sexta-feira, 28 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12908: Notas de leitura (576): "Eleições em tempo de cólera", por Onofre Santos (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Outubro de 2013:

Queridos amigos,
Mais uma agradável surpresa, crónicas em português de estilo de um luandense que foi colocado na Comissão Eleitoral da Guiné-Bissau, quase todas elas foram escritas em Bissau e publicadas num semanário de Luanda.
Trata-se de um olhar agudo, cuidado e profundamente afetivo. Despedir-se-á, dizendo mesmo: “A Guiné, vou ter de a amar de longe, mas todos os dias rezarei para o que ficam a amem de verdade, mais e melhor do que eu”.
Ao longo destas crónicas, assistiremos a um golpe de Estado, ao aparecimento de um Conselho Nacional de Transição e a um novo ato eleitoral do qual resultou o regresso de Nino Vieira.
Pergunto-me como foi possível ter até agora ignorado a existência deste talentoso cronista angolano.

Um abraço do
Mário


Um enternecido olhar luandense sobre a Guiné-Bissau (2003-2005) - I

Beja Santos

“Eleições em tempo de cólera”, por Onofre dos Santos, Edições Chá de Cachinde, Luanda, 2006, apanhou-me completamente de surpresa. O autor desempenhou em Luanda o cargo de Diretor-Geral das Eleições e a partir daí andou em trânsito por diversos teatros eleitorais. À República da Guiné-Bissau, onde esteve em 1994 como coordenador das Nações Unidas dos Observadores Internacionais nas eleições que elegeram o Presidente Nino Vieira, Onofre dos Santos voltou em 2003, tendo acompanhado o golpe de Estado que depôs o Presidente Kumba Yalá, e prestou assistência técnica pelas Nações Unidas nas eleições presidenciais de 2005 que consagrou o regresso ao poder de Nino Vieira. É exatamente nesse período de 2003/2005 que Onofre dos Santos foi enviando de Bissau para um semanário luandense (Folha 8) as suas crónicas cujas temáticas por vezes extravasam as realidades eleitorais guineenses.

Havia eleições marcadas para Outubro de 2003, na Guiné, mas um golpe militar derrubou o presidente Yalá, seguiu-se um período de transição moroso e complexo que ele descreve admiravelmente. O livro de crónicas é mesmo uma surpresa, subjacente ao cronista atento está um escritor de primeira água. Basta ver esta descrição junto ao porto de Pindjiquiti: “No cais é a imobilidade total dos barcos presos na lama que a maré vazia deixou a descoberto, quais passarinhos presos no visgo do caçador. Homens e mulheres em pequenos grupos também apenas parecem esperar que as águas subam enquanto um balafon invisível vai ressoando a marcar o tempo que esse não para nunca. Quando a maré lentamente começar a subir a lama verde acinzentada vai-se animar, endireitando pouco a pouco cada uma das embarcações encarapinhadas no molhe. Mais uma partida para longe, para as ilhas, para o paraíso escondido dos Bijagós. Vêm-nos à mente as recordações de enxames de morcegos gigantes volteando ao entardecer entre os telhados arruinados e as árvores frondosas e centenárias de Bolama”.

Explica ao leitor como se está a processar. Entra diretamente nas contradições que envolveram a postura política de Kumba Yalá: é presidente mas não comanda o PAIGC, o seu PRS, partido que o apoiou e apoia, não é maioritário. O presidente parecia apostar numa nova geração de políticos, com formação académica, acreditou ser possível uma governação sobre a égide da unidade nacional. Falhou, foi incapaz de pôr em prática esse sentido da reconciliação. O presidente confia que as novas eleições ratificarão o seu projeto. Num fim de semana, visita os Bijagós, vai até Bruce, a praia mais famosa de Bubaque. Vai numa carrinha carregada de jerricans de vinho de caju: “Lá me enfiei o melhor que pude e seguimos pela única estrada que corta a ilha e vai quase até ao outro extremo. Foi o presidente Luís Cabral que mandou construir esta estrada, explicam-me. Mas depois ninguém mais cuidou dela e veja o estado em que ela se encontra”. E vem o golpe de Estado, os militares deram voz à insatisfação popular, como ele comenta: “Os buracos financeiros cada vez mais profundos e escabrosos deixavam desesperados governantes e governados. Os governantes sem soluções eram despedidos uns atrás dos outros com o rótulo de incompetência com que se pretendia aplacar o descontentamento cada vez menos resignado dos funcionários, militares e trabalhadores sem pagamento desde o princípio do ano. No rol de despedimentos com ou sem justa causa entraram uns Juízes do Supremo e os Deputados da Assembleia Nacional Popular. Como todos os que não têm meios financeiros, Koumba viveu do crédito e acabou quando este se esgotou”. E tece uma consideração sobre a natureza da destituição: “Não tendo sido disparado um único tiro, este golpe não foi um verdadeiro golpe de Estado. De facto, todos o apoiaram, desde os partidos às igrejas e organizações da sociedade civil. Até o próprio Presidente veio a anuir em retirar-se voluntariamente da Presidência (…) Entretanto um governo de transição de unidade nacional está na forja com a provável bênção do Bispo de Bissau”.

