sexta-feira, 2 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13081: Notas de leitura (585): "O Pano Artesanal na República da Guiné-Bissau", por Isabel Borges Pereira Mesquitela (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Novembro de 2013:

Queridos amigos,
A autora lançou-se na criação de uma empresa original de recuperação da lendária panaria guineense, viu com orgulho ressurgir a criatividade dos artesãos que reabilitaram panos maravilhosos na grande tradição Manjaca e Fula, sobretudo. Mas foram tantas e tais as barreiras que teve de desistir.
Este livro é uma obra de grande afetividade por um projeto derrubado pela ignorância e a mesquinhez. A panaria guineense é um profundo enlace cultural da Guiné, de Cabo Verde e de Portugal. É uma arte que não se pode apagar e que merecia chegar aos mercados internacionais mais exigentes.

Um abraço do
Mário


O pano artesanal na Guiné-Bissau

Beja Santos

Isabel Borges Pereira Mesquitela foi para a Guiné-Bissau em 1986, descobriu que a panaria guineense tinha praticamente desaparecido. Deslocou-se ao interior da Guiné, contactou velhos artesãos e manifestou-lhes o desejo de recuperar essa panaria prodigiosa, uma das dimensões do talento guineense. Contratou um etnólogo, fez investigações e criou uma estrutura empresarial destinada à produção, divulgação e comercialização do pano guineense: “M’Banyala” que funcionou de 1988 até 1994, dedicou-se inteiramente à recuperação dos antigos padrões, à introdução de novos designs e cores adaptados ao quotidiano. Escreveu este livro com o objetivo de contribuir para uma maior sensibilização quanto à necessidade de preservar a arte da panaria da Guiné-Bissau.

A autora confessa o seu desalento quando, a partir de 1994, não pôde prosseguir com o seu projeto empresarial, tais e tantos foram os condicionalismos impostos que desviaram de forma drástica os índices de qualidade e beleza que sempre caraterizaram a tecelagem guineense. E adicionou alguns desses condicionalismos: fio de inferior qualidade que entra pelas fronteiras dos países vizinhos a preços muito mais acessíveis que o “100 % algodão” que importava de Portugal, os tecelões passaram a adquirir fio contendo maior percentagem de acrílico do que de algodão; também a crescente falta de poder de compra e carência de postos de venda desmotivaram os tecelões.

Esta panaria é o expoente de um património de várias culturas onde se entrelaçam a Guiné, Cabo Verde e Portugal. Neste livro carregado de afetos e onde a autora descreve minuciosamente a recuperação que procurou pôr em marcha nos anos 1980, conta de modo sugestivo o breve historial desta panaria e os principais centros de produção, socorrendo-se de um importante clássico de António Carreira “Panaria Cabo-verdiana-Guineense” (Aspetos históricos e socioeconómicos). O declínio desta prodigiosa arte da tecelagem acentuou-se nos anos 1960, segundo Carreira o pano manjaco ficava muito mais caro do que o importado da Europa. Para além do preço, a moda internacional desincentivava as mulheres mais jovens que se sentiam fascinadas pelos modelos europeus, enfim, a produção do pano artesanal acabou por colapsar por falta de matéria-prima. A autora contactou diferentes artesãos, comerciantes portugueses, pediu cotações para tintas adequadas a têxteis e fio de algodão em meadas. Alguns tecelões Manjacos e Papéis, bem como Fulas e Mandingas acabaram por aceitar o desafio que a autora lhes propôs.

Para interessar o leitor, Isabel Mesquitela descreve minuciosamente o tear Manjaco/Papel e o que o distingue do tear Fula. E procede a considerações técnicas sobre o pano de tear. Tinha-se deslocado a Portugal onde fizera a primeira encomenda de uma tonelada de fio. Para os primeiros trabalhos, a empresa contava com três tecelões Manjacos e dois Fulas. Como se sabe, estes panos são feitos em peças chamadas bandas. Um pano de banda estreita mede aproximadamente 1,20mx180m. É constituído por seis bandas de aproximadamente 0,20mx1,80m. Às barras transversais das pontas chamam “boca” e o padrão em si, entre duas “docas”, é denominado “corpo”. O pano é portanto constituído por bocas e corpo. Os jovens, inicialmente relutantes na arte da tecelagem, com o tempo entusiasmaram-se. A introdução de cores verificou-se naturalmente.

De seguida, elenca padrões recuperados e a sua evolução, é material gráfico muito sugestivo que permite ao leitor ser confrontado com a nomenclatura dos principais padrões de panos que a empresa comercializou na Guiné e no estrangeiro. Dá igualmente atenção ao pano tingido que tem longa história nesta região de África. Segundo Carreira, os povos Mandingas eram bastante entendidos na arte de tingidura de panos. E a autora dá os seus aportes técnicos: “As bandas são reduzidas da forma tradicional, sem sobreposição, formando o pano que, no caso de se desejar de cor única, é mergulhado e tinto integralmente. A tingidura integral ou com desenhos toma em crioulo a designação de moda ou maneira. Quando tingem com anilina, os “dégradés”, desde o tom azul muito escuro a que chamam preto até ao azul claro, dependem do tempo do banho de tinta. Panos havia que estavam mergulhados na tinta durante sete dias. Caso pretendam uma moda com desenho, praticam duas modalidades: a técnica de “Tritik”, e técnica “Plangi”, conhecidas em Java desde o século XII (…). O sistema de atadura permite fazer desenhos de batik sem isolar o tecido com cera. Marcam-se com um lápis as áreas, linhas ou pontos que devem ficar dobrados ou enrolado, ata-se e liga-se bem o desenho nestes pontos onde a tinta não deve penetrar; dentro das dobras, por vezes, metem pedras redondas, sementes ou contas. Depois de mergulhado na tinta previamente preparada é mexido com paus em tambores aquecidos a lenha, controlando por instinto o tempo de banho necessário. Posteriormente é enxaguado, desfeitas todas as ataduras, passado o pano por água com sal e depois de seco ao sol é distendido”. E ficamos por aqui, são aspetos técnicos que por si só não despertam o interesse para ver ou querer adquirir um destes maravilhosos panos artesanais.

Por último, a autora tece algumas observações sobre o uso do pano em decoração e moda. O pano corrido é um pano utilitário, pode servir de toalha, colcha ou como invólucro para transportar a roupa que lavam no rio. Esta secção está profusamente ilustrada com as exposições em que a autora colaborou na Galeria de Arte Ícaro (Lisboa), na Altamira e no Chapitô. Exemplifica também com panos que podem ser utilizados em cerimónias nupciais, trajes de grandes cerimónias, trajes de trabalho, etc.

Ao despedir-se, sente-se que a autora guarda melancolia profunda pelo que fez e pelo que não pôde fazer, devido a muitas incompreensões. Resta-lhe a esperança de que os artesãos, entretanto formados, continuem a tecer apesar da matéria-prima não ser a ideal e de terem que se defender tecendo padrões mais simples e de rápida confeção.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P13057: Notas de leitura (584): "PAIGC - Sobre a Situação em Cabo-Verde", por Sá da Costa (Mário Beja Santos)

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