segunda-feira, 31 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12917: Notas de leitura (577): "Eleições em tempo de cólera", por Onofre Santos (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Outubro de 2013:

Queridos amigos,
Está aqui uma análise serena e rigorosa dos acontecimentos guineenses entre 2003 e 2005.
A deposição de Koumba Yalá por um golpe militar que trouxe alteração profunda à vida constitucional. São tempos de transição (mas será que alguma vez a Guiné viveu fora da transição?), haverá eleições e formar-se-á uma coligação entre o PAIGC e o PRS. A sombra de Koumba é uma constante da política guineense. E o exilado Nino Vieira regressa e é reeleito.
Onofre dos Santos honrou a literatura portuguesa com crónicas de grande valor e de altíssima qualidade literária. Talvez seja tarde para o editar em Portugal. Mas pelo menos os guineenses deviam conhecer as advertências que ele lançou à política do sacrificado país.

Um abraço do
Mário


Um enternecido olhar luandense sobre a Guiné-Bissau (2003-2005) - II

Beja Santos


Devido ao seu trabalho na Comissão Eleitoral da Guiné-Bissau, o angolano Onofre dos Santos acompanhou de perto os acontecimentos políticos guineenses entre 2003 e 2005. Previam-se eleições, mas antes houve um golpe de Estado em 14 de Setembro, a Constituição foi suspensa, o presidente Koumba Yalá foi deposto e instituído um Comité Militar. Seguiram-se negociações, vários chefes de Estado de países vizinhos intercederam. Os militares tomaram conta do poder, uma Carta de Transição Política passou a regular de forma jurídica os efeitos do golpe de Estado. Nomeou-se um Presidente da República de Transição. O que parecia uma alvorada da reconciliação não o foi. Ao longo do seu livro “Eleições em tempo de cólera”, Edições Chá de Caxinde, 2006, Onofre dos Santos explica porquê. Quando o Presidente da República de Transição assumiu funções, foi confrontado com questões básicas, altamente prementes: era preciso obter financiamento para pagar um ano de salários atrasados, depois criar uma atmosfera de estabilidade para governar com alguma autoridade. Onofre dos Santos escreve artigos para um jornal de Angola, Folha 8, regista as suas impressões pessoais de um país que ele passou a amar. Por exemplo, o fascínio do mercado de Bandim, “uma área de mais de 30 mil metros quadrados, em plena cidade de Bissau, onde há meio século havia um pequeno entreposto na encruzilhada de três reinos tradicionais e onde hoje, diariamente, transitam mais de 100 mil pessoas e se transacionam produtos no valor de mais de um milhão de dólares. Não admira que Bandim seja não só a praça mais concorrida e extensa da Guiné-Bissau, como a sua principal praça comercial e financeira. Os seus artigos vão dando conta das decisões tomadas ou adiadas". A propósito das eleições para o Supremo Tribunal de Justiça refere as flagrantes e incessantes violações do princípio da separação dos poderes: o presidente do Supremo Tribunal de Justiça tinha sido compulsiva e ilegalmente substituído e preso, sendo frequente os juízes serem substituídos e mudados sem justificação regulamentar. Nino Vieira tinha exonerado o presidente do Supremo Tribunal de Justiça em 1994. Koumba Yalá despediu o presidente antes de ter sido apeado pelo golpe de Estado. Temos aqui alguns indicadores do despotismo mascarado de democracia.

Para quem quer saber o que é preparar um ato eleitoral na Guiné-Bissau, o livro de Onofre dos Santos é leitura suculenta. Por exemplo, as diásporas, há guineenses nos países africanos à volta, há centenas de guineenses na Ilha de Lançarote, em Portugal (não esquecer que são dados do tempo) residem cerca de 80 mil cidadãos guineenses. Há votantes possíveis em Dakar, Ziguinchor, Conacri, Banjul e Nouachkot, mas também Madrid e Paris. Traça o retrato (bem lisonjeiro) do general de quatro estrelas Veríssimo Seabra, homem que contava com um currículo notável, incluindo experiência internacional. Onofre especula como se irão consorciar o Presidente de Transição e o comité militar e os órgãos democraticamente eleitos nas eleições que se avizinham. Deploravelmente, esta conjetura deixará de ser interessante quando o general Seabra for assassinado com um tiro na nuca. Descreve garridamente o carnaval em Bissau, aprecia sobretudo os grupos dos Bijagós “com as suas pinturas guerreiras, as suas máscaras e adereços, as jovens com as suas famosas saias de ráfia mostrando toda a altura da perna esbelta e adolescente”. Comenta um livro que acaba de ser publicado “Páginas de história política, rumos da democracia”, de Fernando Delfim da Silva, político proeminente. Foi considerado um provável sucessor de Nino Vieira, era seu protegido. Ora no livro Delfim da Silva coloca Nino na cadeira de réu pela autoria do golpe militar de 14 de Novembro. O que Onofre não sabe é que quando Nino Vieira reassumir poder Delfim da Silva estará de novo a seu lado.

