sábado, 18 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12601: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (27): Operações Vacas


1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 15 de Janeiro de 2014:

Caros amigos Luís, Vinhal e M. Ribeiro:
Aí vai, com um abração, mais um conto extraído do meu caderno de memórias.
Rui Silva



Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Do meu livro de memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa” 

27 - OPERAÇÕES - VACA

Na minha Companhia era assim e provavelmente na tua também.
O que se apanhava, e refiro-me aqui e agora à recolha (desvio, mudança de dono, etc.) de gado no mato, era compartilhado irmãmente pela população do Olossato: vaca para nós; vaca para eles.

- Não serei o primeiro a dar-lhe este nome (operação-vaca) aqui no Blogue, pois o Veríssimo Ferreira assim lhe chama no Post 12413.
(Não sabia que no célebre K3 - bifurcação das estradas para o Olossato e para Mansabá, para quem vinha de Farim - já lá havia tropa em 1966). Andámos lá perto em operações de golpes-de-mão e emboscadas -.

O nosso Capitão, e honra lhe seja feita, tinha uma filosofia da guerra muito ortodoxa (para mim e por certo para toda agente da 816). Grande comandante operacional no terreno e também no desenvolvimento dos valores morais, da ética e sobretudo humanos e culturais das povoações por onde assentávamos arraiais.
O tratamento com os seus militares era insuperável, era como se diz, “terra-a-terra” mas sem a mínima quebra do respeito hierárquico. Respeitava e fazia-se respeitar.
Uma das suas primeiras preocupações, não militares, era pôr as crianças numa “escola” com um Furriel a ensinar.
A simbiose população-tropa ou tropa-população, era um dos seus propósitos prioritários.
Não me esqueço mais, e isto já no campo militar, ele tirar a MG 42 do tripé e pô-la no parapeito da autometralhadora improvisada numa GMC (o “Águia Negra” Rogério Cardoso sabe do que estou a falar) expondo-se assim, muito a jeito, à trajetória das balas e dos estilhaços (destes não se livrou, ainda que não gravemente) das granadas inimigas (não foram poucas) numa das emboscadas mais problemáticas que a Companhia sofreu durante a refrega africana. Outra atitude de rara coragem e aqui vou citar o meu grande amigo Rui Alexandrino no seu extraordinário e singular livro “Rumo a Fulacunda”:

...acorri ao local onde deparei com uma cena terrivelmente chocante e verdadeiramente trágica.
Numa viatura GMC da Companhia que estava parada junto à arrecadação, anexa à caserna dos Soldados que se aprontava para escoltar aquela coluna, envoltos em chamas, atingido que fora o depósito da gasolina, ardiam 2 militares do 3.º pelotão.
Rebentavam ininterruptamente granadas de mão e de morteiro que já tinham sido colocadas na caixa da viatura.
O pandemónio e a desorientação eram gerais.
Imóveis os sinistrados, já mortos, ardiam.
Incrédulos, protegiam-se os restantes encobertos pelos cantos e pelas paredes dos edifícios anexos sem saber muito bem qual a atitude a tomar, qual a acção a desenvolver.
Tomou então a iniciativa o Capitão Riquito, comandante da 816 que, protegido por uma auto-metralhadora DAIMLER se aventurou até junto da viatura em chamas, a destravou, lhe engatou um cabo de reboque para que fosse arrastada para o meio da parada, longe da arrecadação onde existiam mais granadas e munições.
Esgotado o combustível e arrefecida a viatura, foi então possível fazer o rescaldo do incêndio e resgatar os corpos que estavam completamente carbonizados.
Uma verdadeira desgraça! Um inacreditável horror!

Recordo bem das primeiras advertências do Capitão (particularmente, e ainda hoje, chamamos-lhe Grande Capitão) dele, logo nos primeiros dias de campanha: Quem fizesse engravidar assumia a paternidade. Balizava o procedimento do pessoal de uma forma humana e muito altruísta. Aquele foi um dos mandamentos a cumprir. Terá sido cumprido?... Julgo que sim.

O povo do Olossato e a tropa da 816 puxavam para o mesmo lado.
Olossato era uma povoação guineense das mais pequenas certamente.
Fomos ali substituir a 566 (um abraço Zé Ribeiro) uma Companhia que tinha feito um belíssimo trabalho quer no campo da luta, quer na construção e na defesa do aquartelamento, quer ainda na ajuda aos sacrificados nativos. Fomos “apresentados” numa ida à base de Iracunda e que foi o batismo de fogo para 2 Grupos de Combate da 816, um batizado que demorou aproximadamente 25 minutos de fogachada (chamei pela minha mãe ali a primeira vez - será que ela ouviu? Até pareceu…-).

