sábado, 15 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12841: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (4): Teixeira Pinto, adaptação às pessoas e ao terreno

1. Quarto episódio da série "Acordar memórias" do nosso camarada Joaquim Luís Fernandes (ex-Alf Mil da CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974):


ACORDAR MEMÓRIAS

4 - TEIXEIRA PINTO, ADAPTAÇÃO ÀS PESSOAS E AO TERRENO


Edifício Sede da Administração Civil em Teixeira Pinto. Estava situado em frente à porta de armas, no início da avenida principal. A casa do administrador já ficava dentro do retângulo do quartel e era uma boa casa com um belo jardim.


Teixeira Pinto, Junho de 1973

Ia entrar no 6.º mês da minha comissão na Guiné, e desde a primeira semana a sonhar com os 35 dias de licença regulamentar, que cheguei a sentir em perigo com a ameaça de uma “porrada”, quando ainda estava na terceira semana.

Já tinha superado muitas dificuldades de adaptação e de funções – adaptação ao clima, a um ambiente pouco hospitaleiro e corrosivo, os perigos e os medos, as saudades torturantes. Já conhecia as tabancas das redondezas de Teixeira Pinto, onde patrulhava de noite e de madrugada em patrulhas de proximidade e segurança, por vezes com emboscadas faz-de-conta (tipo guarda noturno) e durante o dia, em visitas de “A. Psico”.

Já conhecia alguns dos usos e costumes dos manjacos, da sua cultura e religião, tendo assistido a algumas das suas manifestações. Já tinha sentido e vivido o encanto das suas paisagens e dos sons das suas noites, das suas festas e dos seus choros. Tinham sido meses de intensa aprendizagem e atividades diversificadas.

Foto tirada em Caió, em passagem para uma visita a uma das Ilhas, Pecixe ou Jeta. Fazia “escolta” e companhia ao Alf. Médico Mário Bravo (ao centro). Ao meu lado, o Alf. Mil. Teixeira (?) da CCS. Era o responsável pelo parque-auto e pelos mecânicos do batalhão. À direita do Mário Bravo, o Alf. Mil. Moreira, que estava na sede da companhia em Carenque. Era pacífica esta zona do chão manjaco; Só os mosquitos atacavam. Apetece lá voltar.

E também já tinha muitos quilómetros de estrada, em escoltas a colunas, ao Cacheu e a João Landim. Já levava 2 meses de mata, do Balenguerez a Ponta Costa. Muitas horas de mil perigos e sofrimentos e algumas noites no “hotel estrela da mata”, entregues a nós próprios e aos mosquitos. E sentia ter conquistado a confiança e a amizade dos homens do meu grupo, por quem me via respeitado como chefe e protegido como se fosse o irmão mais novo...

Deslocação por via fluvial, por um dos canais do rio Costa-Pelundo. Partindo de Bassarel, seriamos lançados na margem sul da Península do Balenguerez. Era a primeira vez que o meu grupo fazia esta ação e o homem da lancha não conhecia o canal. Consultando a carta militar, eu descortinava entre tantos canais que o rio tinha na zona, qual era o que deveríamos seguir. E acertei. Mas não me livrava do receio de termos o IN à nossa espera, escondido no mangal, no tarrafo, ou na orla da mata, para a macabra receção. E sentia grande vulnerabilidade. Mas tudo correu bem.

Mas continuava a sentir-me tratado por alguns dos meus pares e por alguns superiores como o sempre alf. “pira” e algumas vezes senti-me hostilizado. Talvez que inicialmente, para eles, eu fosse um tipo um pouco estranho, que não alinhava em todas as suas borgas, antes se isolava, meditativo e até melancólico, a afirmar ideais humanistas e princípios com forte convicção, a questionar as razões daquela guerra, a expor valores em desuso entre a tropa local e diferente dos da sua classe, pondo-os em causa, já “velhinhos” e “apanhados” do clima. Naturalmente eu seria suspeito e era necessário manter debaixo de vigilância e ameaça. (Com o tempo fomo-nos conhecendo e ganhando confiança, respeito e camaradagem).

