sábado, 9 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12271: Memória dos lugares (250): Cacheu, terra de história e de cultura... e hoje também última fronteira com o Sará...



Vídeo (9´ 19´´) alojado em You Tube > ADBissau. Reproduzido com a devida vénia...


Realização e produção.© Televisão Comunitária de Klelé (2012). Reportagem e edição: Demba Sanhá. Imagem: Xilay Bacar Mané. Fotografia: Abimaira M. B. Danfá. Música: Cânticos Felupes e Manecas Costa. Apoio: NOVIB e ONGD AD - Acção para o Desenvolvimento.

Sinopse: "A AD iniciou, com o primeiro Festival Internacional Quilombola de Cacheu, em 2010, um programa de pesquisa e documentação histórica e cultural para a criação do Memorial de Escravatura de Cacheu. Este pequeno filme, o primeiro, procura começar a registar a informação oral existente."



Página do portal Cacheu, Caminho de Escravos, projeto que está a executado pela AD - Acção para o Desenvolvimento e pelos italianos da AIN, com apoio de diversos parceiros (União Europeia, UNESCO, Fundação Mário Soares, Instituto Politécnico de Leiria, etc.)

(...) "A criação do Memorial da Escravatura em Cacheu visa resgatar a memória histórica da escravatura naquela região da Guiné-Bissau e das suas relações com os circuitos e os destinos do tráfico negreiro e assenta sobre a apropriação comunitária do Memorial e de todas as demais iniciativas previstas.

"O projecto do Memorial da Escravatura apresenta 3 vertentes principais: (i) Histórica – promovendo a investigação histórica e a difusão da temática da escravatura; (ii) Cultural – promovendo a cultura e a identidade da cidade de Cacheu e da sua região e pondo em evidência as contribuições das diferentes etnias e a importância da língua crioula, que ali surgiu e se afirmou; (iii) Económica – potenciando as actividades produtivas e de serviços como meio de redução da pobreza e desenvolvimento de novas atividades económicas". (...)


Comentário de L.G.:  

A região do Cacheu é hoje a última (e frágil) barreira contra a invasão do Sará... A Guiné-Bissau está já em 2º lugar da lista dos 10 países do mundo mais ameaçados pelas mudanças climáticas.  Os nossos amigos guineenses e os seus amigos em Portugal e no resto do mundo não têm todo o tempo do mundo para preservar, recolher, tratar e divulgar a sua memória e pô-la ao serviço do desenvolvimento integrado e sustentado, que passa também pela preservação e protecção da "mancha verde" que ainda é o território da Guiné-Bissau, do Cacheu a Tombali.


Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Cacheu > Outuro de  2013 > Vista áerea da cidade. Foto de Filipe Santos (IPL - Instituto Politécnico de Leiria)... Reproduzido com a devida vénia.
_______________

Nota do editor:

Guiné 63/74 - P12270: Efemérides (145): Cerimónia do Dia da Unidade do Regimento de Engenharia N.º 1 com imposição de medalhas a militares no activo e ex-combatentes da Guerra do Ultramar (José Martins)



1. Em mensagem do dia 8 de Novembro de 2013, o nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), mandou-nos esta reportagem referente ao Dia da Unidade do Regimento de Engenharia N.º 1, cerimónia aproveitada para se proceder à imposição de Medalhas a militares do activo e ex-combatentes da Guerra do Ultramar.





Cerimónia do Dia da Unidade
do
Regimento de Engenharia nº 1

Como já “ostentava” a miniatura ou a fita da Medalha Comemorativa de Campanha, apesar de não me ter sido atribuída, assim como a muitos camaradas de armas, no inicio do ano resolvi “oficializar” a situação, pelo que requeri ao Chefe do Estado-Maior do Exército a atribuição da mesma.

Programei a ida a Chelas, ao Arquivo Geral, e apresentei o requerimento a 24 de Janeiro do ano corrente. A resposta chegou com data de 1 de Março, informando que a Medalha me seria entregue pelo RE 1, pelo que deveria entrar em contacto com o Regimento, para coordenar a entrega. Entrei em contacto com o, por acaso, oficial que tratava do assunto. Disse-me que iria levar “algum tempo” mas, aguardei.

Informaram-me telefonicamente da data e enviaram a confirmação por carta, em 30 de Outubro.

Assim, à hora previamente combinada, 10H30 horas, apresentei-me na Unidade onde fui recebido pelos responsáveis pelo protocolo, que nos convidaram, sim a Manuela ia comigo, a aguardar na Messe de Sargentos, transformada em sala de recepção e onde ofereciam aos presentes uma “bebida para ambientar”.

Foi aí que tive o grato prazer de rever o Coronel Capelão Frei Teixeira [na foto à direita], que conheci na EPI, em 1999, e com quem contactei noutras cerimónias militares, já como Capelão do Governo Militar de Lisboa.

À chegada da Alta Entidade, creio que o 2.º Comandante da Brigada de Reacção Rápida, um Tenente General, foram-lhe prestadas as honras militares.

Na Parada dos Sapadores Mineiros, estavam formadas três Companhias, sob o comando do Tenente-Coronel, 2.º Comandante da Unidade, com a Banda de Música do Exército, aguardando a integração do Estandarte Nacional.


Saudação ao Estandarte Nacional, pelas forças em parada. 
© Foto: José Martins

Após o toque de “sentido à Unidade”, foi colocada uma coroa de flores junto do ao Monumento ao Esforço da Engenharia Militar, situado no Largo do Batalhão Artífices Engenheiros, dentro do perímetro das instalações, que identifica as Unidades que aprontou para o Ultramar, assim como dos militares tombados.

Monumento aos Esforço da Engenharia Militar 
© Foto: José Martins

Foram executados o Toque de Silêncio, Toque de Mortos em Combate, seguido de um Minuto de Silêncio, completando-se a cerimónia com o Toque de Alvorada.

Placa que identifica a única unidade mobilizada para a Guiné, a Companhia Mista de Engenharia nº 447, que deu lugar a Unidade de Engenharia na Guiné. 
© Foto: José Martins

Depois da alocução do Comandante da Unidade e do Pólo Permanente de Tancos, Coronel Monteiro Fernandes, procedeu-se a imposição de condecorações a militares e antigos combatentes.

Imposição da Medalha Militar - 3.ª Classe 
© Foto: José Martins

Imposição da Medalha D. Afonso Henriques – Mérito do Exército, 3.ª e 4.ª Classes a Oficiais e Sargentos 
 © Foto: José Martins



Imposição da Medalha Comemorativa de Campanhas a antigos combatentes, colocados na parada por antiguidade, a partir do mais próximo que esteve em Moçambique e os restantes na Guiné. 
© Fotos: Maria Manuela Martins

Desfile “em continência” das forças em parada. Estandarte Nacional 
© Foto: José Martins

Depois da cerimónia militar, foi apresentado, na Biblioteca Regimental, um diaporama com as actividades e preparação das forças de Engenharia, para cumprimento da sua missão, assim como uma exposição de material NBQ – Nuclear, Bacteriológico e Químico, assim como equipamento mecanizado de construção civil.

Almoço volante, servido para Oficiais, Sargentos, Praças, Empregados Civis e Convidados, no refeitório das praças. Na foto Maria Manuela Martins, esposa do nosso camarada José Martins
© Foto: José Martins

O bolo de aniversário, com o Brasão de Armas e Divisa do RE 1 
© Foto: José Martins

Corte do bolo com a Espada. 
© Foto: José Martins


Pessoalmente tenho a agradecer aos Oficiais, Sargentos e Praças, toda a atenção dispensada, não havendo destaque a fazer. Desde o Comandante, com quem estive a falar e quis saber pormenores da minha/nossa passagem por África, até a um soldado mecânico que me veio cumprimentar, dizendo que a cerimónia tinha “valido a pena”, com o momento da entrega das condecorações àqueles que, de armas na mão, defenderam a Pátria em condições difíceis,

Estas cerimónias não podem fazer esquecer a descriminação a que muitos combatentes são sujeitos, mas dá-nos a certeza de que os “nossos pares” sabem apreciar o nosso esforço e bom desempenho da missão na que fomos sujeitos.