O autor observa a inquietação dos chefes religiosos, a começar pelos católicos. Nas suas homilias, os bispos de Bissau e Bafatá pedem insistentemente um discurso realista, que se fale verdade e que não se mate a esperança. Há momentos de desânimo, como aquele que transmitiu o bispo de Bissau dizendo que qualquer que seja o resultado tudo vai ficar na mesma porque destas eleições não vai emergir nenhum líder com o carisma e autoridade necessários para resolver os males que afligem a Guiné-Bissau.

Em Março de 2004, o cenário político fica ainda mais baralhado quando o Supremo Tribunal de Justiça considerou inválida a declaração de renúncia de Koumba Yalá. E escreve uma observação que pode funcionar até aos dias de hoje, a propósito de Koumba: “Ele é na política guineense um ponta de lança invejável, fazendo avançadas surpreendestes sempre com os olhos postos na baliza e capaz de virar o jogo até ao último minuto da partida”.

Feitas as eleições, o PRS, o partido fundado por Koumba e que fora vencedor em 1999, resolve protestar por questões manifestamente insignificantes, o Supremo Tribunal de Justiça indefere. Carlos Gomes Júnior, presidente do PAIGC, foi indigitado pelo Presidente da República de Transição como Primeiro-Ministro. E a observação de Onofre sobre a votação obtida pelo PRS é do maior interesse: “Veio demonstrar que este partido já não se concentrava apenas nas regiões onde a população de etnia Balanta está particularmente localizada mas estende de facto a todo o território nacional, ou quase. Na realidade, se excetuarmos Bissau, o PRS acaba nestas eleições exatamente a par do PAIGC em número de votos o que é um resultado inesperado. Apesar de derrotado nas urnas, o PRS emerge destas eleições como um partido nacional que não era de facto e esta alteração das circunstâncias, só por si, muda toda estratégia que envolvia até agora o partido criado por Koumba Yalá e considerado como um partido destinado magnetizar o eleitorado da etnia Balanta”.

A seguir o autor espraia-se longamente sobre Angola, os estudiosos da realidade angolana encontram aqui pano para mangas, não sendo um constitucionalista Onofre dos Santos conhece profundamente a política angolana, como se depreende das suas riquíssimas observações, e conhece África e revela uma grande integridade, e assim se compreende pela escolha que as Nações Unidas para observador de variados atos eleitorais em todo o continente. E é culto e estudioso como se pode ler no seu relato sobre a fortaleza de S. Jorge da Mina, de onde ele escreve: “Sentado no areal que circunda a fortaleza de S. Jorge da Mina, vendo os barcos à vela que sulcam a sua baia, recordo Luanda e os últimos vestígios do Império que lá e aqui ainda despertam sentimentos contraditórios, uma saudade indefinível de um tempo que já passou à história, mas que nos deixou irmanados, portugueses, angolanos, guineenses, cabo-verdianos, santomenses, moçambicanos, macaístas e timorenses. A Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, nos anos 50 e 60 do século passado, foi a placa-tornante dos muitos que por lá passaram e de lá partiram para fazer história nos seus próprios países. O Império nos irmanou e o Império determinou o nosso destino”.

As crónicas sucedem-se, Nino Vieira é candidato presidencial, o general Veríssimo Seabra é assassinado, o fantasma sobre os direitos humanos voltou a cair pesadamente sobre a Guiné, Nino é eleito, mostra ser um corredor de fundo, os bichos voltam a fazer apelo à reconstrução nacional e referem que a conciliação exige perdão, perdoar é uma opção, implica um ato de vontade para pôr acima dos interesses de grupos, de etnias, o interesse do bem-comum e da Pátria; Koumba Yalá regressa à cena política, como regressam os rumores de atentados e liquidações sumárias. É um belíssimo livro de crónicas, que fatalmente teria que terminar com esta frase: “A Guiné, vou ter de a amar de longe, mas todos os dias rezarei para que os que ficam a amem de verdade, mais e melhor do que eu”. Os guineenses e os portugueses só têm a ganhar em ler esta prosa vibrante, de alta qualidade, de tão sincera esperança.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 28 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12908: Notas de leitura (576): "Eleições em tempo de cólera", por Onofre Santos (1) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Luís Graça disse...

“A Guiné, vou ter de a amar de longe, mas todos os dias rezarei para que os que ficam a amem de verdade, mais e melhor do que eu”.

Obrigado, Onofre Santos, você roube-me as palavras!.. Há grandes africanos lusónos, e por eese mundo fora muitos lusófonos, que continuam a amar a Guiné a rezar por ela, a Deusm a Alá e aos bons irãs, para que elea ecnontre a sua picada, a da paz, da justiça, da liberdade, do futuro...

Obrigado, Beja Santos, por esta notável nota de leitura. Inveja essa tua capaacide de síntese!