sábado, 21 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12481: Bom ou mau tempo na bolanha (40): Não era o Pai Tónio (Tony Borié)

Quadragésimo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.



O Cifra já explicou que tinha um diário que uma madrinha de guerra lhe mandou, onde ia apontando algumas cenas que presenciava, ou os companheiros lhe contavam ao regressar de cenários de mato, de savanas, de bolanhas, de emboscadas e tudo o que esses heróis, militares de acção, estavam sujeitos. Ia escrevendo, com palavras e frases muito mal escritas, sempre em cima do joelho, mas lá ia apontando e guardando. Agora abre o esse diário, e não importa a página que lê, é só ataques ao aquartelamento, emboscadas, fornilhos que rebentaram, feridos, e todo aquele, blá, blá, blá, que todos os antigos combatentes, infelizmente conhecem, e alguns no corpo.

Mas mais à frente, vem assim, e o agora Tony, vai tentar reproduzir todo o texto, embora lhe seja um pouco difícil, pois muitas palavras são ilegíveis, e não encaixam, talvez fosse o desespero naquele dia menos feliz, cá vai:

“Hoje, dia 29 de Abril de 1965” 
- Estou triste, não vou escrever nada, mesmo nada, acordei com o mosquiteiro e a cama toda molhada, quando é que esta “porcaria” vai secar, estou triste e angustiado, estou aqui, junto destes jovens, é a mesma coisa que estivesse preso, pois estou rodeado de arame farpado, e ainda por cima aquele janelo, ainda não está acabado, e a chuva entra cá dentro, e a culpa é do Marafado que costuma lá pôr o casaco do camuflado, cheio de lama, a secar, e esta noite, não o fez, não sei porquê. Olha, e sem querer já estou a escrever, mas para quê, só vai sair porcaria, pois estou triste, passei a noite a sonhar que estava na minha aldeia, no vale do Ninho d’Águia, e a estrada de Lisboa ao Porto, estava renovada, o senhor Francisco, que era o cantoneiro, que os vizinhos diziam que pela manhã colocava o carro de mão, a pá e a enxada, na beira da estrada, e a placa uns metros à frente, a dizer “obras”, só para marcar presença, e ia amanhar umas leiras de terra seca, que também diziam que não eram dele, era da “JAE”, ou seja, Junta Autónoma das Estradas, que lhe pagava o ordenado, onde ele plantava, quase sempre fora do tempo, umas favas e às vezes tremoço, que os coelhos e lebres selvagens comiam tudo, mesmo antes de nascer, e eu no seu sonho, via-o a tapar os buracos da estrada, com areia e alcatrão, a que ele chamava “piche”, e depois começou a marcar a estrada, com tinta branca ou amarela, e assim podia evitar acidentes, quando o carro das vacas do senhor Manuel Lagareiro passasse pela camioneta da carreira, que era mais larga, e afrouxava naquela curva, onde havia uma árvore que estava sempre com o tronco pintado de branco, mas onde o “pessoal do contra” lá ia colocar panfletos, e às vezes até pinturas, com letras a dizer coisas que o senhor Francisco, que também todos diziam que era “Bufo’, que na linguagem do povo, era um informador da polícia do estado, e às vezes alterado, dizia:
- Se sei, ou agarro o filho da puta que escreve estas coisas, vou denunciá-lo à polícia e não vê mais a luz do sol, vai para o “Tarrafal”, com toda a certeza.

Depois, no meu sonho, via o pai Tónio, lá ia pela estrada abaixo, descalço, levantava o braço a dizer “olá”, a toda a gente por quem passava, às vezes até tirava o chapéu roto e encorrilhado, de repente vem um carro preto, parou e dois homens grandes e feios, levaram-no à força, pois o pai Tónio também tinha fama de ser do “contra”, foi preso para uma prisão onde estavam muitos companheiros, cercada de arame farpado, onde a água da chuva entrava por um janelo roto e aberto, que naquela altura, não estava encoberto por um farrapo, que um companheiro lá punha todas as noites, e quando acordou, estava todo molhado, e era eu, felizmente não era o pai Tónio, que tinha fama de ser do “contra”.

Tony Borie, 2012

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12446: Bom ou mau tempo na bolanha (39): Uma simples comparação (Tony Borié)

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12480: Conto de Natal (15): O Menino Jesus era negro (Armor Pires Mota)

CONTO DE NATAL - 15

O MENINO JESUS ERA NEGRO

(Do livro de Armor Pires Mota "Cabo Donato, Pastor de Raparigas",  Estante Editora, Dezembro de 1991)

O alferes Casinhas Filipe passava a mão pela testa.
Sacudia-a e caía suor na parada.

Afinal, os gajos sempre tinham vindo. O Menino Jesus é que não. Dirigiu-se para junto da caserna e ainda viu um vulto, o vulto do garoto, o Braima, junto do presépio. De olhos espantados. As luzes piscavam e contrapiscavam, vibrando em cores lindas e cintilantes. Nossas senhoras de pau-preto, gazelas de pau-sangue, elefantes, terços de madeira, diversas figuras, parecia quase uma feira. Tudo, menos o Menino Jesus.
Avançou. Queria saber tudo, como correra a guerra em cada um dos sectores de defesa - os abrigos cobertos, o ninho da Breda, o mais visado, o abrigo dos morteiros, a caserna. Queria saber ainda se, no fim da refrega, violenta, por sinal, iam à saúde de todos uma ou duas garrafas de aguardente ou de Vinho do Porto. O resto, as contas da guerra, ficariam para o outro dia, ao romper da alvorada. Assim foi. As garrafas começaram a andar de mão em mão, de boca em boca, num passe alegre e redondo. Afinal, não tinha morrido ninguém. Que bom! Apenas um ferido ligeiro que o enfermeiro já tratara. Apesar de todo o nutrido fogo do IN, tinha corrido bem.
- Então, à nossa!
- À nossa!
- E à saúde dos gajos, que pode não ser muito boa - gracejou o soldado Montes, acrescentando, inchado ainda de certa empáfia: - às vezes, ainda vêm a léguas, estão a sair de Candjambare, e a mim já me cheira a pólvora…
Bebeu mais uma golada e disse:
- Hoje, é dia de Natal, tudo se lhes perdoa, e mesmo que não tenham levado mortos ou feridos, não importa. É dia de Natal. A paz seja com todos nós. E com eles também.
Fez uma pausa perante o olhar incrédulo dos restantes camaradas, mas não demorou a questioná-los:
- Então, por que não? Também são filhos de Alá.
A mata enrolava-se num silêncio profundo e gordo. Pesado de medos. De vez em quando, ouviam-se apenas os guinchos de alguns macacos, talvez acordados pelos guerrilheiros no regresso à base. O alferes mandara recolher à caserna, um velho celeiro, todos os soldados, à excepção, é evidente, das sentinelas.
Eram duas da manhã, quando se esvaziou a primeira garrafa.
Casinhas Filipe sentiu uma vontade enorme de ir bater à suposta porta da palhota de Fíli (porta não havia, não) para indagar se tudo correra bem, se não houvera problemas, apalpar-lhe a mama firme, mais uma vez, mas recuou na intenção e balbuciou para dentro: porra, mulher é mulher, guerra é guerra. Mais do que isso, queria conversa. Adiante.
Voltou a passar pelo abrigo da Breda, que ainda escaldava. Serviu ao António Mestre a outra garrafa e disse-lhe que, daí a pouco, podia ferrar o galho, à vontade, que as sentinelas estariam de olhos bem abertos, até ao couce, acrescentava, eles não viriam mais. Pelo menos, nessa noite. Tinham de tratar dos seus mortos e feridos. Se é que os houvera.
De cabeça um pouco baixa, movida por pensamentos desencontrados (que teria comprado a mulher para o filho, que guloseimas, com quem estaria a consoar?), decidiu ir mesmo repousar, estender-se na cama, que apetecia como a esteira da Fíli, depois daquelas quase duas horas de escaldante e apertada luta. Ia passar pelo presépio e desligar a gambiarra que foi, de certeza, um alvo na mira das armas do IN. Todavia, não houvera estragos importantes, embora se alinhassem nas paredes alguns buracos que, de tão repetidos, já nem estranhavam.