José Marcelino Martins
8 de Novembro de 2013
____________

Nota do editor

Último poste da série de 31 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12227: Efemérides (144): A minha chegada à Guiné - 28 de Outubro de 1968, já lá vão 45 anos (Carlos Pinheiro)

Guiné 63/74 - P12269: Bom ou mau tempo na bolanha (34): ...quase 50 anos (Tony Borié)

Trigésimo quarto episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.



Província da Guiné Portuguesa, anos de Cristo, 1964, 1965, 1966, já lá vai muito perto de meia centena de anos.
O que se passou neste mundo, onde felizmente ainda vivemos, durante todos estes anos? Milhões e milhões de modificações.
Os laboratórios descobriram novos remédios, portanto, se não nos envolvermos em guerras, vamos viver mais anos, a tecnologia avançou, entre os laboratórios e a tecnologia, existe assim uma comparação como a “paz e a guerra”, pois se os laboratórios tentam descobrir meios de combater a morte, a tecnologia ao ser aplicada, tenta a maneira de matar o ser humano, mais rápido e em maior quantidade, pelo menos em caso de conflito.

Na opinião do Cifra, se há quase meio século atrás dissessem ao Curvas, alto e refilão, que era o tal soldado, amigo e companheiro do Cifra, que tinha algum desprezo pela sua vida, pois a sua mãe abandonou-o ainda criança, e diziam que “andava na vida” e nunca teve o carinho, ou a companhia de ninguém que lhe perguntasse se tinha fome ou frio, que no futuro poderia viajar pelo mundo, com imagens e tudo, através de um computador, talvez se não lhe dissessem que estavam sobre a influência de um cigarro feito à mão, era capaz de ir buscar uma granada e dizer logo que lhe partia o focinho com essa mesma granada!

Sim avançámos, mas alguns antigos combatentes, felizmente ainda vivos, continuam neste mundo, e as memórias horríveis do que passaram em cenário de guerra, continuam a acompanhá-los, até dizem que é stress de guerra, talvez seja, mas se passaram sacrifícios e fome, entre outras coisas, naquele tempo, continuam a passar, alguns estão sózinhos, muitos não querem convivência, tentam sobreviver, e se lhes falam, respondem com uma voz alterada, tal como faziam debaixo de uma emboscada, gritando, para ver se com essa atitude, faziam ir para longe, o medo que naquela altura sentiam.


A nova geração deve ter algum orgulho em dizer que o avô, ou a avó, foram combatentes, pois normalmente, os antigos combatentes, tanto o homem como a mulher, eram sofredores e com bons princípios, que quase sempre constituíam família e tinham coragem para a fazer crescer, também com bons princípios, por isso a nova geração, hoje, normalmente tem escola superior, vestem roupas modernas, usam telemóveis e computadores, e têm que se lembrar, nem que seja por um bocadinho, que estão aqui neste mundo com a ajuda desses homens e mulheres combatentes, que tinham bons princípios e tinham coragem para constituírem família e educá-la, e que são hoje seus avós.


O Cifra já está cansado de moral, mas ajeitou aqui umas fotos “cinco estrelas”, tal como esses jovens hoje, no ano de Cristo de 2013, dizem, e pode ser, que ao abrirem o seu computador, mesmo sem querer, ao verem figuras de jovens, leiam o texto!


Tony Borie, 2013
____________

Nota do editor

Último poste da série de 26 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12205: Bom ou mau tempo na bolanha (33): A sua boina (Toni Borié)

Guiné 63/74 - P12268: Parabéns a você (648): António da Costa Maria, ex-Fur Mil Cav do Esq Rec Fox 2640 (Guiné, 1969/71) e Ernesto Ribeiro, ex-1.º Cabo At Art da CART 2339 (Guiné, 1968/69)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 6 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12256: Parabéns a você (648); Jorge Cabral (ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, 1969/71)

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12267: A guerra vista do outro lado... Explorando o Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum (7): Cartas de Marga ['Nino' Vieira] e de Luís Cabral, onde se fala dos 3 desertores de Fulacunda, presumivelmente da CART 565, elevando para 9, até ao dia 3/4/1965, o número de militares portugueses que, no TO da Guiné, tinham até então desertado...


1. Continuação da exploração do Arquivo Amílcar Cabral, na sequência da necessidade de "triangular" fontes de informação e versões de acontecimentos em que fomos, as NT,  parte interessada e parte inteira...É um exercício que nada tem de "voyeurismo", muito menos de masoquismo, é apenas a natural curiosidade em saber (ou confirmar o que sabíamos) que o IN de ontem dizia de nós... e dele próprio.

Dizemos  de ontem, porque a guerra já acabou (, para a maior parte de nós, pelo menos)  e agora estamos de pantufas, à lareira, a comer castanhas assadas e a beber jeropiga... Nem sequer temos o o pobre do Chichas, o nosso cão de estimação, a nossa mascote de Bambadinca,  para nos lamber as feridas... Que nada nem ninguém se sinta humilhado e ofendido por esta descontraída, descomplexada e bem humorada (se possível) viagem ao passado... Explorando, para o efeito,  o interessante e valioso portal Casa Comum, um projeto de constituição gardual de "uma comunidade de arquivos de língua portuguesa", desenvolvido pela Fundação Mário Soares. (*)

Por acaso, andávamos pelos mapas e pelos trilhos do nosso blogue e demais sítios da Net,  à procura de Fulacanda, topónimo já há muito esquecido ou pouco falado pela velhada que se senta sob o poilão da Tabanca Grande...O bom do irã, traquinas, reguila, provocador,  bem humorado, mas mais cacimbado do que o cacimbo,  lá nos prega de vez em quando a sua partida...  Não o levamos a mal...

Eis o resultado da transcrição de mais um documento assinado pelo nosso outrora  inimigo de estimação o Marga, que Deus, o Diabo e os Irãs já lá o tenham, longe e bem alto, e que também era conhecido por Caby ou Kabi, ou Kabi Nafantchamna ou ainda 'Nino', João Benardo 'Nino' Vieira, comandante da Frente Sul, por quem houve muita gente, de ambos os lados da barricada de outrora, que nutriu (ou se calhar ainda nutre)  uma relação de amor-ódio... Mas tudo isto, já foi há muitas chuvas, no passado século XX.

De qualquer modo, refira-se que 'Nino Vieira tem mais de 60 referências no nosso blogue, incluindo uma pequena nota biográfica.

Nesta carta (disponível para consulta pública no Arquivo Amílcar Cabral do Portal Casa Comum), de três páginas, manuscrita, sem data (como de costume), dirigida por Marga ao seu chefe hieráquico, mais velho 15 anos, Aristides Pereira, secretário-geral adjunto do Partido (leia-se: PAIGC), ficamos a saber que:

(i) o Marga era crente, evocando frequentemente a graça divina;

 (ii) as coisas, lá no sul (regiões de Tombali e de Quínara), andavam calminhas em finais de março de 1965;

(iii) havia falta de "manga de munições", incluindo detonadores para as granadas-foguete para os RPG, recém chegados;

(iv) em Fulacunda, três "tugas" (palavra depreciativa que ele nunca utiliza, falava em portugueses ou colonialistas ou inimigos...) foram dar um passeio, ao ar livre, e acabaram por se entregar ao camarada que estava de serviço ali pelas redondezas [, a deserção terá ocorrido em 25/3/1965, 5ª feira];

(v) um deles, era um 1º cabo miliciano (!), de apelido Barricosa (leia-se: Barracosa);

(vi) em troca da hospitalidade, os "três tristes tugas" deram à língua, revelaram importantes segredos militares e confessaram a sua vontade de lutar, se necessário,  ao lado do partido de Amílcar Cabral contra o regime colonial fascista de Salazar;

(viii) como os bungalós estavam cheios, lá pelo Cantanhez, o Marga manda a encomenda para Conacri, com guia de marcha;

(ix) ah!,  "e não se esqueça, camarada, de me mandar munições de flober que eu gosto muito de passarinhos fritos!"; [a flober seria mesmo a espingarda de pressão para matar passarinhos ?. pergunta, ingénuo,  o revisor de texto];

e, por fim, (x) "não se esqueça também, camarada mais velho, de que estamos mal abonados de fardas e de plásticos, agora que se aproxima a estação das chuvas"...