O meu quarto era o meu refúgio principal. Aí purgava com lágrimas a dor da saudade, na mágoa e na súplica e encontrava a Paz. Aí rezava, escrevia à minha noiva e à família, lia e ouvia música. (Belas músicas que eu ouvia). Mas algumas vezes saía e ia passear sozinho. Um dos locais para onde ia era este que a foto documenta: Nas traseiras do quartel, perto do cais, no limite do rio Baboque. Apreciava a paisagem, meditava e dava largas aos sonhos e conjeturas. Pensava naquele povo, que sofria as consequências da guerra e do subdesenvolvimento e como tudo poderia ser diferente, se uma boa parte dos recursos materiais e humanos gastos na guerra, fossem aplicados no desenvolvimento. E lembrava e meditava as palavras do Papa Paulo VI: - ”O Desenvolvimento é o novo nome da Paz”. (Vd. Carta Enciclica Populorum Progressio – PP87, Março de 1967)

Valia-me a boa relação com os homens do meu grupo, que dia a dia vinha ganhando em confiança e camaradagem. Com eles me identificava e com eles sofria e confraternizava. Sentia também o apoio e confiança do comandante da minha companhia, Cap. Mil. Gouveia.

Confraternizando com o meu grupo, após uma caçada clandestina a 2 javalis em Babol, próximo de Ponta Teixeira. O convívio foi fora do quartel (tinha que ser) num tasco de um senhor libanês de quem não recordo o nome. Fomos visitados por convite, pelo Comandante de Companhia, Cap. Mil. Aires da Silva Gouveia, que estava de Oficial-dia. À sua direita, o Fur. Mil. Op. Esp. Louro, que era da zona de Santarém. Um destemido guerreiro. Gostaria de saber dele para o contactar. Deixo o apelo a alguém que o conheça e queira fazer o favor de me informar.

E tinha um amigo, confidente e confessor, o Alf. Capelão Padre João (de quem gostaria de saber para contactar). Também tinha um grupo de jovens adolescentes, nativos, rapazes e raparigas, dos doze aos dezassete anos, para quem veiculava a minha amizade, quando me reunia com eles, lhes expressava os meus sentimentos fraternos, falando-lhes de Jesus Cristo e do Amor de Deus Pai, que nos tornava irmãos. Eu sentia-os como a minha família local, sendo eu o irmão mais velho. Como eu gostaria de voltar a encontrá-los, estar com eles e saber do rumo que levaram as suas vidas!

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12828: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (3) : As minhas pesquisas sobre Teixeira Pinto e o "Chão Manjaco"

10 comentários:

Anónimo disse...

Caro Luís Fernandes

Tenho acompanhado as tuas recordações daqueles tempos do CAOP 1 em 73, que leio com muito interesse.
Já compreendi, pelos teus sentimentos de Humanista e não só, que manifestas, deves ter sentido grandes sofrimentos com a realidade que vias. Choques de culturas, atrasos de desenvolvimento e pior que tudo a guerra.

Como apresentas hoje uma fotografia em CAIÓ, fui lá várias vezes e daí também visitei a Ilha de JETA, assim como também fui pisar a de PECIXE. Mas agora o que te pedia era se, visitando o P5776, onde publiquei umas fotografias que identifiquei como possivelmente de CAIÓ e BATUCAR, reconhecerias, naquelas em que se veem uns edifícios se eram ou não de BATUCAR ou CAIÓ, já que nunca tive a certeza.

Abraço
JPicado

António Tavares disse...

Camarigos,

O Alferes Miliciano que está, na fotografia, à esquerda do Dr. Mário Bravo é da Foz do Douro.
Chama-se Correia Pinto.

Abraço
António Tavares
Galomaro 1970/72

Joaquim Luís Fernandes disse...

Caro Jorge Picado


Lamento não poder confirmar com absoluta certeza os locais das fotos que nos apresentas no P5776, que já tinha visionado há alguns meses e que achei parecidas com algumas que tenho, do ronco da elevação de Teixeira Pinto à categoria de cidade, em 24 de julho de 1973. Nelas tenho o registo que era um grupo que tinha vindo de Pecixe, portanto da área de Caió. Um dia destes talvez apareçam publicadas a pretexto de falar daquele evento.
A C.Caç. 3461, Tinha pequenos Destacamentos em Caió e em Batucar, que visitei algumas vezes, mas em transito, com pequenas paragens de contacto com o nosso pessoal, mas não percorri estas Tabancas em toda a extensão. Melhor do que eu as conhecerás da tua Apsico.

Batucar era uma tabanca dispersa. Estava-se a construir um reordenamento e alguns dos nossos soldados estavam muito bem aculturados com a população local. Um deles convivia com os manjacos nas suas moranças,falava manjaco e gozava de grande confiança e respeito. Consideravam-no quase como um régulo. Quando veio de férias à Metrópole levou uma mala de roupas e outros presentes. Vive no Montijo e o seu nome é Carlos Caleira.