A um canto da messe, uma saleta de quatro por quatro metros e uma única janela, por onde se ia ao mundo, estreito, perigoso, estava um arremedo de presépio. Arrancado à selva ou à fantasia de quem o idealizou e construíra - a mulher do sargento Fortunato, o radiotelegrafista, o António Mestre, o Montes, quase todos.
Era o presépio possível. Enorme. Desordenado. Uma cabana de folhas de palma, em ogiva, onde, por isso, cabia sentado um homem. Tão grande o nosso presépio como o nosso desejo de Natal. Outro Natal. Pedaços de algodão, simulando flocos de neve sob o cheiro a forno de um dia que se prolongava um pouco, noite dentro. O algodão fora extorquido ao stock do médico. Era coisa que não faltava, porque os feridos e os mortos também não. Luzinhas tremeluzentes, intermitentes, de todas as cores. Uma velha gambiarra, que o gerador lá ia aguentando como podia. Contra todas as regras de segurança, mas são pormenores que fazem parte da estória. No fundo, macio capim maduro, onde já pastavam, silenciosos, mas senhores do seu território, animais de toda a espécie — leões, gazelas, vacas, elefantes e zebras, tudo em boa harmonia. Depois, ainda todas as estatuetas de pau-sangue ou pau-negro que os soldados haviam comprado aos djilas, havia tempos, em Farim. Tudo o que os baús dos soldados guardavam ali era despejado. Até as saudades. Naturalmente com o desejo de um Bom Natal.
No presépio, tudo, menos o Menino Jesus de quem ninguém se lembrou. Deveria ter vindo de avioneta nos sacos do correio, mas o correio não chegara. Casinhas Filipe bem fizera questão que o mandassem. Os coronéis em Bissau andavam com outras preocupações. A guerra não era tanto deles. Se calhar naquela noite, não lhes faltara camarão, santola, coisa que abundava na capital da província, ar condicionado. E muito menos o uísque. As dores de toda uma guerra era com os soldados, os milicianos e algumas patentes do quadro.
Casinhas Filipe aproximou-se. Lento o passo. Amachucada a alma. De repente, estacou. Parecia inacreditável. Estava deitado na cabana, feito de folhas de palmeira e de capim, inteirinho, o Braima, exactamente o garoto, que a companhia havia recolhido, tiritando de medo, no mato para os lados de Sare Tenem.
Achou-lhe graça. Estaria carregado de sono ou era de sonho que estava cheio? Ainda esteve para gritar: “Braima, fuge, fuge”.
Depois, estendeu mesmo os braços para levantá-lo de encontro à farda suja de terra. Não foi isso que fez. Pensou levá-lo assim sem o acordar do sono ou do sonho à cama do radiotelegrafista que, àquelas horas, já tinha mandado às favas o alfa, rómio, ómega, dormindo a sono pesado. Correu para a caserna. O primeiro soldado que encontrou, de espertina ainda, foi o Montes.
- Já temos Menino Jesus no presépio! - Disse.
- Como? - Questionou o Montes, incrédulo e brincalhão. - Não me diga que foram os gajos que o trouxeram.
- Anda, não digas asneiras, vem ver... - Avançou dois passos mais: - Venham ver o nosso Menino Jesus. Depressa, que pode acordar e fugir. Venham, venham!

Daí a pouco, à excepção do pessoal de serviço, estava meia caserna a “adorar” o Menino Jesus, quero dizer, o menino negro. O capitão que era avesso a essas coisas - dizia-se “ateu, graças a Deus” e por vezes, revoltado, parecia pedir contas a Deus pelos mortos e feridos, pela guerra que engordava - foi um dos que não se ergueu. Mas também não levantou qualquer problema.
Os soldados começaram a entoar cânticos das suas longes terras, Alentejo, Beiras, alusivas ao acto:

“Ó meu Menino Jesus,
boquinha de primavera,
dai-me esmola de paz,
por que se arma tanta guerra?”

Ao primeiro acorde, o garoto acordou, agarrando, com ambas as mãos, uma camioneta de plástico; depois, uma pistola. Estremunhado, esfregava um olho ou esticava um braço. Casinhas Filipe contou então a todos como ele se havia comportado na trincheira. Depois levantou-o contra o peito cabeludo em demasia. Deu-lhe um beijo. Fez-lhe uma carícia na carapinha. Lembrou-se do filho, da mulher. Em face daquela alegria estupenda que explodia no rosto de todos, ergueu a voz timbrada e fez uma pequena prelecção. Acabou por dizer que o deixassem ser poeta naquela noite, longe da mulher e do filho. Como castigo, teve que recitar algumas quadras de Natal. As violas cantaram, sempre em jeito de murmúrio, o seu ímpeto de estrelas novas. Depois:
- Não temos Menino Jesus de barro. Não importa. Temos melhor, de carne e osso.
Um silêncio litúrgico mordeu o rosto de todos. Depois, exclamou:
- Quem havia de ser, o Braima!
O garoto lambuzava-se já com chocolates. Casinhas Filipe, voltando-se para ele, deu-lhe uma ordem:
- Vá, deita-te no goss goss no capim, de mãos postas - e fez o gesto: - assim, assim!
O garoto deitou-se, espantado. À espera de nem sabia o quê.
- E, agora, quem vai fazer de Nossa Senhora? - perguntou o alferes, qual mestre de cerimónia.
Olharam uns para os outros, olhar dúbio. Ali só havia a esposa do sargento Fortunato. Se não fosse ela, só uma das raparigas da aldeia recolhida à sombra da tropa.
- Fili, a Fíli, meu alferes, pode ser a Fíli… - disse eu para caçoar do alferes. Ele andava de corpo perdido nos jardins nus da bonita negrinha, nos jardins dos seu cabelo crespo, na flor ardente da sua boca grossa, sensual.
- Não, essa, não - tornou Casinhas Filipe, que, de quando em vez, ia para a esteira com a rapariga. Todavia, não deixoude sugerir:
- Por que não a senhora do nosso primeiro? - Pela primeira vez, pareceu-lhe haver acordo ente todos, o que levou a concluir: - É mãe, sabe disso.
Ficou assente em cinco segundos que a senhora Benilde Rodrigues ia fazer de Nossa Senhora. Benilde Rodrigues dirigiu-se, com essa missão, para a cabana, com um sorriso largo que acabou por espraiar-se em todo o rosto, de maçãs redondas. Na cabana estava o Braima muito compenetrado do seu papel. Pegou-lhe e içou-o, com algum alegre esforço, para o regaço, depois de muito devotamente se acocorar. Mas o quadro de Natal ainda estava incompleto.
- E quem faz de S. José? - continuou o alferes.
- S. José… pode ser ali o Montes. Tem barbas compridas... - adiantou António Mestre.
- Não, credo, eu não. Eu não sou a pessoa mais indicada para esse ofício. Na aldeia, quando ajudava à missa, comia ao padre, à socapa, as hóstias quase todas. Sou um grande pecador. Como vê, nosso alferes. Também fazia as minhas patifarias e esta não era a menor.
- Casinhas Filipe, Casinhas Filipe… - ouviu-se.
Voltou a escusar-se. Mas, correndo a língua pelos nomes de quantos estavam à volta do presépio, e cada um queixando-se dos seus pecados de criança ou de rapazolas e mais recentemente pelo mato, incêndios, mortes, feridos, nas sobretudo da falta de jeito de cada um para esta tão ternurenta cerimónia, acharam uma solução:
- O nosso sargento Fortunato. Como a esposa já faz de Nossa Senhora e ele é marido, fica tudo em família. Não lhes parece? As contas, erradas ou certas, dos gastos da paparoca eram de outro foro.
Pareceu-lhes. Foram-no levantar à cama. Resmungou. Quando chegou ao presépio, fincou um joelho no chão e o outro perfilou-o, à laia de caçador furtivo, enquanto a mulher lhe pedia que se chegasse mais um pouco para ver o Menino Jesus.

