domingo, 13 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P12974: Memórias dos últimos soldados do império (1): “Bate estradas” histórico, escrito à minha filha em 1973, e uma redacção da minha neta, vinte anos depois (Albano Mendes de Matos)

1. O nosso Camarada Albano Mendes de Matos, TCor Art.ª Ref, que esteve no GA 7 e QG/CTIG (Bissau, 1972/74), enviou-nos a seguinte mensagem.


Camaradas,

Envio um texto sobre o aerograma, o célebre «bate-estradas», que uma neta escreveu, numa aula de Português, quando aluna no Colégio Maristas, na Parede, para uma possível publicação na «Tabanca».

Abraço.
Albano Mendes de Matos


AEROGRAMA OU "BATE ESTRADAS" > UM DOCUMENTO HISTÓRICO E UMA REDACÇÃO



Em Janeiro de 2003, no Colégio Marista da Parede, onde estudava uma minha neta, uma professora de Português, pediu aos alunos que, no dia dos avós, levassem um objecto histórico que tivesse pertencido ou feito por um avô ou avó.

A minha neta falou com a mãe e esta mostrou-lhe aerogramas que eu lhe tinha enviado da Guiné, onde estive em comissão de serviço de 1972 a 1974, e que guardava numa caixa. A minha neta levou alguns aerogramas para o Colégio Marista, que foram objectos de curiosidade.



Aerograma, o célebre «bate-estradas».

Imagem digitalizada: © Albano Mendes de Matos (2014). Todos os direitos reservados.


A professora disse, então, aos alunos que fizessem uma redacção sobre os objectos que tinham levado.

A minha neta fez a seguinte redacção:


«O AEROGRAMA

No baú das recordações, encontrei uma caixinha de cartão muito bonita. A caixinha foi carinhosamente forrada com um papel brilhante enfeitado com grinaldas de flores, anjinhos e corações. Abri-a, curiosa, e lá dentro um laço de seda azul apertava um montinho de cartas amarelas. Escolhi uma, mirei-a de frente e no verso.

Dentro de um rectângulo, no canto superior esquerdo, li: “O transporte deste aerograma é uma oferta da TAP aos soldados de Portugal.” Então, percebi que a cartinha amarela se chamava aerograma. Foi escrito pelo meu avô para a minha mãe. E fiquei a saber que o meu avô tinha sido um soldado de Portugal!

Investiguei um pouco e fiz montanhas de perguntas sobre os simpáticos aerogramas.

Descobri que através deles os “soldados de Portugal” comunicavam com os familiares e os amigos. Antigamente, não existiam telemóveis, nem Internet e poucas pessoas tinham telefone em casa. Por isso, quando se estava longe, escreviam-se muitas cartas, neste caso, aerogramas. O avô, nessa época, encontrava-se em comissão militar, na Guiné-Bissau. Esteve lá dois anos e, durante esse tempo, só veio à Metrópole (Portugal) quatro vezes. Assim, longe, enviava muitas cartas, aerogramas e postais.

Os aerogramas tinham uma alcunha, contou-me o avô. Eram os “bate-estradas” porque chegavam a todo o lado onde estivessem soldados. Imagino que naquela época, visto do céu, o nosso país devia ser amarelo, pois eram tantos os aerogramas que voavam de um lado para o outro e eram tantos os soldados que estavam na guerra!

Ser militar devia ser muito doloroso! A avó confessou-me que, sempre que recebia uma carta do avô, fixava a data e pensava:“Pelo menos neste dia estavas vivo e de saúde; hoje, já não sei se estás bem.”

Também fiquei a saber que quem inventou os aerogramas foi o Movimento Nacional Feminino. Era um movimento de senhoras que apoiavam os militares do Ultramar.

Entretanto, pedi autorização ao meu avô para ler publicamente algumas das suas palavras»:

"Bissau, 25 de Setembro de 1973

"Querida Rita

"Como vais de saúde? Bem disposta?

"Tens trabalhado muito? Olha que a escola está quase a chegar e este ano já é mais difícil. (...)

