sexta-feira, 21 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12872: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (6): Porto do Carro, a minha aldeia, e Canchungo (ex-Teixeira Pinto), ontem e hoje

1. Sexto episódio da série "Acordar memórias" do nosso camarada Joaquim Luís Fernandes (ex-Alf Mil da CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974):


ACORDAR MEMÓRIAS

6 - Porto do Carro, a minha aldeia, e Canchungo (ex-Teixeira Pinto), ontem e hoje

A figura do ancião, da estória do porco abusivamente extorquido, com o seu olhar penetrante, tem-me acompanhado ao longo dos anos, fazendo-me lembrar pela semelhança, a figura de um outro ancião, da minha aldeia natal, Porto do Carro, quando ainda garoto de 7, 8, 9, 10 anos, me juntava com os outros garotos vizinhos, no largo do Casal das Pombas, palco de todas as brincadeiras e que confinava com o arneiro (quintal) pertença do “Ti Bajona”, o “homem grande daquela tabanca”. Parecia-me um gigante, com os seus pés sempre descalços e negros, as calças de cotim, que tinham sido cinzentas, com uns atilhos nos tornozelos e na cintura, camisa e colete escuros, barrete tão velho quanto desbotado, barba grande e pigarça. Uma figura que inspirava medo e respeito e que a garotada, evitava desafiar ou melindrar, não invadindo o seu espaço. Uma figura singular e tradicional nos usos e costumes, que ainda hoje, povoa as memórias dos garotos desse tempo.

Rapazinhos “djubis” no seu espaço e tempo de todas as brincadeiras, a lembrarem-me que poucos anos antes eu brincava como eles. Era só trocar a vaquita pela burrita e um pouco mais de roupa. (zona próxima do quartel)

Cais do rio Baboque em maré alta, próximo do quartel. Propiciava mergulhos aos “Djubis” e aos soldados algumas pescarias com o recurso do rebentar de uma granada. A recordar os meus tempos, na minha aldeia.

Há 55 anos, as ruas da minha aldeia, assim como o largo do Casal das Pombas, eram de terra batida. Não havia água canalizada, nem esgotos, nem tão pouco eletricidade, tal como ainda hoje nas tabancas de Canchungo. Também como ainda hoje em Canchungo, havia muitos meninos que brincavam na rua até noite dentro, em segurança, descalços, na terra batida, do largo do Casal das Pombas. (No meu ano, entrámos 22 para a primeira classe).

Hoje, as ruas e o largo do Casal das Pombas da minha aldeia estão asfaltados e limpos, têm água canalizada e esgotos, eletricidade e iluminação pública noturna, mas escasseiam os meninos. Algumas famílias continuam carenciadas mesmo que alguns calcem ténis de marca. Mas já não brincam na rua em segurança. E a escola, um dia destes fecha por falta de meninos.

Esta constatação, a par de outras, causa-me tristeza: ver o meu país a definhar, a envelhecer sem esperança. E não tinha que ser assim! Não foi com este futuro precário que a minha geração sonhou! Não foi para um país, com o presente e o futuro comprometido, adiado, como se afigura hoje, que trabalhámos, sofremos e lutámos!...

Mas... e os meninos de Canchungo?... Os que sobrevivem à subnutrição e à doença?...

Continuam a brincar descalços, na terra batida dos largos das suas tabancas, às escuras, tal como há 40 anos, quando eu me fazia criança e brincava com eles, nas suas rodas e eles me chamavam de manta, que eu usava como indumentária, a tiracolo e com que me agasalhava, nas frias noites e madrugadas, em voltas, nas proximidades de Canchungo, que penava, quando palmilhava ou me acoitava, mas sempre em vigilância, para que nenhum mal acontecesse.

Rapazinho que vinha recolher ao arame farpado, junto dos postos de sentinela, as sobras (restos) da comida que os soldados lhe davam. Perante a realidade que observava questionava-me: O que andamos nós aqui a fazer? Que guerra é esta? Como se não deve sentir revoltado este povo?... A nossa presença deverá ser uma afronta!...

Eu revivia e recordava os meus tempos de garoto, no largo do Casal das Pombas, brincando com os meus vizinhos, a correr atrás da bola... e dos sonhos... que quando fosse um homem haveria de ajudar a construir um mundo melhor, mais justo e fraterno. E aonde vão os sonhos?... Continua quase tudo do essencial por fazer: a justiça, a solidariedade...