A mal engendrada sagrada família já estava toda, por assim dizer, e toda em seu lugar. Porém, faltavam algumas figuras e foi nessa altura que eu, chegado ali nem há dois meses para substituir outro alferes, que fora para os Comandos, meti palavra para lembrar-lhes isso mesmo. O presépio continuava incompleto. Faltavam os pastores.
A resposta não se fez esperar. O ladino Montes foi à cerca do negro por um chibato, terçando-o ao pescoço, ao mesmo tempo que o Gaimão, outro valente soldado, sobraçava duas galinhas, uma de cada lado. Casinhas Filipe sorriu, mas não deixou de avisar que, no fim, queria que o chibato e as galinhas regressassem ao sítio. Vi que não gostaram dessa ordem. Pudera! Montes e Gaimão, dois alentejanos de fibra, arranjaram lugar no presépio, à desbanda, mas o chibato é que, não gostando lá muito, balia ou cabeceava o corpo do Menino Jesus, que o ia acariciando e chamando pelo seu nome.
O Manjaco João, muito educado, que usava óculos escuros e alguns amuletos e sempre teimara em vir para Lisboa com a tropa, fez de rei Baltazar. Pele a condizer com a do outro. Outros haviam de fazer de outras personagens – tocadores de flauta e bailarinos, que sapatearam o fandango e lavradores retouçando, àquela hora, alguns casqueiros. Ou restos deles.
António Mestre acomodou-se à cena como um taberneiro, com um garrafão de cinco litros ao ombro, mas muito mais tempo pendurado da boca de cada qual.
Feito assim o presépio de carne e osso, com mulher tagarelando e homens sorrindo sua malícia, as violas começaram a repenicar, em tom baixo, seu concerto. Eram um grito à paz. Acreditava-se mesmo que naquela noite não voltariam.
Foi aí que Casinhas Filipe, qual velho Semeão, ordenou:
- Agora, com muita ordem, e cada um representando o que lhe vai na alma, vai em fila indiana dar um beijo ao Menino Jesus, cumprimentar S. José e dar parabéns a Nossa Senhora. - Soltou um suspiro fundo: - Este é o nosso Natal.
Depois, era ver, um a um, fazendo tudo aquilo: uns cumprindo sua fé, outros brincando com o acto em si. Havia também os que não se ficavam pelos parabéns a Nossa Senhora, antes a beijavam, com gulodice. Era de meia-idade e bem feminina em seus atributos. Outros gritavam alegria, despejando ou amaciando nervos, bebendo garrafas de Vinho do Porto, que corriam de mão em mão.
Era uma alegria que só visto. Grande, só ternura, única em tempo de guerra, esquecendo feridas, mortes, sangue, nervos, pragas, medos, o dia seguinte, os dias que aí vinham, certamente sangrados de dor e cicatrizes.
- Então, à saúde de todos nós! - lançou um.
- À saúde também das nossas mães e namoradas! - gritava outro.
- E pelo nosso Menino Jesus não vai nada, nada? - questionava um terceiro, já não sei quem.
- Então, à saúde do Menino Jesus! - acrescentou, muito convicto, Casinhas Filipe.
- E pela Nossa Senhora não vai nada, nada? - gritava um quarto.
- Pois, à saúde também da Senhora! - concluía António Mestre.
- Uma golada aqui para o meu querido Menino Jesus! - continuava o Montes, que esquecia que os garotos não bebiam vinho de Lisboa, só de palma.
- Vão ao meu quarto buscar chocolate para o Menino Jesus… - sorria, de vontade, pela primeira vez, o sargento Fortunato.
- Olhe lá, nosso primeiro, isso não lhe fará mal? - E, voltando-se para o adjunto: - quem tem para aí rebuçados, bolos secos, qualquer coisa doce? - Era António Mestre. E todos olharam para o médico da companhia que já se erguia.
- A sua mãe se encarregará disso. Para alguma coisa é a mãe. E de guloseimas é com ela, não é, S. José? - lançou, em tom de brincadeira, Casinhas Filipe.
- Viva o Menino Jesus! - voltaram a dizer quase todos.
- E a companhia de Jumbembem… - acrescentou Montes.
O médico, que tinha um sorriso recatado, franco, e era o retrato da bondade em pessoa, já reaparecia, sobraçando algumas caixas a transbordar de guloseimas que a mãe, volta e meia, lhe enviava pelo MNF e ali, dentro do arame farpado, faziam a delícia dos oficiais e furriéis. Mas também dos soldados, crianças e jovens da aldeia. Era um coração que batia amor, compreensão.
Foi assim que, naquela noite, a milhares de quilómetros de nossas casas, não faltaram pinhões, passas, frutas cristalizadas, bolos de toda a espécie, que os soldados também saborearam. Muito devagar, a prolongar aquele tempo doce. O médico despejara tudo quanto tinha. Com um sorriso quase paternal e festivamente largo.

Esquecido da sua tabanca longe, o menino estava num sino, até que Benilde Rodrigues, que fazia luxuosamente de Nossa Senhora, de camisa de dormir cor de rosa sob um roupão azul, o levou para o seu quarto, deitando-o no meio, entre um que lhe fazia festas na carapinha e outro que lhe gabava a sorte.
A festa em honra do Menino Jesus era coisa de nunca mais iria esquecer. Num recanto da guerra em África. E podem crer que não esqueceu até hoje.
A festa acabou tarde, não sem um resmungo do capitão. Eram mais que horas, disse. Oxalá que o comando não saiba desta paródia!
Nessa noite, todos adormeceram ao som da viola do Magalhães e da voz coimbrã de Pedro Mendes que embalaram a alegria e a paz nas mãos, num voo de fraternidade.
Casinhas Filipe, esse, enterneceu-se ao cravar o olhar doente de infinito na paz armada do quarto - a arma atrás da porta, capacete enfiado no carregador, cartucheiras e cantil no chão e, rente à janela, onde batia a lua sanguinolenta, a farda, granadas nos bolsos - e, assim, deixou rebentar duas lágrimas que pôs a lamber os dedos.
Por mim, que tinha feito de verdadeiro publicano, por pecados que não vêm aqui ao caso, atrás de todos e fazendo um rosto triste, mas de impenitente no aconchego de ninhos proibidos, embora o mais novato naquela guerra, depois de tudo aquilo, com algo de magia, dirigi-me à caserna e arremessei-me para cima da cama incómoda. Como um soldado de chumbo.

Armor Pires Mota
Ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65
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Nota do editor:

17 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12464: Conto de Natal (14): Recordações de 1964, de um Alentejo longe de África, onde os jovens de então matavam e morriam (Felismina Costa)

Guiné 63/74 - P12479: Notas de leitura (545): "Guiné - Guerra e Poesia - Canjadude e Bolama", de José Martins Gago (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Julho de 2013:

Queridos amigos,
Pela minúcia, pela carga confessional, o diário de Martins Gago é um documento incomum, digno não só da nossa atenção como do estudioso. É facto que o sofrimento físico o vai diminuir ao fim de alguns meses e ele dificilmente se restabelecerá. Vemo-lo dedicado ao inventário da cantina, às pequenas e às grandes obras, impõe-se como comandante e é respeitado.
Bolama irá aparecer como um complemento dos tempos de risco que viveu em Canjadude, percorrendo o Corubal, foi este o rio da sua vida, que o maravilhou, tece loas a toda esta paisagem impressionante, e mesmo quando se empolga na descrição das belezas naturais não esquece a guerra e a vigilância.
Recomenda-se a sua leitura, sem hesitação.

Um abraço do
Mário


O diário de Canjadude e Bolama, por José Martins Gago (3)

Beja Santos

O que singulariza o diário da Guiné escrito por José Martins Gago? Primeiro, a disciplina da escrita diária, lançar para o papel as questões da sua sensibilidade, as minudências, o corriqueiro, tudo num enquadramento de grande sinceridade. Segundo, o diarista é frequentemente impelido a poetar, não é incomum que escreva: “Estou precisando da calma da poesia, vou fazer um soneto”. Terceiro, revela uma afinada relação com a descoberta dos espaços, está autodeterminado para uma grande disciplina, que igualmente incute aos subordinados. Quarto, escreve um documento que poderá ser encarado como um excelente input para o conhecimento da região Leste, após o abandono do Boé, quando Canjadude e Cabuca ficaram literalmente expostos.

“Guiné, Guerra e Poesia, Canjadude e Bolama”, por José Martins Gago, Chiado Editora, 2012, tem todos estes predicados de um diarista permanentemente exposto: como vê os patrulhamentos, o prazer em cultivar uma horta, remendar, alterar estruturas do aquartelamento, sabe conter a saudade, fala amiudadas vezes dos seus problemas gástricos, da sede, das colunas de reabastecimento. É um diário assente nos seus cadernos e confirmado e desenvolvido pelos aerogramas que enviou diariamente à mulher. Chegou em Março à Guiné, foi prontamente despachado para a CCAÇ 5 em Canjadude, no final de Setembro partiu para férias. No regresso a Canjadude, em 3 de Novembro, está ufano: “Esperava-me a mais ruidosa manifestação que jamais alguém teve na guerra e muito menos em Canjadude. Toda a companhia na pista para me saudar e com tal alegria de me verem de novo que me queriam levar aos ombros”. O capitão Pacífico dos Reis foi transferido para Bolama, veio em sua substituição o capitão Correia. Quando entra no seu abrigo tem duas cobras à sua espera. Resolveu o problema com a G3. Dois dias depois voltou à intensidade operacional, patrulhamentos, colunas e emboscadas perto do quartel. Há diferenças na tropa, acha que esta anda abandalhada no mato, o novo capitão não se importa que façam barulho. Os soldados guineenses estão à beira de um motim, acham que o capitão lhes bate por qualquer coisa, vão partir a pé para Nova Lamego, querem a substituição imediata do capitão. O alferes Gago apela ao bom senso, fá-los regressar a promete ir falar imediatamente ao capitão. Este acaba por ceder. Recomeçam as noites de suplício, os problemas de estômago regressaram em força. O incomum ganha permanentemente naturalidade: “Ontem à noite tive de me levantar por causa de um soldado que, bêbado, queria matar o capitão. Tive que sanar o problema. Esta gente é humilde, generosa, valente, mas reagem muito mal à injustiça e custam a esquecer o que injustamente os agride. Esta humilhação de levarem porrada vai demorar a desaparecer dos seus espíritos”.

