domingo, 16 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12844: Crónicas higiénicas (Veríssimo Ferreira) (5): Contrastes e coincidências

Anúncio do sabão Lifebuoy, 1902.. Fonte:
Wikipedia. Imagem do domínio público.


1. Em mensagem do dia 12 de Março de 2014, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil da CCAÇ 1422/BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, Pelundo e Bissau, 1965/67) enviou-nos a sua habitual Crónica  Higiénica para publicação.






CRÓNICAS HIGIÉNICAS

5 - CONTRASTES E COINCIDÊNCIAS

P12790
Numa foto está escrito: "três mil soldados para uma piscina".
Claro que fiquei a pensar: Em Bafatá? Paraíso para onde só alguns iam combater... a boa comida... o sossego... o cinema? Mas como três mil? Não será exagero... tanta gente a descansar, ou melhor 12% então, de toda a população militar da Guiné concentrada num só local?

Alembrei-me do tempo que andei lá nos matos (Agosto/65,Julho/66) e da forma primitiva como vivemos, em Bissorã, Mansabá, Manhau, K3, Biribão e respondido a emboscadas várias nas matas, nos caminhos e até no próprio aquartelamento, valendo-nos nessa altura, a artilharia de Farim.

E que bom teria sido se tivéssemos, nós os 150 da CCAÇ 1422 nem que fosse um tanque de lavar roupa, para não termos de ir ao rio gastar granadas para afugentar os crocodilos e banhar-nos em meia-hora, que depois eles voltavam.

P12787
Aqui o contraste... o horror e não a piscina. Esta foi a guerra que conheci.

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"Meus amigos", tal como diz a canção "A ternura dos 40"... "o importante é o sorriso".
Façam-no, descontraiam, recordem, sintam saudades, que isso sim é sinal de que ainda estamos vivos, sentimos, amamos e sofremos. E nem se preocupem se o dinheiro chega e se os impostos vão aumentar. Preocupemo-nos sim com o próximo jogo de futebol qu'o resto nada vale.

E como diz o PR, vamos demorar 21 anos a ser novamente PORTUGAL. Não comento ladrões, que roubam para sustentar a mulher estrabeculosa e os filhos que não comem o suficiente nas cantinas escolares, não comento políticos, nem futebóis, mas comento, por me dizer respeito, esta questão do 21.

É que, vejam bem a perseguição: nasci a 21, casei a 21, cheguei à nossa Guiné a 21, sai de lá a 21 e agora mais o 21 para finalmente deixar a pata protectora das gentes boas que desinteressadamente nos ajudam a pagar mais impostos... nos retiram subsídios.... Sensibilizado me sinto por termos tão bons dirigentes... confesso, pois que se em vez de 21 fossem 22, estragavam-me a mnemónica.

Mais do que tudo até lhes agradeço... pois que me fazem lembrar o tempo que andei de G3 com bipé, capacete na tola, quatro ou cinco cartucheiras cheias no cinto, cantil com whisky Vat 69, três ou quatro granadas de morteiro 60 no torso, mais duas ou três defensivas nos bolsos do camuflado. Mas sei que valeu a pena ter combatido para a construção dum Mundo melhor... ah pois valeu, e como gostaria de voltar aos meus vinte e pouco anos, talvez não os deixasse gozarem assim tanto com o povo que tanto defendem, mas aporcalham porque sabem que já não há revoluções que lhes façam frente.

Mas também morrem e que a morte seja, antes, cheia de sofrimento idêntico ao que estão a provocar. Nesse dia e se calhar até invocarão os Deuses, cujas teorias desrespeitam.

P12817
Caro camarada d'armas, permite-me que te cumprimente pelo desassombro.
Há verdades incómodas para alguns, mas mal de nós se tivermos de desistir ou de pôr por escrito o que sabemos. "Ver para crer" foi dantes e perdoar até será uma coisa boa, mas a verdade é que os crimes ainda não esqueceram e como tal ainda não prescreveram.

Há camaradas brancos e bloguistas que ficaram instalados na Guiné após a "descolonização exemplar" e que por força das pressões posteriores dos mandantes, a tiveram que abandonar devido a perseguições e ameaças. Também o mesmo aconteceu com Angola e deixemo-nos de ser ingénuos.
A que chamarão a isso os puristas? Não foi racismo? E quando a UPA começou a matar brancos em Angola (1961) não foi racismo?