Para começar… nada mau…. e eu que me gabava de não me meter com ninguém.
Julgo que a 566 foi a primeira Companhia a sediar e a reconstruir o Olossato.
Nós da 816, fomos render aquela Companhia em outubro de 1965.
Ficamos por ali praticamente 1 ano.

O Olossato foi por assim dizer a nossa terra na Guiné. Fomos encontrar meia dúzia de casas em alvenaria, supostamente outrora de colonos, e o resto era a pequena tabanca das gentes nativas do Olossato.

Havia um chefe de posto com casa própria. Do lado para Farim a loja de panos do Sr. Fodé, a casa do padeiro do outro lado e pouco mais. Isto logo a seguir ao cavalo de frisa que fechava o aquartelamento desse lado. Do lado de Bissorã, já havia mais casas. Logo imediatamente antes da “Porta d’armas”, 2 a 3 casas a vender miudezas, panos garridos e diversidade de coisas muito simples e corriqueiras, regionais e artesanais - a necessidade aguça o engenho - ouvi já isto em qualquer lado. Por ali também inevitavelmente o grande barracão, outrora serração onde se acomodava a guarnição dos Obuses do meu querido amigo Alferes miliciano Brandão.

Libaneses, nem um, ao contrário de Bissorã onde lembro os bailes em casa do Sr. Rui. (eu? Não, o Libanês). Saudades? Talvez! Até então onde tínhamos estado.
No Olossato, bem dentro do aquartelamento, este bem fortificado com troncos de palmeira e chapa de bidão a guarnecer, e de planta quadrada, apenas um civil: um velhote cabo-verdiano que cultivava ananases não sei onde e para o lado de Maqué. Saía de bicicleta e usava um chapéu típico de expedicionário africano. Para ele não havia guerra.
Tinha uma casa também em alvenaria e esta ficava escondida num matagal de plantas e árvores, com algum toque de ajardinado, diga-se. Figura um pouco enigmática.

Dentro do quartel só havia casas em alvenaria e também mais um barracão (sempre as serrações) que servia de caserna aos soldados.
A tabanca da população flanqueava todo o lado Norte do aquartelamento e do lado de fora deste.
Olossato, bem dentro do Oio, e relativamente perto de Morés sempre foi uma povoação da Guiné mas terá sido completamente abandonada aquando de Morés se tornar uma das principais bases inimigas na Guiné. Aqui e julgo que foi a 566 que recolheu gente no mato e trouxe para o Olossato e aí renasceu aquela terra.

Um momento de festa e alegria do humilde povo do Olossato. Senti o pulsar da franca alegria daquela gente. Arrepiava, o chão, vermelho, até tremia. O riso das bajudas e até das mais velhas (estas mais traquejadas nos movimentos da dança) era largo. De face a face, e a mostrar toda uma dentadura muita branca e alinhada. Dentes tinham, nozes? Nem tanto…

Passado este introito (talvez longo. Desculpem!) vamos então às célebres e denominadas “Operações-vaca”.
As “Operações-vaca” tinham por fim, e daí a afinidade com o seu nome, o apanhar, para não usar outro termo mais apropriado, de gado ao inimigo ou pró-inimigo. A maioria do gado em poder daqueles, sabia-se, que era “roubado” aqui e acolá em pequenas povoações indefesas ou aquelas que não queriam colaborar com eles, e que na maioria dos casos não tinha qualquer proteção da tropa. Acresce dizer, que nestas povoações, sem qualquer proteção da tropa, o pessoal aí habitante era sempre suspeito, claro, de colaborarem com os “turras”, ou, no melhor das hipóteses, jogarem com um pau de 2 bicos - coitados pelo dilema -, isto é, eram por eles quando estes apareciam e eram por nós quando aparecíamos nós. Claro que esta situação nunca era de nos convir e, portanto, sempre que eles se negavam ao nosso convite de virem fazer a sua vida e o seu trabalho na povoação de Olossato, onde estariam a coberto das investidas e da política inimiga, ficavam então rotulados de "meio-turras” senão de “turras” mesmo, e daí as consequências. Estas no entanto não eram bem dentro da maneira de atuar da 816 mas, outras Companhias, para quem não acompanhasse a tropa ia-se lá ao outro dia…
Não estou, seguramente, a fazer juízos de valor.
O inimigo também fazia as suas retaliações, para com aquele pessoal, oh(!) se fazia!

Bom, mas para não me desviar das “Operações-vaca”, então sempre que nos inteirávamos de que o inimigo tinha algures grande quantidade de vacas que justificasse a nossa ida (e a nossa necessidade) lá nos púnhamos a caminho. O gado normalmente era guardado por um ou outro indígena, quase sempre armado, e que logo tratava de se por ao fresco, fazendo no entanto antes uma rajada ao pressentir a aproximação da tropa. A rajada era mais para avisar as “casa-de-mato” próximas do que alvejar alguém, mas se pudesse acontecer as duas coisas…

Como estas operações se faziam com alguma frequência nunca faltava carne à tropa e à ávida população, pois o Capitão compartilhava o “apuro” com os nossos fieis amigos e nativos do Olossato.