Estima-se que a carta seja de finais de março de 1965, cotejando-a com a outra,  que publicamos a seguir, de Luís Cabral, datada de Conacri, 3 de abril de 1965.

Sobre o tema, delicado e fraturante, dos desertores temos cerca de 40 referências no nosso blogue; por outro lado, convir dizer que nunca tiínhamos ouvido falar deste caso...

Não sabemos sequer a que a  unidade pertenciam estes 3 desertores: muito possivemnete à CART 565 que estaria em Fulacunda por esta altura (março de 1965) tendo sido rendida pela CCAÇ 1420 (em agosto de 1965). Talvez o Henrique Cabral (autor do sítio Rumo a Fulacunda),   o Rui Ferreira e o Carlos Rios, que estiveram na CCAÇ 1420 (fulacujnda, 1965/67), se lembrem desta história, conrtada pelos "velhinhos" da CCAÇ 565 de quem, infelizmente, não temos nenhum representante na nossa Tabanca Grande. Estou-me a lembrar ainda do nosso camarada Santos Oliveira (2.º Sarg Mil Armas Pesadas Inf, Pel Mort 912, Como, Cufar e Tite, 1964/66). Ele estve em Tite ao tempo do BCAÇ 1860 (1965/67).(**)

A CCAÇ 565 foi mobilizada pelo RAP 2. Partiu para o TO da Guiné em 12/10/1963 e regressou a 27/10/1965. Esteve em Bissau, Fulacunda e Nhacra. Comandante: cap art Luís Manuel Soares dos Reis Gonçalves.

Transcrição / fixação de texto:  L.G.

2. Carta de Marga ['Nino' Vieira, comdante da Frente Sul] a Aristides Pereira [, secretário gertal adjunto do PAIGC,em Conacri], s/d [c. março de 1965]

Camarada Aristides: 

Espero para que esta lhe encontre continuando uma boa saúde em companhia dos camaradas. Nós vamos indo bons graças a Deus.

Junto comunico-vos que durante estes dias não [h]ouve nada em todo o sul do país.

O que precisamos neste momento é de uma grande quantidade de munições de carabinas e as de Patchanga [PPSH ou costureirinha]. Estão também em falta detonadores de obuzes de bazookas que vieram recentemente.

Faço-vos saber que seguem, em companhia do Artur,  3 soldados portugueses que desertaram do quartel de Fulacunda. Entre eles um é o 1º cabo miliciano de nome António Manuel Marques Barricosa [sic, o apelido é Barracosa]
, Rui Jorge Pires e José Fernando Amorim. 

Tivemos algumas trocas de impressões com eles, donde nos puseram a par de certas coisas.

Agradeço mandar-nos geradores electricos, se possível. Agradeço ainda de enviar-nos munições de flober.

Espero que enviam mais fardas e plásticos para a região sul do país.

Termino por hoje esperando que nos envie todos os pedidos com urgência.

Do seu camarada Marga,

PS – Junto envio em Boké o camarada Ansumane Mané afim de trazer aquelas espingardas semi-automáticas que lá estão. Espero mandar-me envelopes e esferográficas. Agradeço ainda enviar-me velas para a mota, óleo 30 [?} e ácido.


Se [h}ouver também pineus [pneus], é favor de enviar-me também alguns. Não esqueçam de enviar-nos uma grande quantidade de muniçõe

Citação:
(s.d.), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_34402 (2013-11-6)


Comentário de L.G.: 

Este homem, se não me engano, de seu nome completo António Manuel Marques Barracosa,  de 23 anos (em 1965, quando desertou de Fulacunda), será mais tarde, dois anos depois, em Maio de 1967,  um dos 4  implicados na assalto à agência do Banco de Portugal na Figueira da Foz, liderado por Hermínio da Palma Inácio, 46 anos, fundador e dirigente da LUAR, com a colaboração de Camilo Tavares Mortágua, 34 anos, e  Luís Benvindo, 25 anos. O assalto, no valor de mais de 29 mil contos na época (c. 146 mil  euros, na moeda de hoje), teria sido até então o maior roubo de sempre em Portugal.


Clicar aqui para ampliar a imagem: Casa Comum.

Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta: 04613.065.073
Assunto: Comunica a situação no Sul.  Solicita o envio de munições e detonadores de obuses. Informa que seguem com Artur três soldados portugueses que desertaram do quartel de Fulacunda: António Manuel Marques Barracosa, Rui Jorge Pires e José Fernando Amorim. Solicita ainda o envio de geradores eléctricos, munições, fardas e sandálias de plástico. 
Remetente: Marga [Nino Vieira] 
Destinatário: Aristides [Pereira]
Data: s.d.
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência 1963-1964 (dos Responsáveis da Zona Sul e Leste).
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Correspondencia
Direitos:
A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.

3. Carta datilografada, datada de Conacri, de 3 de abril de 1965, sábado, dirigida ao Ministro  da Defesa Nacional da República da Guiné, e assinada por Luís Cabral , membro do Bureau Político do PAIGC (vd. aqui nota biográfica da autoria de Virgínio Briote).

Tradução, e transcrição com revisão e fixação de texto, meramente para efeitos desta edição bloguística: L.G.

Conacri, 3 de abril de 1965

Senhor Ministro da Defesa Nacional da Repúblcia da Guiné

Senhor Mimnistro,

No dia 29 de março [de 1965] os nossos camaradas levaram para a República da Guiné, através da fornteira de Boké, três desertores do exército colonial português, de seus nomes António Manuel MARQUES BARRACOSA, José Fernandes AMORIM e Rui Jorge Pires.

Estes desertores, apresentados à polícia de Segurança Nacional da República da Guiné vieram do aquartelamento português [no original, base] de Fulacunda, no centro sul do nosso país. Eles apresentaram-se ao responsável do grupo de guerrilha que operava na zona [, em 25 de março de 1965], tendo de seguida sido conduzidos ao responsável na região, que os interrogou.

Os desertores manifestaram, diante dos nossos camaradas, o seu ódio ao regime colonial fascista de Salazar e o seu desejo de participar, ao lado dos democratas portugueses, na luta contra este regime. Manifestaram igualmente a sua simpatia pela justa luta que nós travamos, tendo-se prontificado a dar a sua contribuição onde ela se afigurar necessária.

A chegada destes desertores eleva para  9 o número de militares portugueses que deixaram as fileiras do exército colonial, para pedir asilo no nosso Partido, nas regiões libertadas e este facto é altamente favorável à nossa ação de propaganda tanto no plano internacional como no seio do inimigo.

Por esta razão, temos a honra de vos pedir a competente autorização para tomarmos conta dos desertores em questão, afim de organizarmos a sua apresentação à imprensa internacional. Entretanto, encarregar-nos-emos de contactar as organizações democráticas portuguesas no estrangeiro, a fim de preparar a sua saída da República da Guiné imediatamente a seguir à conferência de imprensa.

Seguros da sua compreensão habitual, queira aaceitar, senhor Ministro, a expressão dos nossos senrtimentos da mais alta consideração.