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Hoje 11 de Março e para dar continuidade a essa treta da fisioterapia, enquanto esperava lendo o que já havia lido, fui ouvindo um senhor que procurava estabelecer diálogo, fosse com quem fosse e ali estivesse a aguardar a sua vez e até com quem de novo chegasse.

Olhei-o, vi que precisava de alguém para desabafar e decidi sentar-me ao seu lado. Esteve em Madina do Boé, algum tempo em Nova Lamego, fez um mês de férias em Bissau, foi aos bairros pobres e durante o dia, ouvir a música... ver os pretinhos a dançar e só não se atreveu a ir de noite, pois que se dizia ser perigoso.
Fez a especialidade em Tavira, na mesma altura que eu... foi para Lamego na mesma altura que eu... foi no Niassa... no mesmo dia que eu...
Dói-lhe o corpo todo e gostaria de voltar a ser novo... tal como eu.

Chamaram-me para as massagens... e eu não fui.
Chamaram-no... e ele foi.

Nada falei... apenas ouvi e prometi que na 5.ª feira cá estaremos de novo.
Nem nos "apresentámos"...nem fiquei a saber o seu nome. Vim para casa tremendo e a pensar que afinal estamos mesmo sem ninguém que nos oiça.
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12813: Crónicas higiénicas (Veríssimo Ferreira) (4): Semanas para esquecer

2 comentários:

JD disse...

Karrícimo Verríssimo,
Tenho que felicitar-se pelo modelo de crónicas verrinosas que estás a mostrar. Não te esqueças de mim!
Não por que a verrina seja doce, sem molestar, mas pela graça que lhes imprimes.
E, se alguma vez a verrina for incontestável em relação a trastes (que, parece, ainda os há), também não me vou fazer de lucas, como se não tivesse dado conta.
Eu sei que não estás imbuído de espírito caçador, nem a afeiçoar vinganças, por isso confio no teu bom senso, e no fino sentido crítico, tão bem moldados ao humor alentejano.
Um abraço
JD

Acabadinho de arrivar do Alentejo.

Hélder Valério disse...

Ora cá temos a 'habitual' crónica higiénica do Veríssimo....

E que temos desta vez?
A admiração por dizerem que havia três mil soldados para uma piscina.
Já sabemos, já vimos fotos, da 'piscina de Bafatá'. Agora, três mil.... isso é basófia. A piscina 'estava lá'. Os 'três mil' certamente que não em simultâneo. E não podiam utilizar aquele espaço ao mesmo tempo...
Mas, Veríssimo, tens que entrar com outro factor: o tempo, ou melhor, a data... não podes pensar que as coisas ficaram imutáveis desde os tempos em que por lá passaste.
Nuns casos houve "piorias", nomeadamente no campo militar, mas houve também bastantes 'melhorias'...
Olha, em termos de 'piscinas', quando foi a época do meu contributo, (andavas tu no bem-bom a 'bancar'...) havia em Nhacra, em Farim, Bissau, Bafatá e em outros locais que agora não lembro e outros que não se sabia, por exemplo Piche para onde fui e onde construiram uma que era praticamente nova quando lá cheguei. Olha que aborrecido fiquei!...

Fiquei também a saber da tua afeição por essa ciência a que chamam numeralogia. Parece então que o teu número é o 21. Ou o 3 se se somar 2+1... e o 3 é o número base.
Não há figuras geométricas com 2 elementos, isso dá um ângulo.
A figura base é o triângulo. Três lados. Três vértices. Três ângulos.
A Santíssima Trindade.
Os três degraus básicos, os Aprendizes, os Companheiros, os Mestres.
A Fé a Esperança e a Caridade.
A Liberdade, a Fraternidade, a Igualdade.
A Sabedoria, a Força a Beleza.
Até temos a 'troika'....

Relativamente à última parte da 'crónica' acho que vamos ter continuação das sessões de tratamento. É uma pena se não houver continuação das conversas (a solo) iniciadas. A ti, não fará mal, afinal já superaste relativamente bem as dificuldades dos tempos da guerra e principalmente o pós-guerra, mas a esse camarada, sedento de conversa e principalmente de atenção, acho que poderá fazer bem.
Abraço
Hélder S.