José Martins Gago junto de rochas da região do Boé

É chamado a Bissau para frequentar um curso sobre reordenamentos. O nível desagrada-lhe, detetou imediatamente o postiço: “É triste ouvir pessoas falar de coisas em que não acreditam, as suas singulares expressões traem as palavras que proferem em voz alta”. E no dia seguinte: “A ensinarem-nos coisas do senso comum que toda a gente sabe e a falarem de outras que pelo seu caráter complexo é impossível aprender em oito dias e que ainda por cima não fazem falta nenhuma. Mas isto é tropa e aqui nada é impossível". As insónias levam-no a procurar um médico. Este diagnostica-lhe stresse de guerra, sugere-lhe a neuropsiquiatria, ele recusa. A sua situação física piora. Volta a Canjadude e regressa a Bissau. As noites sem dormir prosseguem. No hotel, e na neuropsiquiatria, vive o pitoresco: “O meu companheiro de quarto, se eu não tivesse acordado, teria puxado fogo ao hospital, adormeceu com um cigarro aceso e foi já o cheiro a queimado que me despertou”. O seu estado piora, mas ele pede alta, isto depois de uma arruaça, foi ao bar, pediu uma cerveja fresquinha, o cabo mandou-o para a cama, desatou a partir tudo no bar, vieram três enfermeiros, recorreu aos seus conhecimentos de judoca, despachou-os. O médico deu-lhe alta. Regressa a Canjadude e à rotina, prosseguem as colunas e os patrulhamentos, o serviço ao quartel, incluindo o da justiça. Dorme muito mal. Parece que anda automaticamente nas operações. Os seus registos referentes à alimentação começam a tornar-se obsessivos, sempre que vai a Nova Lamego pede bifes enormes. Não fosse a sua redação de ser tão convincente e a prosa tornava-se uma chumbada, uma enxúndia de trivialidades. E assim ao longo dos meses vamos assistindo à sua debilitação, mas ele arranja sempre coragem e persistência, trabalha agora no reordenamento na região de Canjadude. No fim de Abril, acabou a sua comissão em Canjadude, vai para o Centro de Instrução Militar em Bolama. A guerra mais feroz já acabou. Reencontrou o capitão Pacífico dos Reis, agora vai dar recrutas a soldados guineenses, anda no mato, ensina na carreira de tiro, sente-se mais desprendido mas faz todo o possível para se manter ativo nesta atmosfera de guerras aproximadas às reais.

O seu diário, nesta fase, torna-se muito monótono, são descrições por vezes enfadonhas, por vezes sem graça nenhuma, parece tudo dominado pela obrigação da escrita. De Junho para Julho parte novamente para férias. Quando regressa, sabe que Bolama fora atacada com foguete 122. Ele próprio começa a facilitar os seus resumos diários, parece escrever a contragosto: “A instrução fez-se nos termos habituais e assim o dia foi absolutamente normal”. Chegam-lhe notícias de Canjadude, ali morreu um furriel e um cabo numa mina. As provas finais da recruta estão a chegar ao fim, tudo isto se passa em finais de Setembro de 1970. Agora foi envolvido em reordenamentos nos Bijagós, escreve deslumbrado que encontrou o paraíso terrestre. Alguém lhe dá a saber em Outubro que na ilha de Soga, ali bem perto, estão a ser preparados comandos africanos e possíveis resistentes à ditadura de Sékou Touré. Tem notícia que há novas armas, aliás prevê um ataque a Bolama a um qualquer momento, não esconde que está feliz que em breve vai terminar a sua “contribuição para este desastre”. Continua a dar instrução, estuda alguns livros referentes a disciplinas do seu curso interrompido (economia). Experimenta novos tratamentos, o médico impôs um tratamento com comprimidos e uma injeção diária. Diante dos seus olhos, Bolama torna-se cada vez mais um centro de instrução de todas as tropas. Em breve, a sua comissão terminará. Anda irritado, cansa-se deliberadamente a trabalhar. Em termos formais, e contando a partida de Lisboa, já terminou a comissão, mas continuará a dá-la até chegar o seu substituto. Em 25 de Março, escreve: “Difícil me será falar do que senti ao chegar finalmente a Lisboa. Agora sim, estava distante da Guiné e sobretudo da farda. A minha mulher esperava-me e com ela o sabor da liberdade e da própria vida. Acabaram aqui os dois anos mais longos da minha existência e ao olhá-los, de frente para trás, parece-me agora que passaram depressa, que ontem parti e hoje voltei. Mas quando penso naqueles intermináveis dias de sede, de fome, de perigo, de cansaço e de isolamento, aí é que eu vejo bem a dimensão do tempo que me foi roubada à vida!”.

 E assim termina o diário de José Martins Gago, repete-se que é peça documental para estudar o que se passou no Leste, depois da retirada de Madina do Boé e de Cheche.
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Nota do editor

Vd. postes da série de:

13 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12443: Notas de leitura (543): "Guiné - Guerra e Poesia - Canjadude e Bolama", de José Martins Gago (1) (Mário Beja Santos)
e
16 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12457: Notas de leitura (544): "Guiné - Guerra e Poesia - Canjadude e Bolama", de José Martins Gago (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P12478: Blogpoesia (363): Cavador da alvorada... (J. L. Mendes Gomes, autor de "Baladas de Berlim")

Cavador da alvorada...

por J. L. Mendes Gomes 


[ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66; jurista, reformado; autor do livro de poesia "Baladas de Berlim", Lisboa, Chiado Editora, 2013, 232 pp., preço de capa;: € 14; encomendar aqui]

Como um cavador da alvorada,
Eu vou para o campo,
Abro a cancela,
Meu cão de guarda
Salta da casota,
Sempre ofegante,
Vem ter comigo,
Se me atira ao peito.
De olhos luzindo.

Digo-lhe adeus
E parto...

Enxada ao ombro.
Bebendo do ar,
Que me fumega ao vento.

Os tamancos secos,
Ao pisarem o chão,
Acordam o passaredo alegre
Que me esvoaça à frente.

Miro as ramadas.
- Como vai o vinho?...
- Aquelas oliveiras....
De tão carregadas,
Parecem gemer.
Quase chegam ao chão...

E aquelas tronchudas gordas
Que me cobrem o quintal....
Se desdobram em graça,
Aquelas folhinhas verdes,
Com bacalhau cozido,
Esperando o Natal...

Atravesso a ribeira fresca.
Como corre mansa.
Até as luzidias rãs,
Soletrando rans,
Me saltam ao caminho
Para me dizer olá...

Como um franciscano,
Dou bom dia aos ramos.
Que me escondem a lua.
Oiço os passarinhos
Que já querem ir brincar.

Levo no bornal,
Um naco de broa.
Com azeitonas das pretas.
Uma bilha de água
E outra maior de vinho...

Pode estar salgado
O bacalhau às postas,
O derradeiro carinho
Da minha patroa...
Antes de se ir deitar...

Aí vou andando
Até ao fim da aldeia.

Foi aquela leira de bênção
Que eu herdei dos meus...
Donde eu tiro pão.
Com a graça de Deus!...



Ouvindo Wagner, Cavalgada das Valquírias,

Berlim, 19 de Dezembro de 2013, 6h52m

Joaquim Luís Mendes Gomes




Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Passinhos, visto de Candoz > 30 de março de 2013 > O amanhecer no campo...


Foto: © Luis Graça (2013). Todos os direitos reservados
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Guiné 63/74 - P12477: Parabéns a você (667): José Casimiro Carvalho, ex-Fur Mil Op Esp da CCAV 8350 e CCAÇ 11 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 19 de Dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12471: Parabéns a você (666): Humberto Reis (ex-fur mil op esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) e João Melo (ex-1º cabo cripto, Cumbijã, 1972/74)

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12476: Blogoterapia (245): Homenagem ao nosso 'cartógrafo-mor', Humberto Reis, para o quem o nosso blogue tem uma dívida de gratidão... Que o bom irã do nosso poilão lhe dê amor, saúde, patacão, longa vida... e bons augúrios para 2014!...








Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (julho de 1969/ março de 1971) > O Humberto de Reis: de cima para baixo: (i) no abrigo, na ponte do Rio Udunduma, que era defendido por uma grupo de combate (rotativamente, por várias subunidades de Bambadinca); (ii) à pesca, sobre a ponte semidestruída do Rio Udunduma; (iii) no Xitole, com um pequeno macaco-cão; e (iv) à civil em Bambadinca. Fotos do álbum do fur mil op esp Humberto Reis (CCAÇ 12, 1969/71).

