terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12617: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (7): As localidades por onde passei, sofri e amei (Veríssimo Ferreira)

1. Em mensagem do dia 18 de Janeiro de 2014, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil da CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, e Bissau, 1965/67) enviou-nos a sua perspectiva sobre o seu percurso militar desde a Recruta até à sua promoção à alta patente de 1.º Cabo Miliciano.


AS LOCALIDADES POR ONDE PASSEI... SOFRI... AMEI 

E VAI DAÍ: 

Por edital, soube que me deveria apresentar em Mafra, na Escola Prática de Infantaria, a fim de frequentar o Curso de Sargentos Milicianos.
Saí de Ponte de Sôr, pela matina e no combóio. Chegado a Lisboa, pedi informações para ir para o Martim Moniz, local donde sairia a camioneta para Mafra.

A confusão, nesta louca cabecinha, era mais que muita (primeira vez na grande cidade) e habituado que estava a ver muita gente junta, aquando das feiras, pensei:
- Há por aqui uma como a nossa de Outubro!!!

Bom, mas lá fui ter e parti para o destino... e cheguei enquanto no entretanto comi as duas sandes que a minha querida mãe, preparara para a viagem.

Mafra, surpreendeu-me, quando logo ali mirei, o Mosteiro.
- Um quartel? - Duvidei.

Convento de Mafra

Na entrada, havia um enorme grupo de juventude de cabelinhos cortados à inglesa curta e que esperava e a eles me juntei.
Lá chegou a minha hora e preenchidos que foram, uns papéis, mandaram-me para o alfaiate que tirava medidas olhando-nos de alto abaixo, o que significou que recebi umas roupitas bem bonitas por acaso... um bivaque onde cabiam duas cabeçorras, duas camisas cinzentas nº 54 e eu até aí, usava 42, dois pares de calças que me chegavam dos pés à cabeça, duas botas 47 e eu calçava 41... e por aí fora.

Na caserna, assim chamavam ao quarto luxuoso, um 5.º andar e 183 degraus para subir, onde me colocaram, para me não sentir só deixaram-me acompanhado por mais 151 recrutas que se tornaram meus amigos.

No dia seguinte, reuniram-nos num espaço rectangular, que ainda hoje existe, lá atrás do convento e a que chamaram e chamam, "A parada".
Éramos, talvez uns três mil, que sairiam dali como Oficiais ou Sargentos Milicianos.
Juntaram-nos depois, sentados no chão e rodeando o Oficial Instrutor, cá fora... ali ao lado esquerdo de quem entra... e esclareceram-nos sobre as normas nem vigor, para contactos eventuais, com os residentes civis e também como distinguir os postos militares.

Escola Prática de Infantaria

Ficámos a saber, que a coisa começava desta forma:
- O início e por aí fora: - RECRUTAS; 1.º Cabo; Furriel; Sargento; Aspirante; Alferes; Tenente; Capitão; etc; etc; etc; etc; General; Marechal; e finalmente: 1.º CABO MILICIANO.

Contentíssimo fiquei. Então não é, que o filho do meu pai, iria alcançar o mais alto posto, lá para Agosto e já especialista de Infantaria...
E 1.ª classe em metralhadora Dreyse 7,9?
E 3.ª classe em espingarda 7,9?
E 1.ª classe em comportamento?
E atirador, terminada a instruçao complementar?

Aparvalhado ainda, com o facto de ontem ter visto, Lisboa... aviões dos grandes... e barcos a atravessar um rio a que ouvi chamarem Tejo e ter ainda a possibilidade, de e também, pela primeira vez, poder ir ver o mar... as praias da Ericeira e mais agora esta notícia... plena de responsabilidades...
Olhem... fiquei de tal maneira entontecido... que julgo não ter voltado a ser o humano normal de antes.

Continências e divisas, foram-nos sabiamente mostradas, bem como o manejo duma espingarda... o seu desmanchar em bocados... e a consequente limpeza com o escovilhão.

No 3.º dia e após o pequeno almoço, começou a preparação para que pudéssemos vir a ser militares disciplinados, bravos, heróicos e que acima de tudo, voltássemos inteiros.
- Corridinhas na tapada... rastejar no meio da trampa... percursos de combate... saltos para o galho... jogos de brutóbol... tiro na carreira do dito... actividades desportivas com vários empecilhos no meio... audição dos gritos estridentes e ameaçadores dos monitores do pelotão... enfim... toda uma panóplia útil que só mais tarde entendemos ter sido preciosa para que aqui e agora estejamos ainda semi-vivos e, ah, sempre acompanhados pela fiel Mauser e de capacete enfiado... no local próprio de enfiar capacetes.