A fotografia do Ioró Jaló, pela sua parecença com a do ancião da estória do porco, interpelou-me. Quem era este homem? Poderia ser seu filho, sobrinho... Só que no seu olhar não via o ódio e rancor que vi no do outro. Tão só súplica e complacência. Penso nele e em todos os outros na sua situação. Que herança madrasta, nós portugueses lhes legámos! E agora quem os ajuda e auxilia na sua penúria e sofrimento?...

Foto do Ioró Jaló, ex-milicia no Pelundo, (Vd. Postes P2451 ou P5414) 
(Com a devida vénia ao Dr. António A. Alves)

Fotos de: Mama Samba; José Ussumane Injai; Demba Injai; Joaquim Gomes; Bondon Monteiro. (Vd. P2451 ou P5414)
Com a devida vénia ao Dr. António Alberto Alves pelas fotos e bem haja pela iniciativa. Bem hajam todos os que têm ajudado, de algum modo, a minorar o seu sofrimento.

Portugal, enquanto país ocupante daqueles territórios durante 5 séculos, deveria e poderia ter feito mais e melhor do que fez! Será que ainda há condições, espaço de manobra e tempo, para ajudar aqueles povos a saírem da situação em que se encontram e alcançarem uma vida melhor, com paz, desenvolvimento e prosperidade? Assim o desejo e espero.

Gostaria de ter vida, saúde e alguns recursos económicos para poder fazer algo também. Tenho algumas ideias, mas sozinho pouco poderei fazer. Juntando-me a outros e organizados, poderíamos fazer mais. Por que não a “Tabanca Grande” ousar ir mais além? Ser mais interventiva na “coisa pública”; dar mais consequência e visibilidade aos afetos e que estes se concretizem em ações possíveis. Juntos e organizados, poderíamos fazer muito mais a favor do sofredor Povo da Guiné, que nos pede e espera ajuda. E de nós próprios.

Sei que o Blogue não é uma ONG, que há várias a trabalhar e a fazer bem o que podem e onde nos podemos inserir. A ação que preconizo para a “Tabanca Grande” seria de outro nível: vamos chamar-lhe “Grupo de Sensibilização e de Pressão” do maior alcance possível, ao nível político, diplomático... nas esferas nacional e internacional. Será sonhar muito alto?...

Imagem do “Google Maps” da Guiné Bissau, com especial incidência no Chão Manjaco por onde andei, das Ilhas de Pecixe e Jeta até ao Cacheu, que de algum modo conheci e criei laços. Tiveram nestes últimos 40 anos alguma expansão e transformação urbanística, mas continuam tão carentes como então, de desenvolvimento económico autossustentado. Têm alguns recursos, mas há tanto para fazer! Tenho algumas ideias e penso que não deveria deixá-las morrer ou enterrá-las comigo. Mas são tão grandes e eu sou tão limitado, que não sei! Veremos.
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Nota do editor:

Vd. postes da série de:

6 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12802: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (1): Monte Real, 8 de Junho de 2013, o primeiro contacto com a Tertúlia

9 de Março de 2014 > Guiné 63/74 - P12812: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (2): O primeiro contacto com a bibliografia da guerra colonial

12 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12828: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (3) : As minhas pesquisas sobre Teixeira Pinto e o "Chão Manjaco"

15 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12841: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (4): Teixeira Pinto, adaptação às pessoas e ao terreno

18 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12851: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (5): O porco que não consegui comer

2 comentários:

Fernando Gouveia disse...

Joaquim:
Tenho gostado muito das tuas descrições e principalmente das belas fotos, que só pecam por tardias.

Um abraço.
Fernando Gouveia

JD disse...

Caro JLFernandes,
Também partilho da tua constatação de que a nossa presença em África, não valorizou uma boa parte dos territórios. A retirada desorganizada, e a entrega aos movimentos,foi ainda pior para quem esperava construir nações com paz e progresso. No caso da Guiné, avultaram questões étnicas e revanchistas, que nem pesam nas consciências dos responsáveis de cá e de lá - são inconscientes. A situação política, económica e social, revela a maior trapalhada no meio do quase nada. Lá, saca-se tudo a que as armas podem deitar mão.
Por isso, a minha atitude contém um bocado do péssimismo do Gouveia, e outro bocado da tua generosidade.
Organizarmo-nos numa frente para sensibilizar o mundo para os problemas guinéos, não é transcendental, mas já duvido quanto aos resultados.
Naquelas latitudes domina o deserto, que, dizem-me, vai alargando a sua influência. Assim, sugiro duas ONG's da iniciativa de camaradas nossos, e que têm manifestado genuína solidariedade: a Tabanca de Matosinhos, e a Ajuda Amiga, na grande Lisboa.
Abraço fraterno
JD