segunda-feira, 3 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12788: Notas de leitura (569): "A Guiné... dos mil trabalhos", em "O Mundo Português", por António Florindo de Oliveira (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Setembro de 2013:

Queridos amigos,
Um jovem de 16 anos oferece-se como marinheiro para a Guiné, em 1894.
45 anos depois escreve as suas recordações… que vivacidade, que argúcia, que observação etnográfica e etnológica! A Guiné mantém-se indisciplinada, irreverente. A lancha-canhoneira percorre-a de uma ponta a outra, procura infundir respeito. O que interessa é o que o marujo vê e guarda nos seus apontamentos. Preparem-se, agora vão subir o Geba e depois vão a Cacine. E a gente pergunta como é que é possível que estas belas peças memorialísticas tenham ficado no olvido.

Um abraço do
Mário


A Guiné… dos mil trabalhos, por António Florindo d’Oliveira (1)

Beja Santos

“Já lá vão bem nove lustros que essa terra me começou a preocupar, ainda bem menino e moço, pois foi o desastre de Bissau de 1891 que me impressionou de tal forma que me levou a assentar praça na Armada, no desejo de servir a Pátria…”.
A revista O Mundo Português, de cultura e propaganda/de arte e literaturas coloniais, publicou em 1939, ao longo de vários números, uma reportagem memorial de alguém que aos 16 anos foi intervir na coluna “pacificadora” dos Papeis que, em 1894, andou por Antim e Bandim. O chamado massacre ou desastre de 1891 marcou profundamente os militares em serviço na Guiné. Uma força destacada para pacificar Papeis, por erro de informação, foi apanhada no tarrafo e massacrada pelos revoltosos. A resposta de Lisboa foi mostrar aos insurgentes a força das armas. Em 1894, a lancha-canhoneira “Honório Barreto”, construída no Ginjal, novinho em folha, com o seu spardeck corrido de ré a vante, com as suas duas peças de tiro rápido, passou a ser a arma dissuasora. A lancha foi rebocada pelo “África” até à Guiné, para Bolama, posto oficial de fundeadouro. Ficamos a saber que comandava a lancha o Tenente Vieira da Fonseca.

"O Mundo Português" era editado pela Agência Geral das Colónias, na revista colaboraram escritores como Maria Archer, Castro Soromenho e José Osório de Oliveira, profusamente ilustrada e com peças de qualidade modernista. Tive sorte nesta ida à Feira da Ladra, por um euro trouxe esta grande revelação, as memórias de Florindo d’Oliveira, um marinheiro que nunca esqueceu a Guiné prodigiosa.

Florindo Oliveira começa por descrever o que viu e o que mais lhe interessou nos Bijagós. Deplora a falta de escolas, ausência de padre, sentiu-se curioso pelos preceitos do fanado e descreve-o. Tem uma curiosidade quase desmedida pelos aspetos étnicos, revela-os com opulência luxuriante: “Lá viemos descendo o Cacheu, que atravessa a região em que mais tipos de povos se encontram, pois aqui são os territórios: dos Mandingas de onde viemos, dos Brames, a quem chamam Buromes ou mais correntemente Mancanhas; dos Baiotes, dos Papeis, dos Felupes; e ainda os extremos ocupados pelos Balantas e Manjacos… Os Baiotes, só os fiquei conhecendo de nome, pois estão no extremo-norte da Colónia, isolados de todos e quase desconhecidos. O seu território toca pelo oeste com o dos Felupes, pelo sul com o dos Papeis. Os Mancanhas, que têm a sua gente cá a mourejar pelos portos, como carregadores, já eu os conhecia bem, com o seu característico barrete de fibras vegetais tão semelhante a um cesto, enfiado na cabeça, e o pano, que à laia de manto trazem pelo dorso, passando por baixo do braço direito e levando essa ponta para cima do ombro esquerdo, pela frente, como muitas das nossas camponesas traçam os seus chales”.

Mais adiante, citando Landerset Simões e o seu livro “Babel Negra”: “Eu acho que seja pela confusão das suas gentes, que pela linguagem não, porque afinal eles entendem-se melhor uns com os outros quando querem e precisam que nós com eles, e muito menos quando não querem ser entendidos”.