O que parecia apaziguador deu origem a desacordos infernais, desentendimento entre os partidos e a sociedade civil. Arranjou-se um Presidente da República de Transição “que goza de uma absoluta e geral confiança pela sua reputação impoluta como um homem de bem”. O autor recorre à figura do jugudés (jagudi) para falar da agitação da classe política, rubricaram um novo pacto, “os representantes dos partidos políticos vão debicando pastas ministeriais e posições na hierarquia do Estado, emprestando a sua legitimidade representativa aos reais detentores do poder. Francisco Fadul protestou. A carta foi assinada na presença de 25 generais ou oficiais superiores das forças armadas, os representantes de 24 partidos políticos e de 8 organizações da sociedade civil. O Bispo de Bissau, D. José Câmanate na Bissign, Balanta, apela à reconciliação e escreve em carta pastoral: “Sonhemos e trabalhemos para que a Guiné-Bissau possa encontrar o seu verdadeiro caminho para o desenvolvimento do exercício das Leis, da Democracia, do Trabalho, da Honestidade, do Diálogo, da Justiça, da Paz, da Credibilidade”. Fica de pé um Conselho Nacional de Transição, uma espécie de Parlamento, emana do Comité Militar, que engloba todos os generais e oficiais superiores revoltosos.

Transição? A Guiné-Bissau nunca saiu da transição, mas agora tem um presidente com um mandato previsto de um ano e meio e um governo que deve administrar o País até que um novo governo constitucional saia das eleições previstas para Março de 2004. E o cronista questiona: “A reflexão que se impõe é a de descortinar a natureza do regime de transição na Guiné-Bissau, depois da eleição dos novos parlamentares. Renovada que esteja a Assembleia Nacional Popular, ou seja, criadas as condições para os representantes legítimos do povo soberano dizerem o que querem como Constituição e como Governo do País, qual o papel que estará igualmente reservado aos autores do golpe de 14 de Setembro, isto é, qual o destino do Comité Militar de Restituição da Ordem Constitucional e Democrática”.

Os militares aparecem pois em força neste regime de transição, misturam-se com todos os partidos políticos (ou quase), com as religiões e com as organizações da sociedade civil. Aprovou-se uma Carta Política de Transição. E o cronista aproveita para fazer uma leve digressão sobre o aparato constitucional guineense. Recorda que só em 1993 é que foi adotada uma Constituição aberta ao pluralismo político. A Guiné consagrou um semipresidencialismo em que o poder do Presidente da República é de algum modo contrabalançado pelo poder do Governo e do seu Primeiro-Ministro. O Presidente da República nomeia e exonera o Primeiro-Ministro tendo em conta os resultados eleitorais e ouvidas as forças politicas representadas da Assembleia Popular. Em 2002, a Assembleia Nacional Popular aprovou alterações constitucionais no sentido de cercear os poderes presidenciais. Kumba Yalá não gostou, não promulgou e dissolveu a Assembleia Nacional Popular. Com este seu gesto, terá porventura lançado uma decisiva pazada de cal na sua sepultura.

(Continua)
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Nota de editor

Último poste da série de 24 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12895: Notas de leitura (575): "Como Fui Expulso de Capelão Militar", por Pe. Mário de Oliveira (Mário Beja Santos)

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