Regressávamos depois e quase na hora do repasto. Íamos à suite tomar um banhito rápido e mudar de fato. Toca a corneta e ala que são horas de almoço.
Boas refeições sim senhor e até vinho havia e da cor que entendêssemos, embora eu achasse que aquilo era mais água... e cânfora... substância que e ao que diziam, transformava em eunucos, embora provisoriamente, quem bebia a zurrapa.

A 4 de Julho de 1964, após portanto 5 meses e 10 dias e com aproveitamento e todos os créditos alcançados, consideraram-me então, apto, ou seja, vais tirar a especialidade de "atirador" e como ordens não se discutem, decidi-me e fui para Tavira.

Vista parcial de Tavira

Terra linda que continuo a visitar.
Linda praia, onde até a água era e é, quente, comparada com a da Ericeira, de que tinha provado o sal.
Boas gentes, embora e nesse período, as tenha considerado más com'ás cobras, tendo em conta que quando os pobres militares, sedentos e até com alguma fomita, colhíamos algumas amêndoas, alfarrobas ou figos, ou ainda, lhes bebíamos umas gotas nos escassos poços existentes... iam de imediato participar ao quartel e algumas vezes desembolsámos os 25 tostões para compensar o prejuízo.
A miséria patrimonial deste povo algarvio era notória e justificava a queixa. O turismo mal começara e aquelas frutas e água eram o seu ouro.

No que se refere à instrução militar, foi o acrescento próprio, para quem já estava treinado.
Novidade apenas para o "DEITÁÁÁÁR" nas salinas. Lindo de se ver, creiam. E nós... vestidinhos... lavadinhos e engomados... calçadinhos... botas engraxadas e reluzentes, espelhando o sol quente desse mês de Julho... obedecíamos está claro, só para não nos considerarem desobedientes.
Saíamos enlameados, cheios de lodo até aos cabelos, mas mais fortes alguns, aqueles que engoliam alguma distraída enguia. Até nisso, a sorte me foi madrasta já que o único brinde que me calhou, foi uma enorme serpente que resolveu aninhar-se no bolso esquerdo das calças.

À tardinha dispensavam-nos e podíamos então confraternizar com as tascas locais, onde sempre comíamos generosas doses de grandes conquilhas, ou jaquinzinhos atados pelo rabo e em grupos de 5 ou 6, regados com aquele saboroso tintol carrascão de tal forma, que até os dentes ficavam coloridos.

Alguns mais afortunados, proporcionavam a outros, passeios e assim conheci, Quarteira, Armação de Pera, Albufeira e Faro.

E em 30 de Agosto de 1964, fui promovido a 1.º Cabo Miliciano, pois então...
Começa aí um percurso agitado, com constantes mudanças, assim estilo "faça férias cá dentro" e foi o que me valeu para ficar bem a conhecer, algum deste País, que eu julgava ser só o Alto Alentejo.
1.º - Amadora (Regimento de Infantaria 1);
2.º - Lamego ( Rangers);
3.º - Tancos (Minas e Armadilhas)
4.º - Lisboa (Grupo C. Trem Auto)
5.º - Abrantes (Regimento Infantaria 2)
6.º - Tomar (Regimento Infantaria 15)
7.º - GUINÉ.

(Continua)

OBS:- Imagens retiradas da internete pelo editor,
com a devida vénia aos seus autores
____________

Nota do editor

Último poste da série de 21 de Janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12614: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (6): Eu fiz "Tropa" em cinco cidades, em Portugal e ainda em Nhacra, Quebo e Nhala, na Guiné Bissau (Manuel Amaro)

4 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro camarada Veríssimo Ferreira

Ora aqui temos o teu percurso "antes de"....

Como és um pouquito 'mais velho' que eu, és então ainda do tempo em que em Mafra também se tirava o CSM...
A descrição do deslumbramento do homem da província que chega pela 1ª vez à 'cidade grande' é muito interessante e realmente dá uma imagem do que sucedeu a muito boa gente, embora nem sempre se tenha reflectido sobre isso.

Interessante também a forma entusiasmante, suponho, como vos foi apresentada a evolução da carreira militar. Dado que o objectivo da vossa formação era atingir o magnífico grau de 1º Cabo Miliciano, colocando-o assim no topo da evolução, seria possível que alguns, mais fracos de ânimo, pudessem esmorecer, o que nunca seria o teu caso!