Fotos: © Humberto Reis (2013). Todos os direitos reservados (Edição e legendagem L.G.)


O nosso blogue tem uma dívida de gratidão para com o Humberto Reis: (i) é um dos nossos “sócios-fundadores”, o nº 3 da Tabanca Grande (ex-aequo com o David Guimarães e o A. Marques Lopes...); (ii)  é o nosso fornecedor de magníficas fotos (nomeadamente aéreas) de Bambadinca, Bafatá, Xime, Mansambo, Xitole e Saltinho; e, sobretudo,  foi o municiador das cartas ou mapas militares da antiga província portugesa da Guiné.

Nunca é demais recordá-lo, para mais em dia de festa quando ele faz 67 aninhos...

Quando voltou à Guiné-Bissau, em 1996, em viagem de negócios (mas também em romagem de saudade), o eng. Humberto Reis (ex-furriel miliciano da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) já tinha adquirido as 72 cartas da antiga província portuguesa, à escala de 1/50.000. Em Dezembro de 94 já lhe custaram 450$00 cada uma (, e o mapa geral, 600$00)… Era muito dinheiro na época...

Na altura estas cartas ainda podiam ser adquiridas no Centro de Documentação e Informação do Instituto de Investigação Científica e Tropical, em Lisboa Muitas dessas cartas estarão hoje esgotadas.

Na altura foi exigida ao Eng. Humberto Reis uma declaração da embaixada da República da Guiné-Bissau, a qual se transcreve, como simples curiosidade, com data de 29 de Dezembro de 1994: "A Embaixada da República da Guiné-Bissau em Portugal declara, para os devidos efeitos que está o sr. Eng. Humberto Simões dos Reis autorizado a adquirir cartas geográficas da Guiné-Bissau.

"Para que não haja nenhum impedimento a tal objectivo, se passou a presente declaração que vai ser assinada e autenticada com o carimbo a óleo em uso nesta Missão Diplomática".

Presumimos que esta exigência de autorização da embaixada da Guiné-Bissau para um turista levar consigo cartas geográficas do país fosse ditada, na época por razões,  de "segurança de Estado"... Admitimos que algumas dessas cartas possam ter ido parar, hoje, às mãos de inimigos do povo da Guiné-Bissau.

A divulgação destas cartas, devidamente digitalizadas, no nosso blogue, não tendo quais propósitos comerciais ou outros, de índole lucrativa, pretendia (e pretende) tão somente  prestar um serviço útil aos ex-combatentes da guerra colonial, e nomeadamente aos membros da nossa Tabanca Grande, e a todos os demais amigos do povo guineense.

Estas cartas, apesar de algumas lacunas, tendo muitas delas já mais de meio século, foram (e continuam a ser) fundamentais para a reconstituição da memória dos lugares e a reorganização das memórias dos ex-combatentes portugueses que estiveram aquartelados e/ou envolvidos em operações na Guiné, durante a guerra colonial (1961/74).

Quisemos, eu e o Humberto Reis, prestar também aqui a nossa homenagem aos valorosos cartógrafos militares portugueses. As cartas da Guiné resultaram do levantamento efectuado nos anos 50/60 pela missão geo-hidrográfica da Guiné, a cargo da nossa Marinha. A fotografia aérea foi da responsabilidade da então aviação naval e depois da FAP.  A restituição foi feita pelos Serviços Cartográficos do Exército. 

A fotolitografia e impressão froam da responsabilidade de várias empresas tipográficas portuguesas, como a Litografia de Portugal, da Arnaldo F. Silva ou da Papelaria Fernandes . A edição foi da Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar, do antigo Ministério do Ultramar, 

E, por fim, a digitalização foi efectuada na Rank Xerox, em 2006, também a expensas do nosso camarada e benemérito Humberto Reis para quem vai, hoje, um muito especial Alfa Bravo do tamanho do Rio Geba, com uma travessa (virtual) de camarões gigantes apanhados no Mato Cão… para partilhar com o João Melo, um rapaz do Cumbijã, também aniversariante... Saíam as "bazucas"!

Teu amigo, vizinho e camarada Luís Graça.
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Nota do editor:


Guiné 63/74 – P12475: Memórias de Gabú (José Saúde) (36): Visita à piscina do QG, em Bissau. Uma ida a banhos.



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série. 

As minhas memórias de Gabu

Visita à piscina do QG, em Bissau

Uma ida a banhos


O dia, como sempre, estava divinal. Sol e calor q.b. prometia uma ida a banhos para refrescar ideias a um corpo que se deparava com uma sufocante temperatura que não dava tréguas a um furriel miliciano que, ocasionalmente, se encontrava na capital. A visita a Bissau, embora curta, apresentava-se oportuna para uma escapadela à piscina dos oficiais que, por acaso, estava também franqueada à classe de sargentos, creio.

Lembro que a piscina ficava por detrás das instalações de sargentos no QG. Sei que a minha presença em Bissau ficou a dever-se ao facto de me encontrar de férias e esperando pelo dia da viagem que me trouxesse, por 30 dias, à então metrópole lusa. Tudo isto se passou nos primeiros dias do mês abril de 1974.


Não sei quem terá tido a ideia de uma tarde a banhos em águas calmas e sobretudo refrescantes. Um camarada, certamente, propôs o desafio e a malta não rejeitou a experiência que contou, naturalmente, para o enriquecimento factual das minhas aventuras guineenses.

A piscina, na sua estrutura propriamente dita, continha bons espaços de lazer e de desporto. Recordo, com saudade, o campo de voleibol, por exemplo. Ressalta-me à mente os improvisados jogos entre camaradas. Os despiques exacerbados protagonizados por militares que pertenciam, quiçá, a especialidades ou a secções diferentes em horas de pleno ócio.

Anoto, também, que esses jogos poderiam ser jogados por equipas de piriquitos organizados que casualmente por lá terão passado. Porém, a minha conceção nessa visita à piscina do QG, encaminhou-me para uma visão mais ampla, isto é, depreendi que toda aquela rapaziada, essencialmente alferes, cheiro-me a gente que se conhecia mutuamente para além de outros oficiais com patentes mais elevadas que olhavam o novo visitante como um mero intruso. Olhares enviusados, alguns de esguelha, que espelhavam reinar num trono meramente sonhado. Deixai-os em paz, senhor! Teremos, eu e o camarada que me acompanhava, comentado.

Perante a benesse não me fiz rogado e eis-me a saltar para a água da piscina. Depois veio o salto do meu camarada. Nadámos, apanhámos um pouco de sol e retirámo-nos, ficando a dúvida para os graduados superiores quem seriam os dois marmanjos que invadiram aquele espaço porventura “armadilhado” e se retiraram rumo ao “Biafra” dos sargentos!

Nas minhas memórias de Gabu, conservo no meu baú histórias hilariantes de uma Guiné onde os contrastes de patentes militares traçavam irreverentes poderes e, simultaneamente, desusados princípios, onde a pressuposta guerra dos galões se sobrepunha, e de que maneira, ao contingente das divisas. 

Mas tudo isto são narrativas passadas, porque também sei que o pessoal da cidade era portador de uma conduta diferente daquela que constatávamos no mato. Todavia, existiam, e é verdade, hierarquias militares que marcavam posições diferenciadas e quanto a isso nada a dizer, melhor, a contradizer. Era a lei do mais forte que imperava.

Recordo de uma ocasião passar por Gabu um amigo meu, tínhamos sido companheiros de futebol no Sporting, o Luís Guerreiro, era soldado, e levá-lo à messe de sargentos, sendo que a sua presença foi bem acolhida. Disse de quem se tratava e não houve o menor problema, não obstante o Luís, a princípio, duvidar da fartura que lhe coloquei à sua disposição.

Numa outra ocasião, na cidade de Bissau, encontrei um velho amigo que era da PM que fingiu não me conhecer. Pomposo, tipo mandão, tentou entrar num trilho pressupostamente desconhecido e fazendo jus à braçadeira que ostentava no braço procurou amedrontar-me com uma pergunta tipicamente baixa e sem algum nexo aparente. Se a memória não me falha o gozo da brincadeira era o crachá de Operações Especiais/Ranger colocado no meu ombro esquerdo. Respeitosamente olhei-o de frente, olhos nos olhos e disse-lhe: “Primeiro bate-me a respetiva continência e depois falamos”. O rapaz viu que meteu água e a conversa enveredou por um outro tipo de palavreado. Contrastes, camaradas. O mato era mato, a cidade era a cidade.

Pormenores de um combatente que tenta deixar explícito a nossa vivência quotidiana na Guiné.