P’lo Bureau Político do PAIGC,


Luíz [sic]Cabral

Membro do Bureau Político

Fonte: (1965), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35357 (2013-11-7)


Clicar aqui para ampliar o documento [em francês]: Casa Comum

Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta: 04606.049.061
Assunto: Comunicado que os camaradas conduziram para Conakry,  através da fronteira de região de Boké, três desertores [do exército colonial português]: António Manuel Marques Baracosa, José Fernandes Amorim e Rui Jorge Pires.Remetente: Luís Cabral, Membro do Bureau Político e pelo Bureau Político do PAIGC.
Destinatário: Ministro da Defesa e da Segurança da República da Guiné
Data: Sábado, 3 de Abril de 1965.
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência com o governo da Guiné-Conakry 1960-1966.
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.
Tipo Documental: Correspondencia.
Direitos:
A publicação, total ou parcial, deste documento exige prévia autorização da entidade detentora.

[Ver aqui o acordo a que chegámos com o administrador, dr. Alfredo Caldeira, do Arquivo e Biblioteca da Fundação Mário Soares, para efeitos de utilização de fotos e outros documentos]

__________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 4 de novembro de 2013 > 4 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12250: A guerra vista do outro lado... Explorando o Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum (6): Carta de Marga ('Nino' Vieira) a Aristides Pereira, presumivelmente de meados de 1964, em que refere um desembarque das NT em Gampará, que terá provocado a morte de "22 pessoas do povo e umas vintenas de vacas" (sic)

(**) Lista, organizada pelo nosso camarada Santos Oliveira, das subunidades do BCAÇ 1860 (Tite, Abril de 1965/Abril de 1967)> Subunidade, subsetor, período, comandante 

(i) CArt 565, Fulacunda, antec /10Ago65, Cap Reis Gonçalves;

(ii) CCav 677, S. João, antec. 20Abr66, Cap Pato Anselmo, Alf Ranito, Cap Fonseca;

(iii) CCaç 797, Interv, 29Abr65/16Mai66, Cap Soares Fabião;

(iv) CCaç 1420, Fulacunda, 11Ago65/08Jan66, Cap Caria, Alf Serigado, Cap Moura; [Recorde-se que a esta infortunada companhia pertenceu, como alferes, o nosso camarada Rui Alexandrino Ferreira];

(v) CCaç 1424, S. João, 11Set65/25Nov65, Cap Pinto; [Companhia que também foi comandada pelo querido amigo e camarada Nuno Rubim, de Junho a Dezezembro de 1966];

(vi) CCaç 1423, Fulacunda e Empada, 30Out66/23Dez66, Cap Pita Alves;

(vii) CCaç 1487, Fulacunda, 08Jan66/15Jan67, Cap Osório;

(viii) CCaç 1549, Interv, 26Abr66, Cap Brito;

(ix) CCaç 1566, S. João e Jabadá, 19Mai66, Cap Pala e Alf Brandão;

(x) CCaç 1567, Fulacunda, 01Fev67, Cap Colmonero;

(xi) CCaç 1587, Empada, 27Nov66, Cap Borges;

(xii) CCaç 1591, Fulacunda (treino operacional), 18Ago66/01Out66, Ten Cadete;

(xii) CArt 1613, S. João (treino op), 03Dez66/15Jan67, Cap Ferraz e Cap Corvacho; [ A esta companhia pertenceu, entre outros, o nosso saudoso Zé Neto (1929-2007), o primeiro membro da Tabanca Grande a quem a morte levou];

(xiii) CCaç 1624, Fulacunda, 05Dez66, Cap Pereira;

(xiv) Pel Mort 912, Jabadá, antec /26Out65, Alf Rodrigues;

(xv) Pel Caç 955, Jabadá, antec/13Mai66, Alfs Lopes, Viana Carreira, Sales, Mira;

(xvi) Pel AM Daimler 807, Tite, antec/13Mai66, Alf Guimarães;

(xvii) Pel Art 8, Fulacunda, 10Fev66/03Mar66, Alf Machado;

(xviii) Pel Caç 56, Fulacunda e S. João, 31Out66, Alf Dias Batista;

(xix) Pel Mort 1039, Jabadá e Tite, 26Out65, Alf Carvalho;

(xx) Pel AM Daimler 1131, Tite, 12Ago66, Alf Antunes;

(xxi) Companhia de Milícia 6, Empada, antec, Alf 2ª Mamadi Sambu e Dava Cassamá;

(xxii) Companhia de Milícia 7, Tite, 05Ago65, Alf 2ª Djaló;

Estas sub-unidades foram atribuídas ao BCaç 1860 durante a permanência em Sector (desde Abr65).

[Imediatamente após a sua chegada à Guiné, o BACÇ 1860 entrou em Sector. Foi-he atribuído o Sector S1, integrado no Agrupamento Sul. Principais localidades: Tite, Fulacunda, S. João e Jabadá. Em Outubro de 1966 é atribuído ao Batalhão o Sub-Sector de Empada, enquadrando as penínsulas de Darsalame e Pobreza. Concomitantemente, passa a pertencer ao BCAÇ 1860 a CCAÇ 1423, aquartelada em Empada.]

Guiné 63/74 - P12266: Filhos do vento (23): ...ou da ventania (Juvenal Amado)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 7 de Novembro de 2013: 


Filhos do Vento ou da Ventania

Os jornais todos os dias mostram situações de pais que abandonam os filhos ou os matam. Há mesmo uns jornais especializados nessas noticias e que as desencantam em todo o lado. Chamasse a isso jornalismo do terror, desgraças e dos maus costumes.

Estamos num país dito civilizado com obrigatoriedade escolar bem longe da média escolar de há 40/50 anos atrás.

No entanto estes casos continuam.

Naquele tempo, fizeram o que era mais fácil que foi abandonar à sua sorte filhos, que seriam mal olhados numa sociedade onde preconceito social condenava os responsáveis por estas situações a algum estigma, especialmente no Portugal profundo das pequenas vilas e aldeias, dominadas por conceitos morais, raciais e éticos a roçar em muitos casos tempos bem anteriores ao Século XX. E lá diz o ditado que pena que não se vê, não se sente!

O que era perfeitamente aceitável lá, mergulhados que estávamos numa guerra em que se vivia grande parte da comissão, numa lógica de um dia de cada vez, tornava-se intolerável junto das namoradas ou esposas após o regresso e na moral de então.

As preocupações começavam a partir do momento em que pensávamos que íamos finalmente regressar. Esses e outros medos passavam assim a ser uma constante no nosso dia-a-dia. Como não correr riscos e como fugir dos resultados de uma convivência amorosa, que agora resultava numa trágica fotografia e na indecisão quanto ao caminho a seguir? Aparecer à namorada quando não esposa, com um filho mestiço até fazia ganhar suores frios, porque aventura é aventura, champanhe é champanhe, mas um filho assim caído de repente era o diacho.

Conheci um caso de um militar que mentiu quanto ao à data do seu regresso à Metrópole e quando a pobre foi à procura dele com trouxa e tudo, já ele estava em casa. Felizmente desse caso não tinham resultado filhos, mas também conheci outra situação em que o militar avisou a família bem como namorada, que ia ser pai e que era sua intenção levar o bebé para casa quando regressasse. Na altura disse-me que a situação tinha sido aceite senão com alegria, com conformismo e que estariam à espera do filho dele. Infelizmente o bebé uma menina por sinal, acabou por falecer no parto, dado que sendo a mãe de Bangacia, só recorreu aos serviços médicos já tarde para salvar a filha. Vi então o militar com lágrimas nos olhos, que se compreendiam perfeitamente em função ao seu envolvimento emocional.

Sabemos que nem todos militares ou ex-militares que ficaram no território agiram como o meu camarada. Está à vista que a grande maioria não lhe seguiu o exemplo e com a independência, resolveram vir embora e deixar filhos para trás.

Talvez até nem tivessem consciência do muito sofrimento que acarretava a sua resolução.
Essas crianças deixaram ser guineenses e muito menos portuguesas.
Ficaram sem estatuto por isso apátridas.
Ninguém os queria.