Do que descreves da distribuição do fardamento deve-se concluir que o quarteleiro estava de facto sintonizado com aquela velha máxima de que o serviço militar, a tropa, faz-nos crescer, faz-nos mais homens, daí ter sido basto generoso contigo ao ponto de antecipadamente ter concluído que sairias de lá bastante maior, e começou logo pelo equipamento. Não me parece que seja de te queixares...

Há uma parte da tua narrativa que não resisto a não repetir. Escreves assim: "... e mais agora esta notícia... plena de responsabilidades...
Olhem... fiquei de tal maneira entontecido... que julgo não ter voltado a ser o humano normal de antes."
Se não se desse o caso de seres merecedor de todo o respeito que a 'velhice' impõe e de facto eu procurar em toda a situação respeitar o próximo (ou o distante...), atrever-me-ia a perguntar se essa dúvida, a do 'julgo não ter voltado a ser o humano normal', já se resolveu. Mas o tal respeitinho impede-me de formular a pergunta, pelo que admito que sim!

Continuando a relatar a vidinha em Mafra, ficámos a relembrar (sim, a relembrar, porque mais coisa menos coisa, foi semelhante ao que se passou com o restante pessoal) as acções rotineiras de uma 'recruta'. Especialmente interessante é o recordatório da "audição dos gritos estridentes e ameaçadores dos monitores do pelotão". Igualzinho!

Passamos depois a Tavira.
Mas, antes de te acompanhar até lá, digo-te que fiquei a saber que as recordações do que viveste em Mafra, no quartel, na formação, estão aí para serem relembradas, mas não fiquei conhecedor dos teus sentimentos para com Mafra povoação. Calculo que não sejam de 'ódio', mas não disseste.

De Tavira temos os relatos que também fomos conhecendo ao longo dos anos. Não estive em Tavira no âmbito do serviço militar mas é uma terra que aprecio bastante e de que gosto de usufruir.

Falas da praia da ilha de Tavira com simpatia, falas das boas gentes da terra, falas das sempre saborosas conquilhas, dos carapauzinhos fritos atados pelo rabo. Sobre as petiscadas não me admiro nada, pois ainda hoje és um 'bom garfo'.

É claro que as famosas salinas não podiam deixar de estar nas recordações mas acho que o que mais te marcou foram as tascas locais.....pelo que presumo que Tavira te seja querida em sentimentos.

Acertei?

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Amigo Helder: Bondoso como sempre o que te agradeço. Em boa verdade, sou um pouco mais velho e já só falta um mês para os 72. A tua apreciação sobre os tamanhos do fato, fazem-me pensar: "mas porqu'é qu'eu não m'alembrei "desta cena"? Um bravo para ti. Sobre Mafra sempre te digo, que gosto embora conheça rapaziada que lá foi e diz não mais voltar. Mas
é importante dizer-te que eu era e sou um provinciano que só conhecia lá a minha terrinha, portantus tudo o que fosse novo era bem-vindo. Gostei de todos os locais por onde passei, visito-os regularmente e sobre Tavira sempre te digo que e porque tenho uma barraquita em Manta Rota, almoço bastas vezes, no Casarão do ti Chico, uma tasca ali perto da igreja (no lado de lá do rio). Talvez possamos lá ir, nas próximas férias. Depois combinaremos. Comer...pois comer é um dos poucos prazeres que ainda me restam, para além do beber...do fumar...e de mulheres (Só vê-las evidentemente.) Um abraço do
Veríssimo.

JD disse...

Isto é qu'é malandragem!
Estes venturosos da tropa, que não faziam nada de especial, nem se referiram às excelentes ementas de que beneficiaram, ou ter-se-iam referido com amargura, feitos queixinhas retardados.
Viajaram à borla, foram alojados em Monumentos Nacionais, vestidos à moda da época, ficaram deslumbrados com paisagens e belezas várias, turistaram por sítios inolvidáveis, ficaram de tal modo ligados àquele tempo, que ainda se dão ao luxo de o contar para inveja dos descendentes.
Gostei muito!
Quer do bom humor do Veríssimo, quer dos diagnósticos e desafios do Helder.
Viva a camaradagem, pois claro!
Só não vale a pena pôr no prato aquela camção de o tempo voltar para trás. Mas como diz o ditado, recordar é viver.
Abraços fraternos
JD

Luís Graça disse...

Veríssimo, bom camarada; Fico à espera do resto das etapas da tua/nossa "volta a Portugal"...