O seu relato é vivo, está permanentemente mordido pela curiosidade e não esquece de dar pormenores da sua vida na lancha: andam numa roda-viva, de Bolama para Bissau, levam e trazem gente do “África” e quando este regressou à metrópole com os doentes, a lancha ciranda por toda a parte “cheirando e palpando todo o seu movimento populacional, em que nem sempre havia inocência e franqueza, antes pelo contrário”; descreve o fornecimento da água para a caldeira, vinha em dongos grandes, trabalhados em grossos troncos de poilão e acrescenta: "isto de fazer aguada, não foi uma brincadeira, pois que à torreira de um sol impenitente e nada suave, tínhamos que calcorrear de barris às costas até à nascente, razoável para os pés dos pretos mas não para nós habituados às tábuas do convés, duras mas lisas”; viajam até Buba, região povoada pelos Fulas, um tal Monopatú andava revoltado e descreve a coluna: “Seria para rir se não desse vontade de chorar, o aspeto dessa coluna que recolhíamos a Bolama: umas escassas dezenas de maltrapilhos, descalços, famintos, de armas enferrujadas… E esses homens (nós os marinheiros dizíamos que eram esqueletos com licença de cemitério) que tinham andado léguas e léguas pelo mato dentro, muitas vezes sem comer, e bebendo Deus sabe que água, ali estavam resignados e ainda galhofando entre si, orgulhosos de terem cumprido como o brio português mandava; a lancha percorre toda a Guiné, nela viaja o próximo governador, Pedro Inácio Gouveia, a bandeira tremula no mastro superior, “sentindo-a drapejar sobre as cabeças é que se sente que a noção da pátria não é uma coisa vã, uma ficção”.

Stuart, um dos mais admiráveis desenhadores portugueses, aceita toda a sorte de trabalhos para sobreviver. O mínimo que se pode dizer deste desenho, publicado perto do texto de Florindo d’Oliveira, é que é admirável, devia ser restituído à africanidade em toda a sua pujança, moderno como é.

A observação etnográfica e etnológica acicata-o permanentemente. Vejamos como descreve os Balantas, isto a propósito de uma ida ao Encoche, a impor autoridade aos Balantas descritos como larápios e orgulhosos de o ser: “Talvez o grupo mais numeroso nos diferentes que povoam a Guiné, ocupando a vasta região banhada pelo Mansoa, quase no Geba, em frente de São Belchior, até às margens do Cacheu, cercados pelo interior pelos Mandingas e Fulas e de outro lado por Mancanhas e Manjacos, afigurou-se-me que são os verdadeiros pretos da Guiné, dedicados à terra que cultivam com atividade, empregando a sua inegável robustez, relacionando-se apenas com os Papeis e roubando quanto podem”. A lancha lá vai, no encalço destes Balantas que precisam de intimidação: “Preparado o navio com as chapas de combate colocadas, o que lhe dava aparência de caixa oblonga, contornámos Bissau e metemos ao Impernal, rio tão estreito que as caixas das rodas riscavam as margens e as árvores metiam os ramos por todas as aberturas e cobriam o spardeck. Isso era motivo de galhofa, pois como estávamos nas vésperas do Natal dizíamos que não faltava árvore para os brinquedos da tradição cristã. E não faltaram por completo, porque se apanhou um camaleão num dos ramos”. Missão cumprida, Balantas intimidades, regresso a Bissau onde se passou o Natal. Chegou o tempo dos trabalhos de manutenção: “Para começar bem o ano que entrava, como o navio já cirandou demasiado e precisa de limpeza, encalhámos na praia, junto ao telheiro das embarcações do Governador e do plano inclinado, aonde as lanchas recebem reparações; e, durante oito dias, foi faina grossa de raspagens e pinturas que nos deixavam arrasados. Pretos e brancos, irmanados no mesmo esforço, sujeitavam-se ao mesmo sacrifício. Mas ali não havia operários especiais. À gente do navio é que pertencia fazê-lo”. E aproveita para contar mais um pormenor: “Durante a nossa estada em terra chegou uma deputação de chefes Fulas, com os seus tocadores de violas, a pedir ao Governador licença para perseguir e prender um tal chefe Damá que acusam de pilhagens e assaltos a embarcações e caravanas. Parece que justificaram as suas queixas, pois nos constou que tinham sido autorizados a fazer guerra ao culpado, recendo pólvora para esse efeito. Lá se foram; e tanto era o que nos constou que tempos depois lá apareceu o tal homenzinho preso e o tivemos como hóspede a bordo até que foi deportado”.

Vão buscar a Bissau o Governador Pedro Inácio Gouveia, vão para Geba, região povoada pelos Fulas. Os marinheiros alcunham o Governador de “Frasquinho de Veneno”, era admirado pelo seu saber, seria talvez bilioso, enervava-se com uma facilidade espantosa, ficava rabugento e impaciente, e comenta: “Ora como a bílis lhe enchia o organismo, a servir de veneno ao seu sossego, está a ver-se que a alcunha era adequada ao seu temperamento”.

Abençoado Florindo d’Oliveira que escreveu páginas tão vivas de uma Guiné que o marcou na mocidade.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de Fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12782: Notas de leitura (568): "O Reencontro, Da Ponte Aérea à Cooperação", por General Gonçalves Ribeiro (2) (Mário Beja Santos)

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