Aos mestiços trataram de os mandar ter com os pais à Metrópole, pois já não eram puros para serem naturais da sociedade que os viu nascer.
Vai para a terra do teu pai “cutima” filho di puta. (Também me mandaram a mim para esses sítios muitas vezes)

Em Angola por exemplo, fizeram-se cartoons com os aviões carregados de retornados e os mestiços pendurados nas asas do avião do lado fora.

As ameaças eram muitas. A razão era abafada pela violência latente, nós sabemos que nas sociedades em ebulição os novos aderentes ou de fresca data às causas, são muitas vezes mais perigosos e menos racionais.

Filhos diferentes abandonados pelos pais, sujeitos a uma sociedade que se radicalizou, foram rejeitados e excluídos como um tumor que denunciava as mães e as famílias de colaboracionismo com as tropas colonialistas, que se tinham tornado peçonha.

Nas campanhas de reeducação que se seguiram, quem é que aceitava de bom modo o ser apontado por ter privado tão de perto as tropas tugas, que se tinham ido com malas e bagagens embora ao fim de 11 ou 13 anos de guerra?

Hoje quantos se esqueceram do que deixaram para trás?
Dificilmente temos os resultados imediatamente dos nossos actos, porque se tivéssemos, muito das decisões que tomamos ficariam por tomar.

Quem corta uma linha de água com uma construção, pensa que se viu livre do inconveniente, mas mais tarde ou mais cedo a água forçará a passagem com resultados funestos. Nessa altura desejamos não ter feito a parede ou lá o que seja e é tarde. Ficamos felizes quando os resultados não são irremediáveis.

Por vezes ainda vale a pena tentar remediar, fazer as pazes com a sua consciência e o passado, certo que a juventude de então, não justifica a omissão de hoje.

Juvenal Amado
____________

Nota do editor

Último poste da série de 6 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12257: Filhos do vento (22): Criada a Associação de Solidariedade dos Filhos e Amigos dos Ex-Combatentes Portugueses na Guiné

Guiné 63/74 - P12265: FAP (79): Os Dias do Strela - Há 40 anos na Guiné (Paulo Mata / Miguel Pessoa)

1. Mensagem do nosso camarada Miguel Pessoa (ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje Coronel Pilav Reformado), com data de 6 de Novembro de 2013, a propósito da publicação de um trabalho sobre a sua odisseia de 25 de Março de 1973, data em que a aeronave que pilotava foi atingida por um míssil Strela.

Olá Luís
Na realidade este artigo do Paulo Mata resultou de um conversa que tivemos no decorrer de um dos nossos almoços da Tabanca do Centro.
O Paulo Mata é um "jovem" de uma geração mais nova que a nossa, que tem o "bichinho" da aviação. Tem aparecido em alguns desses nossos almoços a meu convite e mostrou-se interessado em contar essa minha história.
Para teres uma ideia mando-te o texto saído na revista "Take-Off", com uma disposição gráfica um pouco diferente da que foi publicada no "Pássaro de Ferro" (por acaso até gosto mais desta última).
Sobre uma referência no blogue, tu saberás o que interessa publicar; por mim não vejo nenhum inconveniente, embora já se conheça o final... Até acho que está bem escrita - e o Paulo até me deu a oportunidade de lhe dar uma olhadela antes de ser publicada, não fosse haver alguma imprecisão.
Bom, talvez haja uma - do pessoal abatido pelo Strela fui realmente o único que terminou a comissão.
Outro pessoal que se ejectou antes do meu tempo, não te posso confirmar se acabou por concluir a sua comissão ou não. Mas isso provavelmente não é assim tão importante - apenas serviu para eu tentar explicar quão difícil foi o meu regresso ao "local do crime".
Já tive a oportunidade de referir isto por várias vezes: Quando me perguntavam se senti medo após o meu regresso, disse que sim - não o medo de ser outra vez abatido e morrer, mas sim o de ficar vivo. É que não me via a passar outra vez por aqueles episódios que vivi naquelas vinte horas que estive no chão, provavelmente com um fim bem menos feliz que da primeira vez...

Abraço.
Miguel




2. Assim, com a prévia autorização do autor, Paulo Mata [foto acima], passamos a reproduzir, com a devida vénia, o texto e fotos publicados no Blogue Pássaro de Ferro


OS DIAS DO STRELA - Há 40 anos na Guiné

Texto: Paulo Mata
Artigo publicado no jornal Take-Off de abril de 2013

Um Fiat G.91 R/4 com a configuração habitual de depósitos e rockets sob as asas    Foto: AHFA

Há momentos que marcam uma vida. Há 40 anos, a bordo do Fiat G.91 com a matrícula 5413 da Força Aérea Portuguesa, em missão nos céus da Guiné, o então Ten PILAV Miguel Pessoa teve vários desses momentos, quando foi atingido por um míssil terra-ar SA-7 Strela e teve de se ejectar em território hostil.
O Ten. Miguel Pessoa com equipamento de voo à saída da Esquadra 121 na BA12 - Bissalanca

A 25 de Março de 1973, cumprindo o serviço de alerta na BA12 em Bissalanca, na Esquadra 121- Tigres, que operava os Fiat G.91, a parelha é chamada a responder a um ataque com canhões e foguetões, sobre o aquartelamento de Guileje, no sul da Guiné Bissau, bem próximo da fronteira com a vizinha Guiné Conacri. De serviço nesse Domingo, o Ten. Miguel Pessoa acabaria por descolar sozinho, de modo a identificar visualmente as posições do  inimigo e transmitir a informação ao avião que descolaria em segundo lugar, entretanto equipado com o armamento mais adequado.

A placa de estacionamento com abrigos laterais na BA12 - Bissalanca onde ficavam estacionados os Fiat G.91 da Esq.121

Se há momentos a evitar, estar do lado errado de um lança-mísseis é certamente um deles. Mas foi isso exactamente que aconteceu a Miguel Pessoa, na aproximação a Gandembel, local referenciado pelo aquartelamento como provável base de fogo do inimigo que flagelava Guileje. Já cinco dias antes tal havia acontecido também, então no norte do território, com o míssil (então desconhecido) a deixar um rasto branco, por entre o seu avião e o do TCor Almeida Brito, com quem voava em formação. Desta vez não chegou a ver nada. Sentiu apenas a detonação do míssil na traseira do avião, e imediata perda de potência na turbina.

Um Fiat G.91 R/4 em picada sobre o inimigo    Foto: AHFA

E se há momentos que podem marcar a diferença entre a vida e a morte, puxar a alça de ejecção de uma cadeira ejectável num avião em queda, é certamente também um deles. Momentos que parecem desmultiplicar o tempo e multiplicar as forças. O gesto de puxar a alça de ejecção sobre a cabeça (mecanismo que oferece alguma resistência) foi feito de tal forma, que o piloto julgou estar o sistema de ejecção avariado, tal foi a facilidade com que a alça se moveu. Por outro lado, a ausência de resposta dos foguetes que deveriam impulsionar a cadeira, reforçou a mesma ideia, levando-o a considerar a hipótese de accionar o sistema secundário de ejecção, situado no assento da cadeira, entre as pernas. Contudo, antes de esboçar esse movimento, dava-se já a ignição dos foguetes, que iniciavam a extracção da cadeira do avião. Afinal tinham-se passado apenas 0,3 segundos.