Um turista na piscina do QG em Bissau


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
  

Guiné 63/74 - P12474: Tabanca Grande (415): Júlio Martins Pereira, ex-sold trms, CCAÇ 1439 (Enxalé, Missirá e Porto Gole, 1965/67): condecorado com a Cruz de Guerra de 4ª classe, pela sua ação em 6/10/1966, na sequência de mina A/C na estrada Missirá-Enxalé


Crachá da CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67). Divisa: "Bravos, Avante!"



Cruz de guerra de 4ª classe, com que foi condecorado o nosso camarada Júlio Martins Pereira (vd., lista do portal UTW - Utramar Terraweb > Condecorações atribuídas por feitos em campanha, Guiné 1963/743. Segundo esta preciosa fonte de informação, mais de mil e cem combatentes dos 3 ramos das forças armadas portuguesas receberam condecorações por feitos em campanha, no TO da Guiné: cruz de guerra, valor militar ou torre e espada).





Averbamentos na caderneta militar do Júlio Martins Pereira, pp. 20/21


Fotos: © Júlio Martins Pereira (2013). Todos os direitos reservados.


1. Continuação da apresentação do novo membro da Tabanca Grande, nº 635, Júlio Martins Pereira, sold trms, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) (*)


 As minhas lembranças na Guiné.1965/1967...Agora são recordações, mas naquelas datas foram sofrimentos e muitas saudades de quem cá deixei e muitas coisas mais que por aí se passaram.
Ver, por exemplo,  colegas meus morrerem, como vós camaradas deveis saber.

Sim,  é verdade que fui condecorado com a Cruz de Guerra de 4ª classe, no dia 10 de junho de 1968, na Avenida dos Aliados, no Porto. É também verdade que fui várias vezes convidado pelo governo português para estar presente nas cerimónias comemorativas do Dia de Portugal.

Poderão ainda confirmar aquilo que vou descrever que é verdade e porque está escrito na minha caderneta militar, não pedi nada a ninguém, podem consultar os arquivos. O que fiz está feito, deram-me ordem de prisão por eu ter dito que tomasse o café e que lhe soubesse  merda, aqui no Enxalé. Deram-me ordem de prisão porque eu lhes disse que não havia direito eles já terem comido e nós estarmos à espera.

Aqui, em Missirá, mas eu nunca estive na prisão nem da primeira vez nem da segunda, todo o pelotão estava formado, em sentido e de marmita na mão, quando eles já tinham comido, debaixo da tabanca na nossa frente. Foi preciso eu tomar a atitude de mandar destroçar, batendo com o pé no chão, três vezes. Mas só aí alguém lhes perguntou quem foi que tinha mandado destroçar... Foi quando me vieram pedir os meus dados e nos mandaram formar novamente. Foram então novamente prá sombra da tabanca e só depois mandaram o cozinheiro servir-nos a dita refeição...

Não, eu não pedi para ser condecorado, eu não era filho de gente dita rica, chique, eu lutei por mim e pelos meus camaradas, porque quando eu dei a primeira resposta do café, foi porque eu tinha estado de serviço durante a noite, ao posto de rádio, que ficava nas traseiras do quarto do alf Luís Zagallo. Essa frase foi para o camarada que me veio substituir, de manhã, o Clidónio, este vive em Campo, Valongo, [é hoje meu vizinho].

Lutei por aquilo em que eu acredito, mas que muita coisa foi uma má imagem para Portugal, isso foi. Tantas coisas se fizeram e algumas pessoas ainda foram contempladas, mas, enfim, a vida é assim mesmo, e dos mortos já não devemos falar. Mas eu passei muitas noites no Enaxalé, de serviço ao posto de rádio e também a servir de..., dum que se dizia senhor e, que quando lhe dava na cabeça, já depois de bem bebido, depois de fazer aqueles ditos coquetéis com todo o género de bebidas e mais algumas, incluindo a famosa pasta 444 que era de pôr na cara, a altas horas da noite, mandava chamar o motorista e eu era incumbido de comunicar com Porto Gole,  informando que um certo senhor ia lá tomar um uísque... 

Àquela hora da noite, o jipe lá arrancava, povoação adiante,  saía fora da porta d'armas do Enxalé e, mais adiante, o piso era bastante bom, já dava para fazer algumas travessuras.

Júlio Martins Pereira

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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12456: Tabanca Grande (415): Júlio Martins Pereiratabanqueiro nº 635

Guiné 63/74 - P12473: O que é que a malta lia, nas horas vagas (21): Valentim Oliveira: a Plateia, livros e a correspondência; João Rebola: corridas de burros, futebol, fados, bailes com lindas "bajudas", andar de mota, saborear uns franguitos, etc.

1. Mensagem do nosso camarada Valentim Oliveira (ex-Soldado Condutor da CCAV 489/BCAV 490, ComoGuidaje e Farim, 1963/65), com data de 17 de Dezembro de 2013:

Caro Amigo Luís.
Voltando aos anos vinte, e recordando os quase 50 anos que já lá vão, ainda tenho presente na memória as leituras que devorava quando o tempo me permitia.
Lia livros meus e de amigos, mas a que mais gosto me dava era a Revista Plateia que a minha Bajuda hoje esposa me enviava.
Envio em anexos duas fotos as quais mostram a minha razão de ser.

Aproveito esta mensagem para desejar a todos os amigos da tertúlia um Natal feliz e um Ano novo com muita alegria.

Um abraço das terras de Viriato.
Valentim Oliveira




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2. Mensagem do nosso camarada João Rebola (ex-Fur Mil da CCAÇ 2444, , Cacheu, Bissorã e Binar, 1968/70), com data de 18 de Dezembro de 2013:

Boa noite, Carlos
Na verdade, nos primeiros meses, em Có e Cacheu, principalmente, não era fácil arranjar tempo e vontade para grandes leituras (excepto os famosos aerogramas), pois a desgastante actividade operacional - CAOP1- e suas consequências, não permitia envolvimento em situações "culturais".
Porém, quando tomámos conta do sector de Bissorã, onde permanecemos cerca de 14 meses, aí sim já se arranjou tempo para muita coisa: corridas de burros, futebol, fados, bailes com lindas "bajudas", andar de mota, que comprei em Bissau por 6 contos, saborear os frangos do Lavinas, etc, etc.
Foi o melhor tempo que passei na Guiné.
Tudo isto "fazia" esquecer os maus momentos passados.
Seguem algumas fotos ilustrativas.

Bom Natal e Feliz Ano Novo
João Rebola

Acelerando a minha Onda 

Montando um dos burros de Sitafá Camará

No restaurante do Manuel Lavinas 

Fado na messe de sargentos. A cantar o fado, o nosso camarada Armando Pires 

As minhas bajudas 

Frente-a-frente com Armando Pires 

Equipa da CCAÇ 2444

No Bingo de Bissorã
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12472: O que é que a malta lia, nas horas vagas (20): Desde a revista "Plateia" até ao romance "Os Lobos", de Hans Helmut Kirst, leituras que depois eram discutidas em grupo (Manuel Amaro, ex-fur mil enf, CCAÇ 2615 / BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969 a 1971)

Guiné 63/74 - P12472: O que é que a malta lia, nas horas vagas (20): Desde a revista "Plateia" até ao romance "Os Lobos", de Hans Helmut Kirst, leituras que depois eram discutidas em grupo (Manuel Amaro, ex-fur mil enf, CCAÇ 2615 / BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969 a 1971)

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Guiné > Região de Quínara > CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969 a 1971) >  Nhala > Maio de 1971 > Revista Plateia com a eleição da Riquita como Miss Portugal.



Guiné > Região de Tombali > CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969 a 1971> Aldeia Formosa (?) > Palestra sobre o romance "Os Lobos", de Hans Helmut Kirst [1914-1989]

Guiné > Região de Tombali > CCAÇ 2615/BCAÇ 2892 (Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969 a 1971> Aldeia Formosa (ou Quebo) >  Janeiro de 1970 > O Manuel Amaro lendo recortes com notícias sobre o fim da guerra no Biafra.


Fotos (e legendas): © Manuel Amaro (2013). Todos os direitos reservados (Edição: L.G.)


1. Mensagem, de 9 do corrente, do Manuel Amaro [ex-fur mil enf, CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969 a 1971]:


Caros Editores

Como estava em “digressão” aquando do lançamento do desafio, aqui vai, hoje, a minha colaboração.

Nas horas vagas eu lia tudo o que aparecia. Eu até era dos que tinham menos horas vagas. Mas ali, na Guiné, naquele tempo, cada hora vaga parecia uma eternidade.


Por isso tudo o que aparecesse era bem aparecido. De qualquer origem. Livros, Jornais e Revistas enviados pela família, pelas famílias dos camaradas, ou pelo sempre presente Movimento Nacional Feminino.

E depois, quase sempre, discutia-se, em pequenos grupos os temas das leituras de cada um.
Junto três fotos que documentam alguns desses momentos.