Caió era maior e com mais população meio assimilada, com escola e atividades de caráter cultural.
Aí vim a encontrar um camarada das Caldas da Rainha e de Mafra que tinha comprado uma bajuda por três contos e quinhentos e vivia com ela maritalmente,para algum escândalo da classe.
Era local de paragem, um tasco de um colono (ou ex-soldado), em frente do qual, havia um largo amplo, local de encontros e de roncos. Creio que também havia um Posto Administrativo. Serão daí todas as fotos?

Poderão ser de outras Tabancas, por exemplo Calequisse, que tinha uma certa importância, mas Batucar não me parece. Mas eu nunca visitei Calequisse e nada +posso confirmar.

Quanto às Ilhas, fiquei com muito boa impressão e o muito que queria dizer não cabe neste comentário. Talvez num futuro poste eu as revisite e fale delas.

O mais que te quero dizer vai no comentário seguinte que este já vai longo.

continua

Joaquim Luís Fernandes disse...

Caro Jorge Picado

Sobre as causas dos sofrimentos que vivi em Teixeira Pinto (decerto todos sofremos,cada qual no seu local e à sua maneira) para além da saudade da "casa", das privações, dos sacrifícios da ação, etc, o que mais me custava era inserir-me naquele ambiente "militar", moralmente corrosivo. A negação dos meus sonhos e ideais.

Eu era um jovem de 21 anos, de ideais puros, forjados num ambiente familiar humilde e de respeito, com uma maturidade e consciência política e social responsável, calejado no esforço, no sacrifício e no rigor, sedento de justiça, de verdade nas relações pessoais, voltado para a construção de um mundo novo que os poetas e cantores da década de sessenta anunciavam e eu via já próximo. Eu já estava quase aí. Era um sonhador.

O que encontrei,(eu fui em rendição individual para uma Unidade que já levava mais de 15 meses de Guiné) foi um ambiente de absentismo, em que pouco ou nada se fazia que justificasse aquele dispêndio.(Atente-se que até então o Batalhão esteve na dependência do CAOP1 com a sua dotação de tropas especiais, Comandos, Páras e Fusos)
Aos soldados eram exigidos grandes esforços; estavam sempre a alinhar que nem escravos. Àqueles a quem menos se lhes dava era-lhes exigido o máximo e eu comecei também a levar por tabela. Custava-me ver esta situação de injustiça e ficar calado. Algumas vezes me manifestei respeitosamente em seu favor e por isso recebi ameaças de castigo.

E sem querer ofender ninguém direi, que o que via em alguns dos militares de carreira (os profissionais) e na suas condutas, não me inspirava o mínimo de respeito ou consideração, antes de repulsa e de desprezo. Eu via em alguns deles, indivíduos odientos, hipócritas, prepotentes e cobardes, racistas e desumanos. Era assim que eu os via e descrevi em algumas cartas de desabafo.
Mas atenção que não os via a todos assim. De alguns guardo gratas memórias de homens bons e dignos.

Quanto à população nativa, à sua cultura e religião, fiquei com boa impressão, especialmente dos jovens com que contatei, mas também das mulheres. Eram dóceis, boas mães, dedicadas ao trabalho e à família. Só por isso mereciam todo o meu respeito.
Os homens poucos contactei.Mais os velhos. Os novos andavam na guerra, dos dois lados; alguns na diáspora. Fiquei com a impressão que não gostavam muito de nós,que eram desconfiados e calões. Mas será que com alguns comportamentos da tropa poderiam estar contentes e satisfeitos?

E fico-me por aqui.

Um abraço
JLFernandes

Anónimo disse...


Ao por a leitura em dia deparei com algumas referências feitas por ti ao que modestamente escrevi. Agradeço.

E desde já aproveito a oportunidade para te desejar uma boa estada entre nós. Aqui estamos sempre a aprender uns com os outros.

Nunca pensei que alguma vez fosse possível lançar uma operação de Bassarel ao Balenguerez via rio Costa Pelundo.

Fruto de visitas quase semanais conheci razoavelmente o único sítio possível de embarque. Dali era possível ver-se o tarrafo horroroso do lado do Balenguerez e o barulho dos motores dos barcos utilizados certamente que poriam em risco o sucesso de qualquer operação. Pelos vistos quem idealizou esta operação não teve em devida conta essas dificuldades arriscando a vida dos seus camaradas. Ainda bem que tudo correu bem.