Cadeira ejectável Martin Baker MkG W4B usada nos Fiat G.91 R/4 portugueses e que salvou a vida ao Ten. Miguel Pessoa

A escassa altitude, com o avião em queda desgovernada e já sem comandos devido a falha do sistema hidráulico, Miguel Pessoa ejecta-se da aeronave no último instante. De tal modo, que o pára-quedas não chegou a abrir totalmente, tendo o piloto entrado pelo arvoredo adentro com velocidade excessiva, o que lhe viria a causar a fractura do perónio, no embate com o solo. Acordado no meio de mato cerrado, depois de alguns minutos de inconsciência, havia que avaliar a situação.
Sem ter tido tempo para enviar um pedido de socorro, em zona não controlada por forças amigas, cercado de vegetação densa e inferiorizado fisicamente por uma perna partida e com fortes dores nas costas devido à violência da ejecção, o futuro afigurava-se incerto e pouco risonho para o piloto português. Explorando o kit de sobrevivência que transportava, do material que continha, elegeu osvery-lights e uma pequena bússola, como verdadeiramente úteis, esquecendo os restantes itens por falta de uso prático. Não havia rádio para poder comunicar. Na verdade, era a primeira vez que via tal material. Os treinos de sobrevivência não eram então o que são hoje.
Deslocou-se conforme pôde para uma zona de floresta menos densa, de modo a conseguir lançar osvery-lights e esperou pela passagem de alguma aeronave amiga. Apesar de não ter enviado pedido de socorro, a sua ausência seria naturalmente notada.
Passado pouco tempo, ouvia já de facto o ruído de aviões a jacto, mas a sua (falta de) visibilidade para o céu contudo, impedia-o de saber com certeza, a proximidade das aeronaves e avaliar o momento adequado para o lançamento dos foguetes de sinalização. Passava das 5 da tarde e as esperanças de resgate durante o dia diminuíam com a mesma velocidade da luz do sol, que na Guiné se desvanece cedo e rapidamente. Haveria que passar a noite no meio do nada. A única possível companhia que se afigurava então, era a que menos pretendia: o inimigo. Teriam visto o local do despenhamento? Teriam visto os very-lights que lançou? Andariam à sua procura? Perguntas às quais apenas os ruídos da floresta respondiam. Não tinha sequer a arma de mão que fazia parte do equipamento normal para missões de combate, uma vez que estava no fato anti-G, que não havia vestido, para ganhar tempo na resposta ao alerta.
A noite foi interminável. Apesar do cansaço, pouco dormiu. Todos os barulhos pareciam movimentos dissimulados no escuro da floresta. Todas as sombras se podiam confundir com vultos humanos. Num dos breves momentos em que conseguiu dormir alguma coisa, enganando as dores que sentia, acordou sobressaltado com a sensação de movimento junto à perna magoada. Seria uma serpente, ou apenas a perna partida a latejar? Na escuridão não arriscou mexer-se para saber. Se dum animal se tratou, nunca o chegou a saber. A sensação passou e pelo clarear da aurora já nada lá se encontrava.

Pela manhã, ainda que cansado, e com sinais de desidratação, visto não ter bebido qualquer líquido desde a hora de almoço da véspera, o moral melhorou com a perspectiva de ser resgatado. Não demorou muito para ouvir o som de aeronaves a sobrevoar a zona. Na verdade, havia sido localizado ainda na véspera, pelo TCor Almeida Brito, que em G.91 visualizou um dos very-lights lançados, já muito perto do anoitecer. A hora tardia contudo, inviabilizou o destacamento duma força de resgate ainda no mesmo dia.
O ruído característico dos helicópteros Alouette III fazia-se também ouvir nas proximidades, mas por via das dúvidas e por desconhecer ainda se já havia sido localizado ou não, lançou os very-lights que lhe restavam. Vestiu a camisola interior branca por cima do fato de voo, de modo a ficar mais visível, mas a ajuda tardava. Passavam já três horas desde o amanhecer e nada. Tentou fazer uma fogueira com alguns fósforos alegadamente anti-humidade, mas nenhum acendeu. A desidratação começava então também a pregar partidas, ao toldar os pensamentos e perturbar o discernimento. 

Marcelino da Mata com a catana na mão e o seu grupo posam para a foto após encontrar o Ten. Miguel Pessoa

Quando finalmente conseguiu divisar pessoas na sua proximidade, eram… africanos. Armas Kalashnikov e uniformes estranhos. Na falta de melhores argumentos para se defender, optou por insultar o que supunha serem elementos do PAIGC, portanto o inimigo. Estes contudo, trataram-no pelo próprio nome, o que lhe baralhou o raciocínio. O chefe identifica-se como sendo Marcelino da Mata, conhecido líder de um grupo de operações especiais das forças portuguesas, embora formado por elementos de etnia africana. Apesar de conhecer a sua fama, o Ten. Pessoa nunca o tinha visto pessoalmente. O facto de saberem o seu nome também facilmente se explicava, ou por informadores na base, ou por escuta de comunicações rádio, pelo que não estava convencido ainda. Sabendo que o verdadeiro Marcelino da Mata era conhecido por trazer sempre consigo cantis com Fanta ou Coca-Cola, pediu de beber e confirmou a veracidade da identidade através das bebidas. Foi uma espécie de o santo-e-senha improvisado. O regresso, apesar de penoso e demorado, devido à dificuldade em andar com a perna fracturada por entre a vegetação densa, não teve grande história. 

O penoso regresso a pé pela mata

O Alouette que o havia de transportar de regresso, encontrava-se na orla da mata e os restantes helicópteros que tinha ouvido mais cedo, destinavam-se à colocação dos grupos de caçadores pára-quedistas e de operação especiais que tinham ido em sua busca. Com uma primeira paragem em Guileje, onde outro helicóptero o haveria de transportar para o hospital militar, a jornada terminaria finalmente na BA12, após os exames médicos e tratamento da perna fracturada, onde um numeroso grupo festejou o seu regresso e o sucesso da missão de recuperação.

O Alouette III que transportou o Ten. Miguel Pessoa na chegada a Guileje
Aspecto da zona de aterragem em Guileje com os helicópteros destacados para transportar os grupos de busca

Há momentos que marcam um ponto de viragem e a introdução dos mísseis terra-ar no teatro de guerra, foi esse momento. Portugal perdia a supremacia dos ares, onde até então se tinha movido livremente. A guerra entrava numa nova fase, decididamente pior para as forças portuguesas. Durante as duas semanas seguintes mais quatro aeronaves seriam abatidas por mísseis SA-7 Strela. As tripulações não tiveram então a mesma sorte do Ten. Pessoa. Uma das vítimas mortais seria mesmo o TCor Almeida Brito, comandante do Grupo Operacional 1201, o mesmo piloto que havia localizado a sua posição no dia 25 de Março e que já havia sido alvejado consigo a 20 de Março na fronteira  norte da Guiné. 
Ficou então patente o modus operandi do inimigo, atacando posições portuguesas no terreno, para depois esperar a chegada dos aviões que vinham em resposta, e assim os alvejar. Após suspensão da actividade aérea, para análise da arma que se enfrentava, sua utilização e características, foram tomadas medidas a nível dos procedimentos nos ataques, altitudes de voo e armamento a utilizar. Depois de implementadas essas medidas, apenas uma aeronave mais seria abatida por um Strela, já em Janeiro de 74 e alegadamente por não ter cumprido os procedimentos definidos. 

O míssil portátil SA-7 Strela      Foto: US Navy

Quanto ao Ten. Miguel Pessoa, após passar duas semanas na enfermaria da BA12 terminaria durante os quatro meses seguintes na Metrópole, a convalescença das mazelas físicas decorrentes da ejecção, nomeadamente a nível do perónio fracturado e da coluna, cuja compressão de 2 cm nunca chegaria a recuperar. Depois deu-se o difícil regresso ao teatro de operações onde quase tinha perdido a vida, com a reactivação da sua comissão. Sem qualquer ajuda psicológica, ou apoio para voltar a enfrentar as mesmas situações de risco, voltar a sobrevoar o local onde tinha sido abatido não foi fácil, tal como não é difícil de compreender. Acabaria por ser o único piloto a terminar a comissão na Guiné, após ter sido abatido em combate. Ainda chegou a ser visado mais quatro vezes por mísseis Strela. Numa delas conseguiu mesmo ver a cabeça de busca do míssil que o perseguia e a tentativa de correcção da trajectória, para prosseguir atrás da fonte de calor que era o seu avião. Quando alguém alude à aura de herói que o rodeou por ter sobrevivido ao abate por um míssil, Miguel Pessoal responde que o verdadeiro acto de registo que teve, foi regressar e enfrentar outra vez o mesmo inimigo, o mesmo perigo, olhos nos olhos. E se os procedimentos de combate adoptados acabaram por lhe salvar a vida, nunca chegaram a ser aplicadas nos aviões quaisquer ajudas em termos de autodefesa relativamente aos mísseis.