(i) A leitura de um conjunto de recortes, creio que do Comércio do Porto ou do Jornal de Notícias, que anunciavam o fim da guerra do Biafra, e que tinham sido enviados por familiares do José António Paiva da Silva, Furriel Enfermeiro da CART 2521.

(ii) A discussão, em grupo, sobre “Os Lobos”, de Hans Helmut Kirst que me deu um trabalhão a ler, mas que também me deu oportunidade de fazer um figurão perante os meus camaradas e amigos;

(iii) Outra foto testemunha a leitura da Revista Plateia, em Nhala, maio de 1971, em cuja capa está a Riquita (Celmira Baulet),  eleita Miss Portugal 1971, que eu viria a conhecer pessoalmente já no final da década de setenta.

Ler... aproveitar as horas vagas, foi bom. Dupla ou triplamente bom. No Liceu era uma grande “chatice” ter que explicar os textos. Aqui era um prazer.

E hoje, a esta distância, posso dizer que, a par da minha atividade como Enfermeiro e Professor, na Guiné, as leituras efetuadas, porque voluntárias e feitas nas horas vagas, foram de uma grande utilidade na minha orientação profissional após o regresso à vida civil.

Sempre ao dispor da Tabanca Grande.

Um Abraço


Manuel Amaro
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Nota do editor:

Último poste da série > 17 de dezembro de  2013 > Guiné 63/74 - P12465: O que é que a malta lia, nas horas vagas (19): Tínhamos uma biblioteca de 80/100 livros, herança da CART 2340 (Luís Nascimento, ex-1º cabo cripto, CCAÇ 2533, Canjambari e Farim, 1969/71)

Guiné 63/74 - P12471: Parabéns a você (666): Humberto Reis (ex-fur mil op esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) e João Melo (ex-1º cabo cripto, Cumbijã, 1972/74)

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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12455: Parabéns a você (665): António Paiva, ex-Soldado Condutor Auto (HM 241, 1968/70)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12470: Inquérito online: ocupação dos tempos livres no mato... A decorrer até à véspera de Natal... Os primeiros depoimentos: J.F. Santos Ribeiro, Francisco Palma, Xico Allen, João Martins



Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > Foto nº 56 > Nos dias de folga (, às vezes horas...), a malta fazia questão de se desfardar e vestir "à civil"... Mesmo que fosse para ir beber um copo, fora do arame farpado, na tasca do Zé Maria... Era uma questão psicológica e uma forma de esquecer a guerra, por um dia ou por umas horas... Na foto, o Arlindo Roda, à civil, junto à casa do chefe de posto, dirigindo-se muito provavelmente à tabanca, fora do arame farpado... Foto do álbum de Arlindo T. Roda, ex-fur mil da CCAÇ 12 (1969/71).

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legenda: L.G.]


A. Mensagem enviada ontem, às 21h30, pelo correio interno da Tabanca Grande, com algumas modificações:
Camaradas:

Assunto - Sondagem: O que é que a malta fazia, nos 'tempos livres'

O blogue é curioso... Ou melhor: o blogue quer ajudar-nos a (re)arrumar as nossas memórias de há 40/50 anos... Ora cá está um tema, a ocupação dos tempos livres,  que dá para todos participarem... No meio da atividade operacional e daqueles longos 21, 22 e mais meses de 'comissão de serviço', havia alguns tempos livres, de dia ou de noite... Ou não havia ?

Bom, a pergunta é: como é que a malta 'matava o tempo' ?... Por tempos livres deve entender-se o as horas e os dias que sobravam depois de cumpridas  as  obrigações militares inerentes à nossa condição de combatentes (fazer quartos sentinela, rondas, saídas, emboscadas, colunas, operações...). O que no mato, no interior do TO da Guiné, era relativo; dormia-se sempre com a G3 à cabeceira...

A pergunta é dirigida mais diretamente a quem vivia num aquartelamento ou destacamento no mato... No caso da malta que estava em Bissau, havia mais alternativas... de diversão e lazer (que não vamos, por agora, incluir na nossa última sondagem de 2013).

Até ás 11h do dia 24 do corrente, podem responder (votando...) DIRETAMENTE, no nosso blogue, na COLUNA DO LADO ESQUERDO, AO ALTO, a mais esta  sondagem do nosso blogue... Há 20 hipóteses de resposta. São admissíveis múltiplas respostas desde que não contraditórias.

Obrigado. Um alfabravo natalício e fraterno, Luís Graça, editor.

PS - Podem também escrever pequenos textos para o blogue e mandar juntamente fotos... Os editores agradecem.

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SONDAGEM: NO QUE DIZ RESPEITO À OCUPAÇÃO DOS 'TEMPOS LIVRES', NO(S) AQUARTELAMENTO(S) ONDE ESTIVE, LEMBRO-ME QUE... (PODES DAR MAIS DO QUE UMA RESPOSTA)


1. Havia uma pequena biblioteca com livros

2. Eu lia jornais/revistas com alguma regularidade

3. Eu lia livros com alguma regularidade

4. Não tinha tempo para ler

5. Não tinha disposição para ler

6. Não tinha nada para ler

7. Levei livros para a Guiné

8. Assinava revistas/jornais

9. De preferência ouvia música

10. De preferência jogava à bola

11. De preferência jogava às cartas

12. De preferência ia à pesca ou caça

13. De preferência convivia com os meus amigos

14. De preferência convivia com a população da tabanca

15. De preferência petiscava e/ou bebia uns copos

16. De preferência dormia (por ex., a sesta)

17. Tinha um diário onde escrevia

18. Lia e escrevia cartas e aerogramas

19. Fazia trabalho comunitário (escola, saúde, igreja...)

20. Não sei / não me lembro

B. Alguns comentários ou respostas recebidos ontem, à noite:


José Fernando dos Santos Ribeiro [ou J. F. Santos Ribeiro[ex-1º Cabo de Transmissões na CCS do BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72]

Eu (e a grande maioria), quando não estava de Serviço (Transmissões), ou íamos até ao Regala (tabanca de comes-e-bebes, dum Cabo-Verdiano), ou arranjavámos maneira de ir na Coluna a Bafatá (+/- 35 Km., por picada), ou íamos até às Tabancas fazer "psico" (sic.).

Estou a falar do período de 1970/1972, no Leste da Guiné, em Galomaro/Cossé. BCAÇ 2912/CCS. 

Um abraço a todos. D´Jarama, Inté.


Francisco Palma [ex-sold condutor auto, 
CCAV 2748/BCAV 2922, Canquelifá, 1970/72] 
O que eu respondi:

(2) Eu lia jornais/revistas com alguma regularidade;

(3) Eu lia livros com alguma regularidade;

(9) De preferência ouvia música;

(10) De preferência jogava à bola;

(11) De preferência jogava às cartas;

(13) 13. De preferência convivia com os meus amigos;

(14) De preferência convivia com a população da tabanca;

(15) De preferência petiscava e/ou bebia uns copos;

(18) Lia e escrevia cartas e aerogramas;


Xico Allen [ex-1.º cabo at inf, CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada, 1972/74]


Com alguns meses de estadia, me enviaram alguns livros escolares. Ainda recebi explicações de matemática mas não era facil ir ao liceu em Bissau fazer exames.

Ajudaram a passar o tempo...

Abraço, Xico.

João José de Lima Alves Martins [ou João Martins

[ex-alf mil art,  BAC1, Bissum, Piche, Bedanda, Gadamael e Guileje, 1967/69 ]


Para mim, para o meu bem estar psicológico, para ultrapassar o "stress" permanente que vivia e me obrigava a estar sempre preparado para responder a um ataque do inimigo, e para compreender a natureza daquela guerra que fomos forçados e chamados a enfrentar, tornou-se da maior importância compreender o que pensavam e sentiam as diversas populações com as quais tive o privilégio de contactar, e foram muitas. 

Por isso, todo o tempo disponível em que me afastava das bocas de fogo, era dedicado a um contacto mais próximo com as populações. Daí, as muitas fotografias que lhes tirei. Aliás, teria sido capaz de me oferecer para servir o meu País, no Ultramar, porque considerava fundamental esse conhecimento para poder falar, com conhecimento de causa, desse tema que tão discutido era no areópago das Nações Unidas, e era tema geral de confronto de ideias no nosso país. 

Compreendo os meus camaradas que se refugiaram em Paris, aliás, também me invadiu o desejo de me ir embora tal era a acção psicológica desenvolvida no COM [Curso de Oficiais Milicianos] de Mafra, mas não posso compreender que não sejam considerados de desertores, e, ainda menos, poderei aceitar como bons portugueses todos os que, de algum modo, andaram conluiados com a CIA e o KGB. 