"Aqui, vai tudo na mesma, só mais cansado e aborrecido. Enganei-me no emprego. (...)

"Muitos beijos do teu pai

"E assina."

Passados dezanove anos: nasci.

Passados mais onze anos: estou aqui a contar esta história.»
Lúcia Maria Matos Carreira

2. Comentário de do editor MR:

Fica aqui o desafio ao nosso último grã-tabanqueiro, nº 652, para abrir o "baú" das suas recordações e continuar a partilhar, connosco histórias e memórias do seu/nosso tempo... Recorde-se que ele terá sido o último militar português a vaguear pelas ruas de Bissau, na noite de 13 para 14 de outubro de 1974, antes de apanhar o último avião para Lisboa. Eu, "pira de Mansoa", também estou nesta lista dos últimos soldados do império, tendo regressado em 15 de Outubro de 1974, na última viagem do T/T Uíge, com as últimas tropas portuguesas que estiveram no CTIG.

3 comentários:

José Marcelino Martins disse...

Caro Mendes Matos, camarigo.

É realmente extraordinário o "que se lê" nas entrelinhas deste post.

Da guarra não se falava aos filhos; mas fala-se nela, abertamente, com os netos.

Porque será?

E concluí que, por já estarmos mais distantes dela, apesar da guerra estar sempre presente, há um "outro tipo de abordagem" por parte das crianças.

Tenho um neto, hoje já com 18 anos, que me acompanhou durante anos, chegando a ir comigo, ao Arquivo Histórico, "fazer pesquisas" e, pediu-me, uma boina igual à minha.

Será, tambem, porque "hoje" já se tem amigos da escola de origem africana? É possivel.

O outro neto, de 3 anos, viu o meu album e perguntou, com voz de mimo:
- São "petos, vú"? É teu amigo?
A "Maía" (descendente de africanos) tambem é "peta".

Abraço. Longa vida aos AVÕS, e um futuro brilhante para os NETOS.

Luís Graça disse...

Albano:; Fiquei comiovido com a ternura da tua neta!... Que coisa linda, abre-se o blogue e ganha.-se o dia ou pelo menos a manhã...


(...) "Os aerogramas tinham uma alcunha, contou-me o avô. Eram os “bate-estradas” porque chegavam a todo o lado onde estivessem soldados. Imagino que naquela época, visto do céu, o nosso país devia ser amarelo, pois eram tantos os aerogramas que voavam de um lado para o outro e eram tantos os soldados que estavam na guerra!

"Ser militar devia ser muito doloroso! A avó confessou-me que, sempre que recebia uma carta do avô, fixava a data e pensava:“Pelo menos neste dia estavas vivo e de saúde; hoje, já não sei se estás bem.” (...)

Dá uma beijinho às tuas mulheres!

Luís


PS1 - No leste onde estive (setor L1, Bambadinca), também chamávamos, ao aerograma, o "corta-capim" já que ele era lançado pelo ar, como se fosse um carta de um baralho, para o seu destinatário o apanhar. A partir de um sítio alto, por exemplo, a viatura do correio (que vinha de Bafatá)...

PS2 - Albano, se calhar , essa "caixinha de cartão muito bonita" (...), "carinhosamente forrada com um papel brilhante enfeitado com grinaldas de flores, anjinhos e corações", que a tua filha guarda ainda hoje, deve ter outras mais coisas interessantes sobre o teu tempo de Bissau (1972/74), que queiras e possas partilhar sem violar ou desrespeitar a vossa intimidade...

Hélder Valério disse...

Caros camaradas
Caro Albano Matos

Esta chamada de atenção para a questão dos aerogramas é valiosa, principalmente pela forma como o tema apareceu.

Colocar a 'criancinha' a interessar-se pelo que aquele "simples" papel representou, para quem o escreveu, para quem o recebeu, pelo que em si mesmo revela sobre uma época e os acontecimentos nela vividos, foi uma forma criativa, habilidosa, que 'deu frutos' de falar do passado sem o 'impingir'.

Como já outros comentários referem o tal baú deve conter mais 'tesourinhos'....

Abraço
Hélder S.