De regresso a Portugal, e já depois do fim da guerra, viria a ser instrutor em T-37 na Esq 102 em Sintra. Integrou a patrulha acrobática Asas de Portugal durante sete anos, tendo sido também Comandante da Esq 102 e dos Asas. Foi mais tarde Comandante do Grupo Operacional 51 na BA5 em Monte Real onde voou ainda em A-7P e finalmente Comandante da BA6 no Montijo. Reformou-se com a patente de Coronel em 1998. 

A enfermeira pára-quedista Giselda Antunes à direita carrega a maca do Ten. Miguel Pessoa

Para final de história, em jeito de argumento de filme e dentro do espírito bem português, de conseguir ver sempre um lado positivo numa situação má, do abate que sofreu na Guiné, nasceria uma relação duradoura com a enfermeira pára-quedista Giselda Antunes, que o socorreu em Guileje após o resgate, e viria a tornar-se sua esposa, no regresso definitivo a Portugal.


Perfil do avião em que seguia o Ten. Miguel Pessoa no dia 25/3/1973       Imagem: Paulo Moreno



Agradecimentos: Cor (Ref) Miguel Pessoa, Paulo Moreno, Carlos Santos, Cristiano Valdemar, Vicente Braz, Arnaldo Sousa

____________

Nota do editor

Último poste da série de 26 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12206: FAP (78): Nunca tão poucos fizeram tanto com tão pouco... (António Martins Matos / Helder Sousa / Luís Graça)... Fotos do Artlindo Roda

Guiné 63/74 - P12264: Notas de leitura (532): "Crónicas, Lendas e Usos Costumeiros da Guiné-Bissau", por Fernando Antunes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2013:

Queridos amigos,
A literatura luso-guineense vai evidenciando-se neste engrossar de crónicas e múltiplos apontamentos. São pessoas que ganharam amor aquela terra e àquelas gentes, sentem o dever de contar e resumir, são provas de amor entranhado à procura de novos seduzidos.
É o caso de Fernando Antunes, estudou afincadamente a Guiné e dá-nos a sua visão, cheia de coração saudável.

Um abraço do
Mário


Crónicas, Lendas e Usos Costumeiros da Guiné-Bissau, por Fernando Antunes

Beja Santos

Fernando Antunes tem atividade empresarial na Guiné-Bissau, onde viveu entre 1996 e 2001. Refere na sua nota curricular que desde aí vive entre Portugal e a Guiné. O seu livro “Crónicas, Lendas e Usos Costumeiros da Guiné-Bissau”, Chiado Editora, 2013, é uma bem-intencionada evocação da sua relação afetiva aos guineenses, a quem dedica a publicação.

Leu muito para se documentar: sobre a história muito nebulosa das origens do que é hoje a Guiné-Bissau, sobre os impérios Mandinga e Fula, sobre os Balantas, a origem de Cacheu, as delícias de Bubaque, o que é o acampamento da SOMEC, a comida tradicional portuguesa que se come na Adega do Loureiro, como fervilha o mercado de Bandim, como são os transportes públicos, etc.

Discreteia sobre a cosmologia dos balantas, seguimos o seu empolgamento com maior interesse: “No que respeita à origem das coisas, para os Balantas, há um Ser Supremo (N´haala) que é o criador de todos os entes. No começo só havia o N’haala. Este criou a matéria imprecisa (Iaqwat) a qual ao transformar-se no espírito da terra libertou uma outra essência (Sim) traduzida em vapor no qual aparece o arco-íris que, como uma cobra, se lança no mar dando lugar ao Ethe ndan. Destes três elementos – terra, ar, água – é este último o mais importante pois o espírito da água é indispensável para a produção de arroz. Daí que a Grande Cobra seja muito venerada nas ocasiões relevantes da vida dos Balantas. Uma pessoa possuída pelo Ethe ndan é um ser completo. O Balanta na cerimónia do fanado (Fo) é tomado por esse espírito, e só então passa a ser adulto (lambe). Todos são filhos de N’haala e ao mesmo tempo filho de uma geração. São compostos por um corpo (lite), uma parte imortal (flide) e por uma alma (flite). O flide, para este povo, sempre existiu e existirá. Antes de nascerem já existiam e depois da morte do corpo, continuaram a existir, na casa de Deus”.

Trabalhar em África requer uma nova atitude face à gestão do dia-a-dia e conta o que é a sua vida doméstica. Alugou uma casa no centro da cidade, sem água e sem luz, 1300 euros por mês. Comprou um gerador que dá mais problemas que luz. Dias há que água nem vê-la. Com alguma frequência, o gerador recusa-se a trabalhar. E começam as surpresas: “O gerador: nada. Que trabalhasse eu. Aí, tomei medidas drásticas. Telefonei ao homem que trata dos geradores. O que era? A placa elétrica estava queimada. Toca a ir ao libanês, toca a trocar a placa. Eureka! O gerador trabalhou sábado e domingo, depois disse que estava cansado e que trabalhasse eu. Novo pedido ao meu homem. Diagnóstico: o alternador não carregava a bateria. Mas o habilidoso lá resolveu o problema. Agora, e até ver, há luz e água. Aleluia! E é isto o dia-a-dia fora das horas de serviço! No dito serviço as coisas são mais simples. Serão? Vejamos: quando cá cheguei, das seis impressoras que a empresa tem (ou tinha) só uma funcionava – e funciona. Como não há quem as repare e não as há cá à venda, tive de encomendar a Portugal de urgência duas para virem no voo de sexta-feira da TAP. Aguardei ansiosamente que a semana chegasse ao fim para ter alguma segurança em termos de impressoras. No sábado, chega a notícia: a TAP não trouxe carga, só os passageiros e respetiva bagagem. Simples, não?”.

Deambula pela cidade, não se conforma com a degradação aparentemente irreversível que toma todos os domínios. Bom apreciador do convívio à volta da mesa, dá conta daqueles jantares ao ar livre e refere o restaurante a “Fernandinha”, ali a iluminação provem das velas e os pratos de marca são o peixe grelhado a “bica”, ou a espetada de carne, porco e/ou vaca. Quem vai para estes jantares também deve ir preparado para um bate-papo pela noite fora. Naquele dia, imagine-se, falou-se dos Bijagós, os seus valores do sagrado, a natureza dos seus vínculos sociais.

Sempre que pode, vai até ao interior, sabe que existe a Bafatá histórica e a nova cidade. E dão uma dica para outros presumíveis visitantes: “Quem visita a região e quer almoçar não tem muita escolha. Então, recorre-se ao restaurante do Dinis. A D. Célia lá estará à nossa espera com uma cozinha que os anos deram uma forte influência local. A galinha da terra à cafriela, à bica dourada, será o que encontram se, de improviso, irrompem pelo restaurante. E há que esperar, com conversa morna e uma conversa bem gelada, que as coisas são feitas na ocasião e, por estas bandas, não há lugar para pressas”.