Tendo conhecido o pensamento de centenas de africanos, cheguei à conclusão, tal como Amílcar Cabral (,que cheguei a elogiar quando prestei declarações "sobre quais eram as minhas impressões do teatro de operações da Guiné"), que a guerra que enfrentámos não se restringia a africanos contra europeus, mas, somente, a africanos contra um regime opressor, situação muito bem aproveitada pelas grandes potências da altura que trataram de infiltrar no nosso país, e até, nas forças armadas, quem aceitasse colocar-se ao seu serviço. 

Ora, os regimes são passageiros e circunstanciais, as nações é que, regra geral, perduram. É óbvio, que a nossa já não é o que era, e,"pelo andar da carruagem", nem vaticino onde vai parar...

Guiné 63/74 - P12469: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (12): Férias da Páscoa em Bubaque - Bijagós

1. Continuação das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro de sua autoria com o mesmo título, Edições Polvo, 2005:


MEMÓRIAS DA GUINÉ

Fernando de Pinho Valente (Magro) 
ex-Cap Mil de Artilharia

12 - Férias da Páscoa em Bubaque - Bijagós

Na Páscoa de 1971 consegui uns dias de férias.
Resolvemos eu, a Lena e o nosso filho Fernando Manuel, passá-las no arquipélago de Bijagós.
Esse arquipélago "ocupa uma área de 1478 Km2, distribuídos por cerca de cinquenta ilhas e ilhéus, que emergem do extenso planalto submarino que se localiza a menos de vinte metros do nível das águas"(1).

As ilhas mais importantes do arquipélago de Bijagós são: Orango, a maior, com 313 Km2; Bubaque, sede de circunscrição, com 48 Km2; Caravela (117 Km2); Formosa (115 Km2); Orangosinho (94 Km2); Roxa (90 Km2); Uno (82 Km2); Coraxe (72 Km2); Maio (52 Km2); Ponta (35 Km2); Meneque (35 Km2); Cagono (27 Km2); Uracane (27 Km2); Rubane (18 Km2); Unhacomo (13 Km2); João Vieira; Cavalos; Meio; Poilão; Soga...

A origem do povo do arquipélago de Bijagós é duvidosa.
Lemos Coelho diz ter recolhido a tradição de ter este povo sido expulso do continente pelos Beafadas.
Durante séculos os Bijagós exerceram pirataria na costa, trazendo nativos da parte continental com os quais se cruzavam.
"Os Bijagós distinguem-se dos demais povos por viverem em regime de matriarcado, no qual a mulher, como dirigente da economia familiar, desfruta de prerrogativas especiais.
É ela que toma a iniciativa do casamento.
O convite é expresso por um cabaço de arroz cozido enviado ao pretendido.
No caso de separação é ela também que toma a iniciativa. Põe a esteira e os apetrechos do companheiro à porta da palhota, significando com isso não o desejar mais no lar"(1).

Álvares de Almeida já em 1594 diz que os homens Bijagós nada mais fazem na vida do que três coisas: guerra, embarcações e tirar vinho da palma.
As mulheres, essas fazem as casas, as searas, pescam e mariscam e todo o mais serviço que fazem os homens em outras partes.

Na Páscoa de 1971 desloquei-me em barco militar para a Ilha de Bubaque, sede administrativa do arquipélago.
A viagem foi muito agradável, de tal forma agradável que, por muitos anos que viva, não mais a poderei esquecer.
O mar estava calmo, o céu luminoso, o ar quente.
Quando comecei a aproximar-me do arquipélago fiquei surpreendido com as ilhas que se me desfilavam ao longe.
Os golfinhos davam grandes saltos na proximidade da embarcação.

Entrando propriamente na área do arquipélago, o mar era um canal e a vista sobre as ilhas deslumbrante.
Até ali nunca tinha feito um cruzeiro no Mar Jónio, visitando as ilhas gregas. Na altura supunha que seria uma situação parecida com a que estava a viver.
Mais tarde, quando tive oportunidade de fazer esse cruzeiro pelo Arquipélago Grego, cheguei à conclusão de que a viagem por Bijagós me foi mais agradável, dando-me maior prazer.

Em Bubaque instalámo-nos na Estalagem do Teodoro.
O Teodoro era um negro, já aculturado, que explorava a única instalação hoteleira de todo o Arquipélago.
Essa instalação era composta por umas tantas palhotas que, exteriormente, eram semelhantes às dos Guinéus, mas que interiormente eram dotadas de um quarto, uma saleta e um quarto de banho, divisões devidamente equipadas.

As refeições tinham lugar numa construção de madeira com dois pisos.
No piso superior havia um amplo terraço sobranceiro ao mar onde eram servidas as refeições.
Jantar nesse terraço com o mar praticamente por baixo, o mar que era um canal, uma vez que defronte, não muito longe, se viam perfeitamente outras ilhas; com os golfinhos a exibirem-se continuamente, jantar naquele terraço era uma situação de encantamento e muito prazer.

Aí encontramos o Major Lemos Pires (que mais tarde viria a ser o último Governador de Timor e hoje é General), que também se encontrava em Bubaque em gozo de umas curtas férias com a sua esposa.
Logo que nos viu convidou-nos para a sua mesa, pelo que desfrutámos da sua agradável companhia por alguns dias.
Mais tarde encontrei também o meu colega Linderbrün (engenheiro técnico como eu mas de uma especialidade diferente - enquanto a minha especialidade era engenharia civil a dele era engenharia mecânica).
Estava colocado como Capitão Miliciano em Bissau no Serviço de Material.
Era bom pescador e marisqueiro.
Muitas vezes nos convidou (a mim e à minha família) para a sua palhota, onde preparava peixe grelhado e assava ostras.
Também estava em Bubaque, nessa mesma altura, o Capitão Otelo Saraiva de Carvalho (o estratega do 25 de Abril de 1974) mas não se instalou na Estalagem do Teodoro. Era convidado, segundo julgo, do Administrador.

Os oito dias de férias em Bubaque decorreram com muita satisfação e calma.
Fazíamos praia. A algumas centenas de metros da areia havia, mar dentro, uma protecção contra tubarões, que existiam naquelas paragens. A sua presença era notada sempre que víamos cardumes de pequenos peixes fugindo da sua perseguição até terra firme.
Conversávamos com o casal Lemos Pires.
Comíamos peixe de grande qualidade na Estalagem do Teodoro. E muitas vezes apanhávamos um fartote de ostras na palhota do Linderbrün.

Quando as férias acabaram voltámos a Bissau num barco militar.
Nele vinha o Capitão Otelo Saraiva de Carvalho, a sua mulher e os três filhos, o Intendente e a esposa, o Linderbrün e a mulher e outros de que não me recordo.

A viagem foi iniciada dentro da maior normalidade.
O barco vinha superlotado.
Pouco tempo depois de zarparmos de Bubaque, o vento começou a fazer-se sentir com alguma intensidade.
O mar começou a encapelar. As ondas atingiram alguns metros de altura.
O nosso barco parecia uma casca de noz no meio daquele mar imenso.
As pessoas começaram a assustar-se.
O Intendente, homem já de certa idade, foi-se abaixo.
Numa ocasião em que o nosso barco caiu no cavalo de uma onda para aí de oito metros de altura, a esposa do Capitão Otelo agarrou-se às minhas mãos e, aflita, gritou:
- Senhor Capitão, vamos morrer todos aqui!

Serenei-a como pude, enquanto o marido protegia os filhos.
Surpreendentemente, a Lena e o Fernando Manuel enfrentaram a situação com alguma coragem.
Anoiteceu. Estávamos relativamente perto de Bissau.
As luzes da cidade eram perfeitamente visíveis.
Acabámos por entrar no rio Geba que, tal como o mar, estava também com ondas alterosas. Parecia que o tormento nunca mais acabava.
Finalmente aportámos sãos e salvos.
Foi um alívio.

Desta situação o Capitão Otelo Saraiva de Carvalho, mais tarde, em 1990, sendo entrevistado pelo jornal Público, e sendo-lhe perguntado qual a pior recordação de férias da sua vida, respondeu assim:
"- Na Páscoa de 71, na Guiné-Bissau, regressávamos eu, minha mulher e os nossos três filhos da ilha de Bubaque, no arquipélago dos Bijagós, depois de duas óptimas semanas de férias, quando o barco em que seguíamos, superlotado, esteve prestes a naufragar com um rio/mar encapelado e tormentoso como o Geba o pode ser."

Como não mais me esquecerei da viagem de Bissau até Bubaque por ter sido muito agradável e pelos momentos de encantamento que me proporcionou, não poderei também esquecer, por muitos anos que viva, a viagem de regresso a Bissau, pelas razões que descrevi.

(1) - Enciclopédia Luso-Brasileira
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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12435: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (11): Passagem de ano na Associação Comercial