que Portugal está correr... Quando fomos para a guerra, no início da década de 60, nasciam 200 mil portugueses... Hoje nascem 70 mil...

Joaquim Luís Fernandes disse...

Caro amigo Francisco Baptista

Gostei muito do teu texto, numa partilha intimista e de séria reflexão. O que posso dizer-te é encorajar-te a que continues na busca da Verdade de ti , da tua Vida e do teu Ser. Creio ser esse o objectivo último da reflexão filosófica.

E tudo para que sejas feliz. É o que desejo para ti e para todos nós.

Um abraço de amizade
JLFernandes

Anónimo disse...

Caro Francisco Baptista:
Este lado da guerra que tão bem aqui retratas não era tão raro como possa parecer a quem não andou por lá. Pelo contrário, a angústia decorrente daquele ambiente era propícia à reflexão sobre o papel dos humanos e dos estados, no mundo. Daí até à interrogação sobre as concepções teístas e ateístas vai um passo muito pequeno. Essas discussões levavam horas e ajudavam-nos a passar os dias mas não só. Quase sempre conduziam-nos a uma conclusão nada metafísica - afinal, que estávamos ali a fazer? ao serviço de uma ideia construída por quem? ao serviço de que interesse? com que legitimidade? mas o que é legítimo?

Um abração
Carvalho de Mampatá.

Anónimo disse...



Amigo Luís Graça:

Não me recordo do nome do alferes médico, perguntei também ao amigo Carlos Vinhal, pois estivemos ambos na Cart. 2732 em Mansabá e ele também não se recorda.Como me parece também que os tempos dele na Guiné foram dificeis de suportar e como ele era bastante reservado, acho que não gostaria de partilhar essas memórias com uma camaradagem tão alargada como a da Tabanca Grande.

Grande abraço
Francisco Baptista

Hélder Valério disse...

Caro camarada Francisco Baptista

Gostei.
São reflexões interessantes.
Mostram como uma mente 'desinquieta' pode procurar e encontrar respostas. Não digo "a resposta", mas sim pistas, caminhos, proposições.
Depois, é só continuar o caminho em busca do aperfeiçoamento interior.
Há quem aproveite o(s) momento(s) de uma peregrinação física para potenciar uma peregrinação interior. Fazer o "caminho de Santiago" ou mesmo o de Fátima, interiorizando pensamentos, reflexões, autocríticas, seja lá o que for, com o propósito de encontrar um novo "eu" será sempre uma experiência transcendental.
Claro que o(s) resultado(s) depende(m) sempre de nós, da seriedade que se puser na demanda, na vontade e/ou determinação que colocarmos na acção.

Interessante, também, as outras indicações que deixaste.

Abraço
Hélder S.

Hélder Valério disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...


Francisco Baptista
16 mai 2014 11:31


(...) Gostaria de ir ao almoço da Tabanca dia 14 mas acontece que vêm os meus netos da Alemanha passar cá uma semana e isso complica tudo.

Um grande abraço

Francisco Baptista

Luís Graça disse...

Obrigado, Francisco. Vamos manter as coisas como estão. Pouca gente, afinal, quer dar a cara. Pelas minhas contas é 1 em 100...

Quanto ao encontro, não há nada mais importante do que os teus filhos e netos. Aproveita o máximo dos dias... Esperemos ter força para fazer, para o ano, o X Encontro Nacional da Tabanca Grande. E nessa altura talvez possas vir.

Um alfabravo. Luis