Era uma operação típica e grotesca; o risco a correr pela malta, salvo um encontro fortuito, embora sempre de admitir logo fora do arame farpado, não era muito previsível, pois, como atrás disse, as vacas nunca estavam, obviamente, perto dos refúgios dos “turras”, e, uma vez as vacas na nossa posse, toda a cena decorrente fazia lembrar o “Far-West”. Aquela grande quantidade de reses, só de uma vez foram à volta de 100, em fila indiana, acompanhada da malta de arma nas mãos, também a fazer lembrar os pistoleiros daquelas paragens do Oeste americano. Havia soldados que chegavam a montar nas vacas, ao bom estilo do rodeo americano, o que elas, aos pulos, tentavam sacudir. Alguns bem queriam mas não havia hipótese, e tudo aquilo tinha feições de um filme de “cow-boys”. Um rodeo (!), isso mesmo! Como víamos nos filmes.

Raramente os terroristas apareciam emboscados, pois como o sequestro era feito de surpresa e em jeito, só tarde eles se apercebiam do golpe, e quando eles apareciam, o azar que havia, era ficar uma ou outra vaca com uma rajada no lombo, pasto para os abutres que andavam sempre por perto. Homem armado, abutre por perto, parecia.

Junto da nossa cozinha, refiro-me à cozinha dos Furriéis, havia uma enorme árvore e por lá estavam sempre meia dúzia de abutres. Apetecia fazer tiro ao alvo, mas constava-se que era proibido (?) matar abutres. E por falar em abutres também lembro-me bem de encontrarmos um burro morto ali para os lados da célebre serração na estrada para o K3 inteirinho na carcaça exterior e com todo o interior comido.
Parecia que estava a dormir. Curioso. Os abutres tiveram o cuidado de preservar a total fisionomia exterior do burro. Literalmente. Prontinho a encher para embalsamar. Impressionante o trabalho cirúrgico dos sinistros abutres.

Carne (aqui já estou a falar das vacas não da do burro), portanto não faltava mesmo com semanas a comer com arroz (mal) pilado, por falta de reabastecimento. O pontão de Maqué (entre Bissorã e Olossato, mais ou menos a meio caminho) onde obrigatoriamente passavam as colunas motorizadas e de reabastecimento era destruído com alguma regularidade pelo inimigo. Mais tarde teve ali lugar um destacamento.
Na nossa companhia havia um magarefe de profissão (civil), o que ajudava e muito a seleção criteriosa de toda a carne do animal Os miolos fritos bem regados a cerveja era um pitéu logo ao meio da manhã.

As operações-vaca rendiam uma boa petiscada ao meio da manhã: miolos fritos muito bem regados a cerveja. Como se pode ver, nos Furriéis também havia bons corneteiros. Eu estou a dizer para a objetiva “ai que rico pitéu”.


Vistas aéreas (de ângulos diferentes - quase opostos -) de Olossato . A primeira foto, propriedade do meu amigo José Ribeiro (CART 566) foi tirada em 1965 e a segunda em 1966, com a diferença sensivelmente de um ano, portanto. Como ponto de referência das duas fotos a caserna dos soldados (A).
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12188: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (26): Como se faz acabar o vício de cravar cigarros aos outros

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Rui,
Post a post o livro do meu amigo está-se a compor. Espero vê-lo editado o mais brevemente possível. Força Rui Silva, fico a aguardar mais um capítulo.
Um abraço,
Raul Albino

Anónimo disse...

Caro Rui Silva, belíssima descrição, espero por mais. Pois o K3, começou a ser construído ainda em finais de 1965 pela CCAÇ 1421 e nós a 1422, fomos para lá, penso que em finais desse ano, ou principio de 1966. Aquilo era um deserto total, sem tabancas por perto, sem guias, sem populações. Um abraço do
Veríssimo Ferreira
Fur.Mil. CCAÇ 1422

Hélder Valério disse...

Caro Rui Silva

Não te alongaste em explicações, conforme manifestaste receio.

É claro que se sequer contar um pequeno episódio e enquadrá-lo bem no tempo e no espaço, no ambiente em que as acções descritas se inserem, faz todo o sentido descrever e explicar o melhor possível as situações.
Se se pretender (e tiver arte para isso) contar rapidamente algum caso ou situação, o relato curto será talvez mais eficiente, mais apelativo à leitura por quem não tem paciência ou apetência pela leitura.
A escolha nem sempre é fácil.

Essas 'operações-vaca' parece então que se inseriam, para tranquilidade das consciências, naquele velho dito de que "ladrão que rouba a ladrão, lá terá perdão"....

Abraço
Hélder S.