Também fazes referência a uma caçada em Ponta Teixeira. Presumo que te referes a um sítio na Mata dos Madeiros. Se assim é, garanto-te que quando por lá andei tal não seria possível.

Cumprimentos.
José Câmara

Joaquim Luís Fernandes disse...

Caro Camarigo António Tavares

Muito obrigado pela tua correção. Interpretaste bem a interrogação (?) que tinha colocado à frente do nome Teixeira. Eu tinha na ideia que era Pinto de Sousa. Também já havia um Sousa Pinto(Grã-tabanqueiro) e fiquei na dúvida. desfila com o nome que me suou bem, Teixeira. Mas errei. É então Correia Pinto. Se puderes e quiseres fazer-me esse favor confirma-me o segundo apelido "de Sousa".

Se entretanto te encontrares com este meu ex-camarada, peço-te que lhe transmitas os meus amistosos cumprimentos, com um abraço do ex.alferes Fernandes.

Para ti mais uma vez os meus agradecimentos.

Abraço
JLFernandes

Joaquim Luís Fernandes disse...

Caro Camarada José Câmara

Podes crer que também foram os teus postes que me atraíram a ingressar na Tabanca Grande, como explico no P12802, Já que as razões vão para além da mera tertúlia. São razões de ordem emocional e de busca de vivencias e evidências que tocam o Sobrenatural e sustentam o sentimento da Fé.

Ao ler alguns Postes que me reportaram àquele TO em que atuei, eu arrepiei-me e senti-me a tremer de emoção. Ao tomar conhecimento em como atuaram os que me antecederam (a nível de companhia, Bi-grupo e tropas especiais) e o que aconteceu, confrontando com a minha atuação, um simples pelotão de 30 homens, comigo a comandar sem grande preparação para o fato e se calhar sem grande jeito,operações mal preparadas, sem qualquer apoio previsto e articulado,ter atuado em todo aquele território da margem sul do Balenguerez até ao limite da Zona de Pecau,Bem junto à Caboiana, entre os 2 rios Costa-Pelundo e Caboi, Zonas de contato eminente,(amiúde cruzávamos os seus rastos e ouvíamos os seus tiros) tendo algumas vezes atacado junto à estrada e causado algumas baixas, na fatídica curva de Capó, vendo tudo o que se passou, não tendo perdido nenhum dos que me acompanhavam e o mais que agora não conto, quando li os teus postes em que falavas da Senhora que nunca nos abandonou, o meu entendimento abriu-se. Foi Ela que intercedeu por mim, a rogo da minha Mãe e da minha futura Sogra, mulheres de grande fé e oração que sempre me tinham no seu coração.

E mais não digo agora que a comoção é forte.

Obrigado José Câmara
Um abraço
JLFernandes

Anónimo disse...

Camarigo J Luís Fernandes

Agradeço as tuas explicações que me sensibilizaram, já que nelas identifico muitas semelhanças com o meu percurso e não só.

Quanto às legendas das fotos, tinha de facto muitas dúvidas quanto a BATUCAR e procurei fazer deduções, mas fico agora quase com a certeza de que serão todas possivelmente de CAIÓ.
De CALEQUISSE que visitei igualmente por mais do que uma vez não são.

Abraço
JPicado

Hélder Valério disse...

Meu caro camarada JLFernandes

Leio sempre com muito interesse as tuas contribuições.
Leio sempre e reflicto sobre muitos dos teus comentários, aqui e ali.
Quase sempre encontro pontos comuns.
Quase sempre me identifico em grande parte do que dizes, ou escreves.
Dos teus sentimentos. Das tuas dúvidas. Das tuas perplexidades. Das tuas interrogações e desalentos e logo também dos renascimentos.

É repousante ler-te. Obrigado.

Abraço
Hélder S.

Unknown disse...

Caro Luis Fernandes na foto do edficio da administracao de T. Pinto ao fundo esta o cine canchungo cujo a cobertura foi feita por mim em 7O? o admistrador era FRANCISCO A F SALGUEIRO
pertenci a c.cac, 2637 adida ao b.cac.2905 recordacoes tenho boas e mas deste tempo a mais me marcou foi a perda da minha saude o que ainda houje me atomenta

um abraco desde Toronto Canada F

Jose F.C. Camara