Os encontros fortuitos em África têm outro sabor. Estava um grupo em conversa pachorrenta no complexo turístico de Bubaque, Bijagós, quando chegou um casal acompanhado de dois filhos, foram efusiva e deferentemente cumprimentados, se estava a discutir o povoamento das ilhas Bijagós, foi uma surpresa a intervenção do senhor acabado de chegar: “Para os que não me conhecem, passo a apresentar-me: meu nome é Capacura, o que quer dizer ‘Falcão’. Um dia o meu avô contou-me que o seu avô lhe dissera o que lhe tinha sido transmitido pelo seu avô que… No princípio, todas as ilhas dos Bijagós eram desabitadas, exceto a de Orango Grande onde vivia um homem e uma mulher. Ele chamava-se Orakuma, tinha construído uma cabana e vivia trabalhando a terra com a qual se identificava e de onde retirava o seu sustento. A mulher, de nome Oraga, vivia ao ar livre e passava a vida olhar para o céu e a falar com os espíritos. Num dia de ventos fortes, trovões estrondosos e chuva copiosa, Oraga pediu abrigo a Orakuma, que de bom grado lho deu passando, a partir de então, a viver juntos. Dessa união nasceram Ogubane e Ominka. Ogubane tinha uma inclinação natural para se relacionar com todo o tipo de animais, enquanto Ominka foi adquirindo poderes sobre as chuvas e os ventos. Daqui nasceu o povo dos Bijagós, pois foram-se multiplicando e espalhando pelas outras ilhas e ilhéus, dando origem a quatro linhagens distintas”. Ou seja, há sempre uma forte probabilidade de um repasto vir desvelar um mistério.

Fernando Antunes fala-nos dos poilões, dos Brames, dos Mancanhas, dos Manjacos e dos Papéis. Repete-se, são notas despretensiosas de quem foi matar a curiosidade e redireciona para os amigos saberem um pouco mais sobre estes povos. Não há para ali ajustes de contas, nem miserabilismos, nem rancores trazidos do fundo da memória. A tradição já não é o que era, o confronto de civilizações atenuou as lutas pela hegemonia entre etnias diferentes, a vida na cidade rompe com imensas tradições, só os animistas é que parecem manter-se à parte. Muitos jovens abandonam os usos tradicionais, os Manjacos, devido à gravidade dos problemas económicos, emigram com as mulheres, o que representa uma profunda alteração dos papéis dos chefes de família. Recorde-se que a estrutura social assenta na família extensa, nas linhagens, nos poderes dos velhos, o que acarreta uma estrutura vertical. As chamadas etnias mais supersticiosas, animistas, vêm pôr em causa o papel dos anciãos. Os mais velhos que estão associados ao Ser Supremo, são os intermediários face ao desconhecido. No caso dos Balantas, deteta-se que compete ao líder da congregação unir a comunidade em redor das tradições, mas é também patente que a tradição Balanta vai gradualmente separando-se do terreno religioso.

Estas são, em suma, os apontamentos de alguém que quis encontrar respostas para cultos assombrosos e mistérios que se julgavam indecifráveis. Fernando Antunes gosta tanto da Guiné que pretende passar as suas memórias a quem duvide que a Guiné e os guineenses não são um inestimável afeto.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 4 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12248: Notas de leitura (531): "Cambança Final", contos de Alberto Branquinho (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 – P12263: Memórias de Gabú (José Saúde) (32): “Ao esforço da Pátria”

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.

As minhas memórias de Gabu: uma passagem por Bissau

“AO ESFORÇO DA PÁTRIA”

As minhas memórias de Gabu contemplam uma infinidade de situações por mim vividas e trazidas a público, por entender que nestes pequenos textos se cruzam gerações. Desta vez foi uma passagem por Bissau que meu deu ânimo para colocar na tela este pequeno resumo. 


A frase do título deste texto assume-se claramente estafada, admito. Aliás, terá sido com ênfase que os antigos marinheiros que desafiaram os “mares nunca dantes navegados” partiram para a descoberta de novas aventuras em territórios distantes, mas… “comendo o pão que o diabo amassou”. Foram heróis.

Deixem-me, porém, opinar que a dita efeméride “AO ESFORÇO DA PÁTRIA”, assimilada num outro prisma, foi, também, substancialmente sugerida aos antigos combatentes que em Angola, Moçambique e na Guiné cumpriram as suas comissões militares. Partia-se para a guerra em honra de uma missão meticulosamente incentivada pelos então senhores do poder que no cais de embarque reforçavam essa velha e misteriosa tese.

Ficava a prece ditada pelo estafado dicionário português que pátria é o “país onde se nasce e de que se é cidadão”. Com efeito, o soldado desconhecido embevecia-se com os discursos daqueles que na hora do adeus se desfaziam em múltiplos dizeres ocasionais, interiorizando a ação psicológica ao soldado sem medo que entretanto começava a ganhar uma outra dimensão. A Guiné, na ótica de ancestrais senhores, pressuponha um porção da pátria lusa que ousara forçosamente defender.

O militar seguia para a guerra convicto que a sua missão era defender um território que era declaradamente português. Seu. De facto, analisando o passado histórico que os nossos antigos navegantes nos legaram, a Guiné era uma província ultramarina onde a bandeira portuguesa se hasteava com presunção. Havia, pois, que defender aquele território que era nosso.

Lembrando dados históricos Nuno Tristão, navegador português, terá chegado à Guiné no ano de 1446. Outras fontes indicam que o primeiro a pisar solo guineense e a navegar nos seus rios, foi Álvaro Fernandes.

A certeza por nós observada ao vivo, e colocando de parte esses laivos históricos, a realidade remete-nos que a Guiné ao longo de 11 anos (1963/1974) foi palco de muitos milhares de militares que pisaram um território que nos foi deveras agreste. A guerrilha, sempre constante, não deu pausas e as suas consequências são sobejamente conhecidas.

Aliás, as suas sequelas apresentam-se para todos nós, antigos combatentes, como resquícios de pequenas/grandes memórias que contemplam ainda hoje o nosso já vasto palco da vida terrena e que nos remetem para imagens de outrora que guardamos honradamente no baú das recordações.

Olhando atentamente a foto exposta, certamente que todos os camaradas que tiveram oportunidade de passear pela cidade de Bissau e passarem ao cimo da avenida principal, defronte ao “chalé” do então governador, ter-se-ão deparado com este monumento erigido em tempos idos.

Naquela altura o verbalizado monumento forneceria ao esmerado guerrilheiro uma simbólica força interior que o conduzia ao fundo da dita avenida, precisamente numa das suas ruas transversais, montar uma emboscada a um prato de ostras, servidas com um molho africano, ou de uma travessa de camarão gigante grelhado e “derrubar” umas boas cervejas, mandando por ora os estridentes sons do armamento de guerra às urtigas. Combatia-se, simultaneamente, um eventual ataque de paludismo, ou um ataque de formigas, ou de abelhas em pleno mato. O momento era de lazer. A companheira G3 estava agora acomodada algures num eventual abrigo e num qualquer buraco em que a Guiné era fértil. 

Bissau assumia-se como ponto de embarque e de partida. Pela cidade movimentavam-se batalhões de tropas. Os que chegavam, alcunhados de piriquitos, desbravavam a nova metrópole; os velhos, já conhecedores da burgo e dos seus buracos, percorriam as ruelas com um certo à vontade. Havia no entanto um cuidado sempre atempado: um contacto com a PM que impunha a ordem pública e que esporadicamente se envolvia com veteranos de guerra que mandavam os camaradas policiais declaradamente às malvas. 

O alcatroado das ruas da cidade de Bissau, ou o pó das apertadas ruelas onde proliferavam casas tipo europeu, foram entretanto substituídos pelos amargurados trilhos e picadas num mato adensado, onde o imprevisto imperava a cada instante e o soldado sem medo desvendava rumos sempre impensáveis.

Reporto-me à foto onde estou sentado no já referido monumento, ficando a certeza que o clique foi justamente dado aquando vim de férias, abril de 1974, e quando o meu papel na Guiné pressuponha um antecedente grito de liberdade que parecia já entoar nos bastidores de um regime prestes a chegar ao fim: o 25 de Abril!... Num país já em liberdade, Portugal, atrevo-me a citar que para trás ficava a meteórica frase ostentada naquele irreverente monumento a jovens enviados para as frentes de combate, aniquilando os seus sonhos, e que mui pomposamente dizia: “AO ESFORÇO DA PÁTRIA”.

Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523


Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.

___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: